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O lado bom do cancelamento

Na Ilustríssima, Rosane Borges cancelou pela milésima vez Lilia Schwarcz, num artigo caudaloso, balofo, que classifica o texto da cancelada como “ruim” mas jamais consegue preencher o qualificativo com um mísero argumento. O texto é ruim porque Borges diz que é, do alto do seu pódio autoconstruído do “lugar de fala”. Wilson Gomes, na mesma Ilustríssima (16/8), explicou o mecanismo inteiro. Assim, adiciono apenas uma proposta dirigida às plataformas virtuais: dividam as redes em dois setores, separados pela fronteira da prática do cancelamento, escreve Demétrio Magnolli em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, publicada aos sábados. Continua a seguir.

A dinâmica do cancelamento, destinada a produzir uma reserva de mercado, segue as lógicas sectárias típicas das cisões e expurgos dos partidos marxistas. Borges mirou a já canceladérrima Lilia para cancelá-la “melhor”, assegurando um lugar na dianteira da fila dos arautos da Verdade Identitária. Os canceladores, explicou Gomes, só cancelam eficientemente camaradas canceladores —ou seja, aqueles que comungam a mesma religião e, como Lilia, prestam-se ao papel de beijar os pés dos seus algozes.
Mas o “lugar de fala” não perdoa: é preciso pedalar sempre, como fazem os ciclistas. A prática tem que ser reiterada até o infinito, por meio de sucessivos cancelamentos voltados para eliminar concorrentes num mercado altamente competitivo. Como a seita de canceladores não controla um aparato estatal totalitário, a mera humilhação em rede substitui, teatralmente, os campos de trabalho forçado, as torturas e os fuzilamentos.
Aí, surge minha única divergência com Gomes, que declara-se triste diante do espetáculo. Acho, pelo contrário, que a pantomima tem o potencial de divertir os que não pertencem à seita. É como assistir aos folguedos de crianças no recreio. Pode ser intrigante, com a condição de que não percamos muito tempo.
Em vista disso, sugiro às plataformas a seleção prévia dos participantes de redes sociais baseada na auto-descrição. Os aderentes à prática canceladora ficam em redes exclusivas; os demais, que a rejeitam, inscrevem-se em redes assentadas no princípio da divergência civilizada. Desse modo, os adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares.
Sofistico a sugestão: todos os participantes teriam o direito de visualizar passivamente o que acontece na rede à qual não pertencem. O recurso ofereceria aos adultos uma janela de entretenimento. Mas, sobretudo, daria às crianças canceladoras uma oportunidade de descobrir os benefícios do intercâmbio democrático de pontos de vista. Otimista, aposto na conversão de uma fração estatisticamente significativa dos canceladores.
Há que distinguir os fenômenos. A política identitária racialista, com seu cortejo de leis raciais e “racismo reverso”, é coisa séria. O rastro que ela forma envenena a luta antirracista, avoluma a onda de ressentimentos que nutre o racismo tradicional, ergue o picadeiro ocupado pelos Sérgio Camargos, alarga o eleitorado da extrema-direita. Já o cancelamento identitário em rede social não passa de uma ramificação periférica, uma disputa menor por prestígio, convites e financiamentos.
Os rituais de cancelamento só provocam prejuízos sociais quando escapam à esfera das redes, restringindo o debate plural na imprensa, no meio editorial ou nas universidades. Isso existe, extensivamente, nos EUA —e começa a se manifestar, ainda de forma embrionária, no Brasil.
A carta aberta publicada pela Harper’s, que reuniu figuras ideologicamente tão distantes quanto Salman Rushdie, Noam Chomsky, Wynton Marsalis e J. K. Rowling, alerta para esse perigo real.
Minha proposta contribui para minimizá-lo. Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual. Todos poderão cotejar os debates travados entre não-canceladores com as exibições purificadoras dos canceladores profissionais. Que tal?

Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.



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