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Época: as voltas que deu a vida de Flordelis

A incrível história da deputada acusada de usar parte dos 33 filhos e netos para matar o próprio marido, que tinha sido adotado por ela quando adolescente. Vale a leitura do texto de Carolina Heringer para a revista, publicado no site dia 28/8. Abaixo, a íntegra.

A eleição da deputada federal Flordelis dos Santos, pelo PSD do Rio de Janeiro, parecia consagrar uma história de superação que teve início há duas décadas e meia. A partir dos anos 1990, Flordelis deu início ao acolhimento de crianças na favela do Jacarezinho, no Rio, onde ela nasceu e foi criada. Pastora evangélica, ficou conhecida como a “mãe de 55 filhos”, contabilidade que incluía os biológicos, adotados e afetivos.
Com a imagem de que era perseguida pela Justiça, que apontava irregularidades nas adoções, Flordelis não demorou para cair nas graças de parte da classe artística. Em 2009, sua vida foi contada em um documentário estrelado por atores como Bruna Marquezine e Cauã Reymond. Foi com esse empurrão que a pastora entrou no meio musical e se cacifou para o jogo político.
Por causa das negociações da trilha sonora do documentário, Flordelis se aproximou do senador Arolde de Oliveira (PSD), dono da gravadora evangélica MK Music, da qual passou a fazer parte do casting. Anos depois, ele viria a ser seu padrinho político. Quando conquistou impressionantes 200 mil votos em 2018, Flordelis já era cantora evangélica e tinha sua própria igreja em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio.
Tudo ia bem até o pastor Anderson do Carmo ser assassinado, oito meses após o pleito. Anderson, também oriundo do Jacarezinho, chegou à casa de Flordelis nos anos 1990 como seu filho. Na época, ele tinha 14 anos e ela 30. Em 1998, quando o pastor atingiu a maioridade, eles se casaram. Ao longo da ascensão de Flordelis no meio artístico e religioso, a participação de Anderson costumava aparecer mais nos bastidores. Ele era o grande articulador da casa, que também controlava com pulso firme as finanças e os conflitos entre os — muitos — filhos. Essa “divisão” de papéis acabou sendo ponto crucial para o crime.
Anderson foi assassinado a tiros na garagem da casa da família em Pendotiba, Niterói, na Região Metropolitana do Rio, local onde moravam, além do casal, 33 filhos e netos, entre eles 12 crianças e adolescentes. Entender as relações na numerosa família exige um pouco de atenção. Flordelis é chamada de mãe não apenas por seus filhos biológicos — que são três — e afetivos, mas também por netos, noras e genros. Ali, casais se formaram até mesmo entre filhos.
Essa complexa relação familiar levava a inúmeros conflitos, principalmente pelo tratamento diferenciado dado a alguns filhos e netos, em especial os biológicos. Flordelis tinha um despensa separada em seu quarto a que apenas alguns integrantes da família tinham acesso. Os preferidos da matriarca também ganhavam presentes especiais e tinham mais facilidade  em receber mimos em dinheiro. Por causa dessa postura, Flordelis tinha embates com Anderson, que exigia que todos trabalhassem para ter sua própria renda.
No fim de 2018, um episódio levou Flordelis à ira. Anderson determinou que filhos e netos já maiores de idade contribuíssem com o valor do plano de saúde. A pastora revoltou-se com a atitude do marido. “Os filhos são meus, essa família é minha”, afirmou ela pelo WhatsApp.
Na casa, ninguém ousava contrariá-la. No grupo preferido da deputada no aplicativo, não por acaso estão filhos e netos que foram presos acusados de participar do assassinato. São eles os três filhos biológicos apenas de Flordelis — Simone, Flávio e Adriano —, além de dois afetivos, Carlos e André, ambos da época do Jacarezinho. A neta adotiva Rayane também está na lista.
A deputada planejou e convenceu filhos e netos a embarcarem na trama macabra, conforme acusação do Ministério Público estadual. Com a possibilidade de ascensão na política, ela dizia ao grupo que a família não precisava mais de Anderson. O plano de envenená-lo começou a ser executado em maio de 2018, um ano antes do assassinato. O grupo se utilizava do jeito hiperativo e ansioso do pastor para justificar os episódios de vômito e diarreia que ele apresentava. Com a eleição de Flordelis, o envenenamento foi intensificado e o estado de saúde de Anderson piorou. Como o pastor acabava conseguindo se recuperar, o grupo partiu para um plano mais audacioso: matá-lo simulando um assalto.
Segundo a polícia, o controle das finanças da casa foi um dos fatores cruciais para a morte de Anderson. Todo o dinheiro oriundo das igrejas, carreira artística da pastora e salário como deputada ficavam com o pastor, que dava um percentual mensalmente para a mulher e usava o restante para os gastos da família, que eram muitos. Apesar das altas quantias que entravam nas contas, o casal vivia endividado.
O assassinato fez a família e a carreira de Flordelis ruírem. Entre alguns filhos adotivos e afetivos que deixaram de ter contato com a pastora após o crime, a sensação é que foram usados para que ela construísse sua imagem. A morte escancarou não só os problemas da família que era vendida como perfeita, como também irregularidades no acolhimento de crianças pelo casal e inconsistências na história que era contada havia anos.
A deputada, hoje desfiliada do PSD, ainda terá problemas com a Procuradoria-Geral da República. A Polícia Civil do Rio encontrou indícios de rachadinha em seu gabinete — quando parte do salário de assessores fica com o político —, além de nepotismo. Flordelis tem filhos afetivos — nunca registrados por ela — lotados em seu gabinete na Câmara dos Deputados. Além disso, a perda do mandato é um risco iminente. Sua prisão só não foi pedida à Justiça em razão de sua imunidade parlamentar. Sem o cargo, para os investigadores, são grandes as chances de Flordelis escrever mais um capítulo de sua história atrás das grades.



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