Pular para o conteúdo principal

Brasil registra 6 abortos por dia em meninas entre 10 e 14 anos estupradas

A interrupção da gravidez de uma criança que foi abusada sexualmente no Espírito Santo virou campo de batalha no Brasil e expôs uma situação bem comum no país; a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas, escrevem Matheus Magenta e Laís Alegretti em reportagem publicada no site da revista Época dia 17/8. Continua a seguir.

O aborto realizado legalmente em uma criança de 10 anos que foi estuprada no Espírito Santo virou campo de batalha no Brasil. Após autorização judicial, a menina foi levada a outro Estado no domingo (16/08) para interrupção da gravidez. Ela relatou que sofria abusos sexuais do tio desde os 6 anos e que não contava para os outros porque ele a ameaçava. O tio da criança está foragido.
Embora o caso tenha virado pano de fundo de uma briga ideológica e venha sendo tratado como algo inédito, dados oficiais revelam que ocorrem no Brasil, em média, seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos que engravidaram após serem estupradas.
Esses casos envolvem procedimentos feitos no hospital e internações após abortos espontâneos ou realizados em casa, por exemplo.
Se o número parece alto para quem não acompanha o assunto, ele é pequeno perto da quantidade de estupros de crianças e adolescentes que ocorrem no Brasil: a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.
"Há uma naturalização desta violência. O pessoal já nem presta mais atenção em menina de 13 ou 14 anos grávida. O pessoal tá começando a prestar atenção na gravidez de 10, 11 anos de idade", diz a advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.
Ela defende, ainda, que só faz sentido tratar desse assunto a partir de um caso específico se for para mostrar que essa violência é muito mais comum do que se imagina. "É uma história tristíssima. E infelizmente é uma de muitas, o Brasil está lotado de casos como este."
Segundo dados tabulados pela BBC News Brasil no Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, o Brasil registra ao menos seis abortos por dia em meninas de 10 a 14 anos, em média.
Só em 2020, foram ao menos 642 internações. O país registra também uma média anual de 26 mil partos de mães com idades entre 10 a 14 anos.
Desde 2008, foram registrados quase 32 mil abortos envolvendo garotas dessa faixa etária.
Se forem consideradas as 20 mil internações nas quais constam dados de raça ou cor de pele, 13,2 mil envolviam meninas pardas (66%) e 5,6 mil, de brancas (28%). Esses dados incluem abortos realizados por razões médicas, espontâneos e de outros tipos.
Das 20 cidades com mais internações em números absolutos, todas são capitais, exceto Duque de Caxias (RJ), Feira de Santana (BA) e Campos de Goytacazes (RJ). Não há dados disponíveis sobre o sistema privado de saúde.
Casos de estupro (não só de crianças) são uma das três situações em que o aborto é permitido no Brasil. As outras duas são anencefalia ou risco de vida para a mãe.
Nos últimos dez anos, o Brasil registrou, em média, uma interrupção de gravidez por razões médicas por semana envolvendo meninas de 10 a 14 anos. Em 2020, foram ao menos 34 ocorrências nesta faixa etária e 1.022 incluindo mulheres de todas as idades.
"Toda menina grávida de até 14 anos foi estuprada, não importa a circunstância. O estupro de vulnerável é justamente em função da idade", aponta Luciana Temer, que também é doutora em direito pela PUC-SP e ex-secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo.
EXPOSIÇÃO ILEGAL
Violando a legislação que protege crianças e adolescentes no Brasil, a militante de extrema direita Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, divulgou detalhes que podem identificar o caso, inclusive a localização do hospital em que a criança estava no momento.
Luciana Temer destaca que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) protege a identificação de todas as crianças e adolescentes. "O ECA protege inclusive o nome do menor infrator, imagina a menina vítima. Não podia dar nome, nem o hospital, nenhum dado."
No local, um grupo de pessoas fez um protesto contra o aborto legal da criança estuprada e chegou a gritar "assassino" para tentar atacar o médico responsável pelo procedimento autorizado pela Justiça, segundo vídeos divulgados pela internet.
Por outro lado, também foram ao local mulheres que apoiam o direito da criança de realizar o aborto legal. Elas defenderam que a vida da menina está em risco e que o aborto legal é um direito dela.
"Não vamos abrir mão da vida de uma menina de 10 anos. Gravidez forçada é tortura. Gravidez aos 10 anos é morte. Aborto legal, seguro e gratuito para não morrer", repetiu o grupo.
Luciana Temer aponta que a grande exposição do caso tende a aumentar o estigma em relação à vítima de violência sexual.
"Toda violência sexual, principalmente contra meninas e meninos muito novos, tem consequências sérias para eles e para as famílias. E quanto mais notabilizado for o caso, pior. Esta menina vai ficar estigmatizada, essa família vai ficar estigmatizada com toda essa repercussão", diz.
"Se eu fosse avó pediria indenização financeira, inclusive por danos morais, para quem divulgou. É um absurdo isso. Virou briga ideológica e radical."



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...