Referência mundial em coloproctologia, médica ocotogenária abriu caminho para mulheres na área e supera a covid após 54 dias internada, escreve Monica Gugliano em excelente perfil, publicado no Valor em 21/8, sexta-feira.
E lá se vão mais de sete décadas desde que a estudante de medicina foi intimada pelo colega, cirurgião no segundo ano da residência, a fechar o corte no abdômen do homem que acabara de ser operado de hérnia inguinal (na virilha). Assustada, a primeira reação foi a recusa. Até então, nunca “costurara” nenhum dos doentes. Vacilou por alguns segundos.
Foi o tempo necessário para lembrar que já fizera um curso de corte e costura e que, em casa com a mãe, fazia suas próprias roupas. Concluiu que não haveria de ser tão diferente. Em vez dos panos, um tecido humano. Porta agulha e pinça em mãos, fez ponto por ponto, com delicadeza e precisão.
Estava começando na profissão uma médica que viria a ser conhecida e reconhecida mundialmente. Com olhos atentos, blazer claro impecável, poucos enfeites, nenhum fio de cabelo fora de lugar e as mesmas mãos firmes, a gastroenterologista Angelita Habr-Gama, de 88 anos, conta esse episódio neste “À Mesa com o Valor”, feito remotamente por videochamada, com ela e a repórter em suas respectivas casas.
“A cirurgia é um momento de concentração, de dedicação absolutas. Às vezes, só quando termina eu vejo que passei todo o tempo apoiada em uma perna só. Mas, quando termina, não me sinto cansada. Sinto-me relaxada”, afirma. Ela calcula ter feito ou participado de, pelo menos, 50 mil operações.
Angelita é referência internacional na coloproctologia, que estuda as doenças do intestino grosso, do reto e ânus. Na docência, alcançou o topo da carreira na Faculdade de Medicina da USP, como professora titular. Foi a primeira mulher residente de cirurgia do Hospital das Clínicas (HC), onde criou a disciplina de coloproctologia e foi a primeira chefe dos departamentos de cirurgia e gastroenterologia.
Durante a entrevista, ela tem a companhia do marido, o cirurgião Joaquim José Gama-Rodrigues, e da assistente Regina. O prato de Angelita é “linguine nel grana padano” (linguine ao queijo grana padano). A cirurgiã é esguia e não se permite grandes extravagâncias alimentares. Costuma dizer que, depois de uma certa idade, a melhor maneira de se manter em forma é a “dieta da alface”. “Sabe como é essa dieta?”, pergunta, divertindo-se ao relembrar de uma paciente que, quando questionada sobre como fazia para manter a forma, disse: “Só como alface”.
Mas confessa que adora massas, e o linguine entregue pelo Tatini - restaurante fundado na década de 1980 pelo italiano Mario Tatini (1928-2020) que hoje funciona nos Jardins, em São Paulo - é uma de suas favoritas. Uma regalia calórica que se permite com tranquilidade dois meses depois de ter alta do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, onde passou 50 dias intubada, brigando com a covid-19.
Quando chegou ao hospital, os sintomas já indicavam o novo coronavírus. “Os médicos falaram comigo, e nesse momento eu tomei consciência de que minha infecção pelo vírus era muito grave e que eu corria o risco de morrer”, conta. Ficou muito assustada? “Sabe que encarei a possibilidade de morrer com tranquilidade, embora eu ache que ainda não é o momento? Gosto muito da vida e acho que é muito cedo. Tenho ainda muita coisa para fazer - trabalho, amigos, colegas, família.”
Angelita prefere sempre conhecer a realidade. “Gosto de ver a vida como ela é.” O que não significa gostar de ver a morte, portanto o fato de ter passado tanto tempo inconsciente foi um alívio. “Nossos mestres nos ensinam que nunca devemos tirar a esperança do paciente, dizer que é incurável, que vai morrer. A esperança e a vontade de lutar pela vida são importantíssimas.”
Ela diz crer que, com exceções, é melhor não saber quando a morte chegará. “Ao saber que seu tempo de vida é esse ou aquele, muitos não vivem mais, mesmo estando aqui.” Relembra a visita que fez a um paciente, também médico. Comentou como aquele domingo de sol estava lindo. “Ele me disse: ‘Angelita, o dia está lindo para você. Para mim, que estou no hospital fazendo quimioterapia, sabendo que vou morrer daqui a pouco, não é’.”
Esta entrevista, em um sábado à noite em que telejornais anunciavam que mais de mil brasileiros haviam morrido naquelas últimas 24 horas devido à covid-19, induz Angelita a uma reflexão. “O Brasil tem uma medicina de alto nível. Quem tem acesso a ela tem tudo. Mas a grande maioria da população não tem. Eu não sei se teria sobrevivido sem o atendimento que recebi.”
Embora o SUS tenha sido crucial para o atendimento dos mais de 3 milhões de infectados com o coronavírus, essas pessoas tiveram que enfrentar filas enormes. Não foram poucas as que morreram nessa espera para serem atendidas, ou correndo de um hospital para outro, em busca de um leito em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), observa Angelita.
“Nesse tempo, as doenças vão se agravando. Aquele que tem acesso a um bom seguro de saúde, a bons hospitais ou mesmo ao SUS, nos centros de ponta, recebe um atendimento de alto padrão. Quem não tem é muito carente de atendimento médico. Nós temos uma população carente de tudo”, afirma.
Angelita não fala sobre o tratamento e remédios que utilizou. “O que eu poderia dizer é que os protocolos recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, no Brasil, adotados pelos governadores e prefeitos são as medidas corretas.” Entre esses procedimentos, ela destaca o uso de máscaras de proteção, lavar as mãos constantemente, o uso de álcool em gel e o distanciamento social. “A máscara não protege o próprio indivíduo, mas dificulta a contaminação de outras pessoas.”
Mas não acha difícil seguir essas regras no Brasil, onde o presidente da República rejeita o uso de máscaras e recomenda medicamentos não indicados pela OMS? Ela ri por uma fração de segundo, olha para o lado e responde: “Mas as regras existem, e a população tem que ouvir e seguir o que a OMS, as nossas Secretarias Estadual e Municipal de Saúde nos recomendam, e não o que outras pessoas recomendam. Elas devem se orientar pela boa informação, e não pelo que ouvem em qualquer lugar”.
Angelita é neta e filha de libaneses, imigrantes que deixaram o Líbano, no fim do século XIX, quase sempre com destino aos EUA. Seus avós Carlos e Malak partiram da terra natal em 1908 com a filha, Nagibi, de dois anos, para “fazer a vida na América”. Foi um desvio do destino provavelmente causado pelo vento oceânico que os impediu de chegarem ao porto de Nova York.
Carlos, exposto ao ar salgado, teve uma inflamação nos olhos. Sem saberem exatamente do que se tratava, as autoridades sanitárias em Marselha, na França, onde o navio em que viajavam fez uma escala, impediram o casal de prosseguir a viagem. Decididos a não voltar ao Líbano, lembraram de alguns parentes no Brasil e para cá vieram. Moraram um tempo no Maranhão e dali foram para Belém do Pará. Por fim, se mudaram para Ilha de Marajó, onde Angelita nasceu e cresceu, até que em 1940 a família se estabeleceu em São Paulo, na Vila Mariana.
Na cidade, a jovem Angelita levou uma vida semelhante às de suas colegas com quem completou os estudos até o científico (curso equivalente ao ensino médio). Foi então que, por exclusão, acabou por prestar vestibular para a Faculdade de Medicina da USP, em 1952. “Meus pais não concordaram. Acharam aquilo um absurdo. Mas, desde muito jovem, quando decido alguma coisa, não tem mais conversa.” Seus pais não pensavam assim: “Ora, afinal por que ela não cursava o magistério (a opção natural das moças daquele tempo)?”.
Antes dessa opção, chegara a pensar em engenharia. Mas não tinha afinidade com desenho. A medicina, no entanto, se enquadrava no gosto por biologia. “Fosse o que fosse, naquela época, uma mulher em qualquer curso desses sempre causava espanto.” Ela enfrentou o vestibular e, entre 600 candidatos, ficou em oitavo lugar.
E a vida seguiu até que, no sexto ano, os alunos começavam o internato no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e, logo depois, deveriam escolher uma especialidade. Para Angelita foi outro momento difícil. Após estagiar em diferentes especialidades, com nomes hoje vistos como pioneiros em suas áreas, ela não encontrara uma pela qual se apaixonasse. “Talvez soubesse. Mas precisei daquele colega que me mandou fechar a barriga do paciente e, para me estimular, falou: ‘Fecha, você leva jeito’.” À época, era conhecida como “dedal de ouro”.
O título não se referia às suas habilidades cirúrgicas. Era uma distinção que alcançara nos “Shows Medicina”, atividade do centro acadêmico com apresentações e peças de teatro. Ao começar a participar, Angelita achara as fantasias horríveis. Com as colegas, fez outros trajes. “Passaram a nos chamar de as artistas do ‘Show Medicina’.” Na formatura, ganhou uma flâmula com o título que, hoje, figura ao lado das suas dezenas de títulos, homenagens e prêmios.
A ideia de ser cirurgiã virou decisão madura. Só que ultrapassar a barreira construída por homens, então os donos da especialidade, não seria simples. Ela recorre ao tênis, esporte que pratica até hoje, para explicar. “Há um instante em que você bate na bola, e ela voa em direção ao campo adversário. São menos que segundos de respiração suspensa. Mas ela para nas cordas. Equilibra-se. Pode cair no seu campo ou no de seu adversário. Está lançada a sorte da partida. A vida depende da nossa sorte. Não me envergonho em dizer que sempre tive sorte.”
Sorte, sim. Mas esforço, estudo e obstinação, contam seus colegas, foram decisivos. A cirurgia, naquela época, era especialidade proibida às mulheres. Por que não tinham capacidade para a função? Não. Porque os cirurgiões achavam “desperdício” investir tempo e recursos na formação de uma mulher em especialidade tão nobre. “Foi uma guerra, uma epopeia. Você acredita que não queriam nem deixar que eu me inscrevesse no concurso?” Porém, ela diz que estava determinada e considerava que, se já dobrara os pais na escolha da profissão, não seriam os senhores de jaleco branco e ar sisudo que a impediriam de seguir em frente. “Sabe que minha mãe era uma mulher muito determinada? Puxei isso dela, e dizem que sou assim desde que nasci. Ela morreu com 97 anos e me disse: ‘Estou morrendo sob protesto. É muito cedo para morrer’.”
Por que não podia concorrer a uma vaga na residência da cirurgia? As vagas eram disputadíssimas. Portanto, por que perder uma delas com uma mulher que, no raciocínio masculino, operaria durante algum tempo e depois abandonaria a profissão para casar e ter filhos? Nessa lógica, seria melhor destinar as vagas aos homens, que teriam a mulher para cuidar da casa e dos filhos, enquanto eles dedicavam sua vida ao trabalho. Um dos médicos lhe disse com franqueza: “Angelita, você é uma esplêndida aluna. Esforçada, leva tudo muito a sério. Mas residência em cirurgia, não! Não mesmo! Só temos oito vagas e, claro, você vai casar, ter filhos, cuidar deles, se afastar por anos. Vai haver sempre um vácuo. Conhecemos bem essa história...”.
Angelita conta que ficou furiosa e retrucou com a firmeza que lhe é característica: “Você não entende que eu não quero a clínica. Quero a cirurgia, e é o que vou fazer”. Insistiu e apelou em todas as instâncias da faculdade. Até que acabaram por concordar. Foi pressão por todos os lados, até que veio o concurso. A concorrência foi acirrada. “Éramos 40 jovens formados com a mesma volúpia e ambição em nos tornarmos cirurgiões. Passei em primeiro lugar, tirei nota 10 na prova. O assunto estava encerrado.”
A escolha profissional foi determinante para que Angelita tomasse uma decisão que costuma ser importante na vida de uma mulher. Ela até poderia se casar. Mas, de preferência, com um parceiro que tivesse a mesma profissão, tivesse mais ou menos a qualificação que ela e que não quisesse ter filhos. “Há carreiras que não permitem essas duas tarefas, e é preciso abrir mão de alguma delas”, afirma. “Eu optei pela cirurgia e abri mão da maternidade. Quando pensei em casar, também busquei um homem que pensasse como eu. Costumo dizer que a maternidade é equivalente a outra profissão.”
Angelita está casada desde 1964 com Joaquim José Gama-Rodrigues, colega da FMUSP e também dono de um currículo extenso, que inclui a chefia da disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo da FMUSP e a presidência do conselho curador da Fundação Oncocentro de São Paulo. “O marido tem que estar de acordo, e a mulher precisa saber o que ela quer da vida. Nós não temos filhos, mas temos uma família muito grande, sobrinhos extremamente dedicados. Saímos para jantar com eles, viajamos com eles. Então nós não sentimos falta de ter filhos.”
Sem a responsabilidade de criar e educar filhos, Angelita mergulhou de corpo e alma na cirurgia e até hoje opera. “A cirurgia é uma especialidade maravilhosa que necessita de muita dedicação”, diz. Segundo ela, dificilmente há uma cirurgia igual a outra. “Já fizemos cirurgias que passamos a noite inteira operando. Tem cirurgias que ficam gravadas na mente, e não se esquece delas. Eu costumo dizer aos meus pacientes que sou uma pessoa de muita sorte. Felizmente as complicações entre os pacientes que opero não são muito comuns.”
A carreira que construiu não deixa dúvidas de que acertou ao escolher dedicar sua vida à medicina. Angelita é uma referência no tratamento e nas cirurgias de coloproctologia. Fez descobertas que melhoraram e revolucionaram os procedimentos usados nos pacientes com câncer, decisivos para salvar a vida de muitos deles. Seu nome é reverenciado por profissionais, assim como também pelos seus milhares de alunos. Depois de tantos anos, rompendo barreiras em meios eminentemente masculino, Angelita se considera uma feminista? “Não, e hoje a medicina é muito menos machista. Mas eu não creio no feminismo. Creio e defendo que se deem as mesmas oportunidades a todos.”
Angelita já ganhou mais de 50 prêmios nacionais e internacionais. A lista de suas realizações e conquistas é longa: coordenadora no Brasil do Programa de Prevenção do Câncer Colorretal pela Organização Mundial de Gastroenterologia (Omge); membro honorária no American College of Surgeons e primeira mulher a integrar o grupo de 17 membros honorários da European Surgical Association. Fundou a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino (Abrapreci) e preside sociedades científicas.
“Nunca sonhei com tudo isso.” Ela conta que, quando começou a residência, sua preocupação única era se tornar uma boa cirurgiã e vencer os obstáculos que surgiam à sua frente. No início da residência, um dos seus mestres, o clínico cirurgião Alípio Corrêa Neto (1898-1988), resolveu estimular a jovem aluna e lhe disse: “Menina, você pode fazer cirurgia, sim! E vai ser muito bom! Não desanime. Vai ter muito sucesso e grande sorte. Você tem habilidade, é estudiosa. No começo de sua carreira, vai operar somente mulheres - os homens não vão querer ser operados por você. Mas, como mulher não morre, mulher é resistente, você quase não vai amargar óbitos e seu índice de sucesso nas operações vai disparar. Vá em frente!”.
Operar ao lado dela, comentam auxiliares, é uma experiência única. “Quando entro na sala, me concentro e penso que devo entregar o melhor de mim à pessoa que entregou sua vida em minhas mãos”, diz. A sala onde trabalha é absolutamente silenciosa. Ela não gosta nem de conversas, nem de música. Comentários são reduzidos ao mínimo necessário. Suas cirurgias são “limpas”: não admite que se joguem gazes ou instrumentos no chão. Tampouco permite que as enfermeiras sejam advertidas acima do tom. “A cirurgia é um momento da mais absoluta concentração.”
Mas, quando acaba, sempre há lugar para o bom humor. Cai em gargalhadas quando recorda de um paciente que, acostumado a assistir a seriados e programas médicos de TV, lhe telefonou dias após ser operado por ela: “Doutora, a senhora tem certeza de que deu tudo certo e que a senhora pôs todas as minhas tripas para dentro, no lugar certo?”. Passados mais de 50 anos desde que começou a operar, Angelita crê que nos dias atuais atende mais homens do que mulheres. Brincando, diz ter certeza de que nunca esqueceu nada dentro deles.
E lá se vão mais de sete décadas desde que a estudante de medicina foi intimada pelo colega, cirurgião no segundo ano da residência, a fechar o corte no abdômen do homem que acabara de ser operado de hérnia inguinal (na virilha). Assustada, a primeira reação foi a recusa. Até então, nunca “costurara” nenhum dos doentes. Vacilou por alguns segundos.
Foi o tempo necessário para lembrar que já fizera um curso de corte e costura e que, em casa com a mãe, fazia suas próprias roupas. Concluiu que não haveria de ser tão diferente. Em vez dos panos, um tecido humano. Porta agulha e pinça em mãos, fez ponto por ponto, com delicadeza e precisão.
Estava começando na profissão uma médica que viria a ser conhecida e reconhecida mundialmente. Com olhos atentos, blazer claro impecável, poucos enfeites, nenhum fio de cabelo fora de lugar e as mesmas mãos firmes, a gastroenterologista Angelita Habr-Gama, de 88 anos, conta esse episódio neste “À Mesa com o Valor”, feito remotamente por videochamada, com ela e a repórter em suas respectivas casas.
“A cirurgia é um momento de concentração, de dedicação absolutas. Às vezes, só quando termina eu vejo que passei todo o tempo apoiada em uma perna só. Mas, quando termina, não me sinto cansada. Sinto-me relaxada”, afirma. Ela calcula ter feito ou participado de, pelo menos, 50 mil operações.
Angelita é referência internacional na coloproctologia, que estuda as doenças do intestino grosso, do reto e ânus. Na docência, alcançou o topo da carreira na Faculdade de Medicina da USP, como professora titular. Foi a primeira mulher residente de cirurgia do Hospital das Clínicas (HC), onde criou a disciplina de coloproctologia e foi a primeira chefe dos departamentos de cirurgia e gastroenterologia.
Durante a entrevista, ela tem a companhia do marido, o cirurgião Joaquim José Gama-Rodrigues, e da assistente Regina. O prato de Angelita é “linguine nel grana padano” (linguine ao queijo grana padano). A cirurgiã é esguia e não se permite grandes extravagâncias alimentares. Costuma dizer que, depois de uma certa idade, a melhor maneira de se manter em forma é a “dieta da alface”. “Sabe como é essa dieta?”, pergunta, divertindo-se ao relembrar de uma paciente que, quando questionada sobre como fazia para manter a forma, disse: “Só como alface”.
Mas confessa que adora massas, e o linguine entregue pelo Tatini - restaurante fundado na década de 1980 pelo italiano Mario Tatini (1928-2020) que hoje funciona nos Jardins, em São Paulo - é uma de suas favoritas. Uma regalia calórica que se permite com tranquilidade dois meses depois de ter alta do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, onde passou 50 dias intubada, brigando com a covid-19.
Quando chegou ao hospital, os sintomas já indicavam o novo coronavírus. “Os médicos falaram comigo, e nesse momento eu tomei consciência de que minha infecção pelo vírus era muito grave e que eu corria o risco de morrer”, conta. Ficou muito assustada? “Sabe que encarei a possibilidade de morrer com tranquilidade, embora eu ache que ainda não é o momento? Gosto muito da vida e acho que é muito cedo. Tenho ainda muita coisa para fazer - trabalho, amigos, colegas, família.”
Angelita prefere sempre conhecer a realidade. “Gosto de ver a vida como ela é.” O que não significa gostar de ver a morte, portanto o fato de ter passado tanto tempo inconsciente foi um alívio. “Nossos mestres nos ensinam que nunca devemos tirar a esperança do paciente, dizer que é incurável, que vai morrer. A esperança e a vontade de lutar pela vida são importantíssimas.”
Ela diz crer que, com exceções, é melhor não saber quando a morte chegará. “Ao saber que seu tempo de vida é esse ou aquele, muitos não vivem mais, mesmo estando aqui.” Relembra a visita que fez a um paciente, também médico. Comentou como aquele domingo de sol estava lindo. “Ele me disse: ‘Angelita, o dia está lindo para você. Para mim, que estou no hospital fazendo quimioterapia, sabendo que vou morrer daqui a pouco, não é’.”
Esta entrevista, em um sábado à noite em que telejornais anunciavam que mais de mil brasileiros haviam morrido naquelas últimas 24 horas devido à covid-19, induz Angelita a uma reflexão. “O Brasil tem uma medicina de alto nível. Quem tem acesso a ela tem tudo. Mas a grande maioria da população não tem. Eu não sei se teria sobrevivido sem o atendimento que recebi.”
Embora o SUS tenha sido crucial para o atendimento dos mais de 3 milhões de infectados com o coronavírus, essas pessoas tiveram que enfrentar filas enormes. Não foram poucas as que morreram nessa espera para serem atendidas, ou correndo de um hospital para outro, em busca de um leito em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), observa Angelita.
“Nesse tempo, as doenças vão se agravando. Aquele que tem acesso a um bom seguro de saúde, a bons hospitais ou mesmo ao SUS, nos centros de ponta, recebe um atendimento de alto padrão. Quem não tem é muito carente de atendimento médico. Nós temos uma população carente de tudo”, afirma.
Angelita não fala sobre o tratamento e remédios que utilizou. “O que eu poderia dizer é que os protocolos recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, no Brasil, adotados pelos governadores e prefeitos são as medidas corretas.” Entre esses procedimentos, ela destaca o uso de máscaras de proteção, lavar as mãos constantemente, o uso de álcool em gel e o distanciamento social. “A máscara não protege o próprio indivíduo, mas dificulta a contaminação de outras pessoas.”
Mas não acha difícil seguir essas regras no Brasil, onde o presidente da República rejeita o uso de máscaras e recomenda medicamentos não indicados pela OMS? Ela ri por uma fração de segundo, olha para o lado e responde: “Mas as regras existem, e a população tem que ouvir e seguir o que a OMS, as nossas Secretarias Estadual e Municipal de Saúde nos recomendam, e não o que outras pessoas recomendam. Elas devem se orientar pela boa informação, e não pelo que ouvem em qualquer lugar”.
Angelita é neta e filha de libaneses, imigrantes que deixaram o Líbano, no fim do século XIX, quase sempre com destino aos EUA. Seus avós Carlos e Malak partiram da terra natal em 1908 com a filha, Nagibi, de dois anos, para “fazer a vida na América”. Foi um desvio do destino provavelmente causado pelo vento oceânico que os impediu de chegarem ao porto de Nova York.
Carlos, exposto ao ar salgado, teve uma inflamação nos olhos. Sem saberem exatamente do que se tratava, as autoridades sanitárias em Marselha, na França, onde o navio em que viajavam fez uma escala, impediram o casal de prosseguir a viagem. Decididos a não voltar ao Líbano, lembraram de alguns parentes no Brasil e para cá vieram. Moraram um tempo no Maranhão e dali foram para Belém do Pará. Por fim, se mudaram para Ilha de Marajó, onde Angelita nasceu e cresceu, até que em 1940 a família se estabeleceu em São Paulo, na Vila Mariana.
Na cidade, a jovem Angelita levou uma vida semelhante às de suas colegas com quem completou os estudos até o científico (curso equivalente ao ensino médio). Foi então que, por exclusão, acabou por prestar vestibular para a Faculdade de Medicina da USP, em 1952. “Meus pais não concordaram. Acharam aquilo um absurdo. Mas, desde muito jovem, quando decido alguma coisa, não tem mais conversa.” Seus pais não pensavam assim: “Ora, afinal por que ela não cursava o magistério (a opção natural das moças daquele tempo)?”.
Antes dessa opção, chegara a pensar em engenharia. Mas não tinha afinidade com desenho. A medicina, no entanto, se enquadrava no gosto por biologia. “Fosse o que fosse, naquela época, uma mulher em qualquer curso desses sempre causava espanto.” Ela enfrentou o vestibular e, entre 600 candidatos, ficou em oitavo lugar.
E a vida seguiu até que, no sexto ano, os alunos começavam o internato no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e, logo depois, deveriam escolher uma especialidade. Para Angelita foi outro momento difícil. Após estagiar em diferentes especialidades, com nomes hoje vistos como pioneiros em suas áreas, ela não encontrara uma pela qual se apaixonasse. “Talvez soubesse. Mas precisei daquele colega que me mandou fechar a barriga do paciente e, para me estimular, falou: ‘Fecha, você leva jeito’.” À época, era conhecida como “dedal de ouro”.
O título não se referia às suas habilidades cirúrgicas. Era uma distinção que alcançara nos “Shows Medicina”, atividade do centro acadêmico com apresentações e peças de teatro. Ao começar a participar, Angelita achara as fantasias horríveis. Com as colegas, fez outros trajes. “Passaram a nos chamar de as artistas do ‘Show Medicina’.” Na formatura, ganhou uma flâmula com o título que, hoje, figura ao lado das suas dezenas de títulos, homenagens e prêmios.
A ideia de ser cirurgiã virou decisão madura. Só que ultrapassar a barreira construída por homens, então os donos da especialidade, não seria simples. Ela recorre ao tênis, esporte que pratica até hoje, para explicar. “Há um instante em que você bate na bola, e ela voa em direção ao campo adversário. São menos que segundos de respiração suspensa. Mas ela para nas cordas. Equilibra-se. Pode cair no seu campo ou no de seu adversário. Está lançada a sorte da partida. A vida depende da nossa sorte. Não me envergonho em dizer que sempre tive sorte.”
Sorte, sim. Mas esforço, estudo e obstinação, contam seus colegas, foram decisivos. A cirurgia, naquela época, era especialidade proibida às mulheres. Por que não tinham capacidade para a função? Não. Porque os cirurgiões achavam “desperdício” investir tempo e recursos na formação de uma mulher em especialidade tão nobre. “Foi uma guerra, uma epopeia. Você acredita que não queriam nem deixar que eu me inscrevesse no concurso?” Porém, ela diz que estava determinada e considerava que, se já dobrara os pais na escolha da profissão, não seriam os senhores de jaleco branco e ar sisudo que a impediriam de seguir em frente. “Sabe que minha mãe era uma mulher muito determinada? Puxei isso dela, e dizem que sou assim desde que nasci. Ela morreu com 97 anos e me disse: ‘Estou morrendo sob protesto. É muito cedo para morrer’.”
Por que não podia concorrer a uma vaga na residência da cirurgia? As vagas eram disputadíssimas. Portanto, por que perder uma delas com uma mulher que, no raciocínio masculino, operaria durante algum tempo e depois abandonaria a profissão para casar e ter filhos? Nessa lógica, seria melhor destinar as vagas aos homens, que teriam a mulher para cuidar da casa e dos filhos, enquanto eles dedicavam sua vida ao trabalho. Um dos médicos lhe disse com franqueza: “Angelita, você é uma esplêndida aluna. Esforçada, leva tudo muito a sério. Mas residência em cirurgia, não! Não mesmo! Só temos oito vagas e, claro, você vai casar, ter filhos, cuidar deles, se afastar por anos. Vai haver sempre um vácuo. Conhecemos bem essa história...”.
Angelita conta que ficou furiosa e retrucou com a firmeza que lhe é característica: “Você não entende que eu não quero a clínica. Quero a cirurgia, e é o que vou fazer”. Insistiu e apelou em todas as instâncias da faculdade. Até que acabaram por concordar. Foi pressão por todos os lados, até que veio o concurso. A concorrência foi acirrada. “Éramos 40 jovens formados com a mesma volúpia e ambição em nos tornarmos cirurgiões. Passei em primeiro lugar, tirei nota 10 na prova. O assunto estava encerrado.”
A escolha profissional foi determinante para que Angelita tomasse uma decisão que costuma ser importante na vida de uma mulher. Ela até poderia se casar. Mas, de preferência, com um parceiro que tivesse a mesma profissão, tivesse mais ou menos a qualificação que ela e que não quisesse ter filhos. “Há carreiras que não permitem essas duas tarefas, e é preciso abrir mão de alguma delas”, afirma. “Eu optei pela cirurgia e abri mão da maternidade. Quando pensei em casar, também busquei um homem que pensasse como eu. Costumo dizer que a maternidade é equivalente a outra profissão.”
Angelita está casada desde 1964 com Joaquim José Gama-Rodrigues, colega da FMUSP e também dono de um currículo extenso, que inclui a chefia da disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo da FMUSP e a presidência do conselho curador da Fundação Oncocentro de São Paulo. “O marido tem que estar de acordo, e a mulher precisa saber o que ela quer da vida. Nós não temos filhos, mas temos uma família muito grande, sobrinhos extremamente dedicados. Saímos para jantar com eles, viajamos com eles. Então nós não sentimos falta de ter filhos.”
Sem a responsabilidade de criar e educar filhos, Angelita mergulhou de corpo e alma na cirurgia e até hoje opera. “A cirurgia é uma especialidade maravilhosa que necessita de muita dedicação”, diz. Segundo ela, dificilmente há uma cirurgia igual a outra. “Já fizemos cirurgias que passamos a noite inteira operando. Tem cirurgias que ficam gravadas na mente, e não se esquece delas. Eu costumo dizer aos meus pacientes que sou uma pessoa de muita sorte. Felizmente as complicações entre os pacientes que opero não são muito comuns.”
A carreira que construiu não deixa dúvidas de que acertou ao escolher dedicar sua vida à medicina. Angelita é uma referência no tratamento e nas cirurgias de coloproctologia. Fez descobertas que melhoraram e revolucionaram os procedimentos usados nos pacientes com câncer, decisivos para salvar a vida de muitos deles. Seu nome é reverenciado por profissionais, assim como também pelos seus milhares de alunos. Depois de tantos anos, rompendo barreiras em meios eminentemente masculino, Angelita se considera uma feminista? “Não, e hoje a medicina é muito menos machista. Mas eu não creio no feminismo. Creio e defendo que se deem as mesmas oportunidades a todos.”
Angelita já ganhou mais de 50 prêmios nacionais e internacionais. A lista de suas realizações e conquistas é longa: coordenadora no Brasil do Programa de Prevenção do Câncer Colorretal pela Organização Mundial de Gastroenterologia (Omge); membro honorária no American College of Surgeons e primeira mulher a integrar o grupo de 17 membros honorários da European Surgical Association. Fundou a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino (Abrapreci) e preside sociedades científicas.
“Nunca sonhei com tudo isso.” Ela conta que, quando começou a residência, sua preocupação única era se tornar uma boa cirurgiã e vencer os obstáculos que surgiam à sua frente. No início da residência, um dos seus mestres, o clínico cirurgião Alípio Corrêa Neto (1898-1988), resolveu estimular a jovem aluna e lhe disse: “Menina, você pode fazer cirurgia, sim! E vai ser muito bom! Não desanime. Vai ter muito sucesso e grande sorte. Você tem habilidade, é estudiosa. No começo de sua carreira, vai operar somente mulheres - os homens não vão querer ser operados por você. Mas, como mulher não morre, mulher é resistente, você quase não vai amargar óbitos e seu índice de sucesso nas operações vai disparar. Vá em frente!”.
Operar ao lado dela, comentam auxiliares, é uma experiência única. “Quando entro na sala, me concentro e penso que devo entregar o melhor de mim à pessoa que entregou sua vida em minhas mãos”, diz. A sala onde trabalha é absolutamente silenciosa. Ela não gosta nem de conversas, nem de música. Comentários são reduzidos ao mínimo necessário. Suas cirurgias são “limpas”: não admite que se joguem gazes ou instrumentos no chão. Tampouco permite que as enfermeiras sejam advertidas acima do tom. “A cirurgia é um momento da mais absoluta concentração.”
Mas, quando acaba, sempre há lugar para o bom humor. Cai em gargalhadas quando recorda de um paciente que, acostumado a assistir a seriados e programas médicos de TV, lhe telefonou dias após ser operado por ela: “Doutora, a senhora tem certeza de que deu tudo certo e que a senhora pôs todas as minhas tripas para dentro, no lugar certo?”. Passados mais de 50 anos desde que começou a operar, Angelita crê que nos dias atuais atende mais homens do que mulheres. Brincando, diz ter certeza de que nunca esqueceu nada dentro deles.
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