Marcelo Roubicek escreve na Nexo uma reportagem sobre a saída de membros da equipe de Paulo Guedes na semana que passou. Abaixo a íntegra da matéria.
Saída de secretários importantes do Ministério da Economia ocorre em meio à pressão sobre gastos públicos. Ao ‘Nexo’, especialistas avaliam o futuro da cartilha liberal de Paulo Guedes
O ministro Paulo Guedes anunciou na terça-feira (11) a saída de dois nomes importantes de sua equipe econômica. Salim Mattar, da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, e Paulo Uebel, da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, pediram demissão.
De acordo com Guedes, Mattar saiu pela dificuldade de avançar o projeto de privatizações. Já Uebel teria pedido demissão por insatisfação após o governo adiar os planos de reforma administrativa, que deve ficar para 2021. Ao anunciar as saídas à imprensa, o próprio ministro admitiu que há uma debandada no Ministério da Economia.
As novas baixas levam a cinco o total de saídas importantes da equipe de Guedes em 2020. Além de Mattar e Uebel, deixaram o governo o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, e o diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda, Caio Megale.
O papel dos que saíram
Os cinco pedidos de demissão, que aconteceram em um período de dois meses, ocorrem num momento de crise econômica e ampliação de gastos do governo brasileiro devido à pandemia do novo coronavírus. O quadro forçou um abandono – a princípio, temporário – da agenda de controle de despesas e redução da participação do Estado na economia.
Em meio à guinada econômica do governo, a debandada do ministério atinge nomes mais ligados à agenda liberal e austera. Mansueto Almeida, por exemplo, era tido no mercado financeiro como o “fiador” do ajuste fiscal brasileiro, e considerado um dos nomes mais fortes da equipe de Paulo Guedes.
Mansueto ocupava o comando da Secretaria do Tesouro desde o governo de Michel Temer (2016-2018), e permaneceu no posto sob Jair Bolsonaro. Seu foco principal era o equilíbrio das contas públicas, que registram deficits anuais consecutivos desde 2014. No governo de Bolsonaro, era tido por técnicos do Ministério da Economia como o “bombeiro do ajuste” fiscal. Isso porque teve atuação de controlar “incêndios” dentro do governo relacionados a possíveis aumentos de gastos, incentivos fiscais ou subsídios – sempre no sentido de aconselhar contra a expansão de gastos.
Salim Mattar é outro membro importante a sair do governo. Desde o início do mandato de Bolsonaro e da gestão de Guedes, ele foi uma das principais vozes defensoras das privatizações. O empresário, fundador e sócio da locadora de veículos Localiza, pediu demissão em um momento de paralisação parcial dos processos de privatização. Em março, ainda no início da crise, o próprio Mattar disse que a pandemia atrapalhava os planos nesse sentido. Em texto publicado no site Brazil Journal na quarta-feira (12), o ex-secretário reforçou o que disse Paulo Guedes: saiu por conta da dificuldade de implementar as privatizações.
Segundo apurou o blog da jornalista Ana Flor, da GloboNews, a saída de Rubem Novaes da presidência do Banco do Brasil também estaria ligada à lentidão das privatizações. Novaes era um defensor da venda do banco à iniciativa privada. Na reunião ministerial de 22 de abril, que teve vídeo publicado por decisão do Supremo, Guedes disse sobre o Banco do Brasil que “tem que vender essa porra logo”. Na mesma reunião, Bolsonaro respondeu, afirmando que a privatização do banco só entraria na agenda após as eleições de 2022.
A agenda econômica em disputa
O momento de crise pressiona a agenda liberal de Paulo Guedes. A pandemia deixou milhões de brasileiros desamparados e fragilizou empresas, obrigando o governo a ampliar gastos. A resposta contou também com a iniciativa do Congresso Nacional, que aprovou o afrouxamento de regras fiscais – via decreto de calamidade pública e orçamento de guerra – e articulou a criação do auxílio emergencial, principal política assistencial do governo na pandemia.
O quadro de 2020 levou alas do governo – como a dos militares – a defenderem a continuidade de uma elevação dos gastos públicos. Desde abril, por exemplo, os ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e general Walter Braga Netto, da Casa Civil, articulam o Plano Pró-Brasil, um programa de investimentos em obras públicas visando a recuperação da atividade econômica no pós-pandemia. O plano é reprovado por Paulo Guedes, que não estava presente na primeira apresentação do programa à imprensa. O ministro crê que os investimentos devem partir da iniciativa privada.
Dentro do governo, há também pressão para que o teto de gastos, uma das principais regras fiscais do governo federal, seja flexibilizado. Isso daria espaço para o governo fazer investimentos de longo prazo sem precisar fazer cortes em outras áreas do Orçamento.
Em Brasília, também circula a ideia de estender o período de calamidade pública para 2021 – a princípio, a calamidade vale só até 31 de dezembro de 2020. A prorrogação tiraria amarras fiscais do governo e liberaria um regime de gastos mais altos por mais um ano.
Nesse cenário, a equipe de Paulo Guedes anunciou o lançamento do Renda Brasil, um programa social que reformula e unifica benefícios sociais como o Bolsa Família, ao mesmo tempo que extingue outros gastos tidos pelo governo como ineficientes, como o abono salarial. O novo programa deve elevar os gastos do governo, pressionando ainda mais o teto. De acordo com reportagem publicada pela revista Época em 31 de julho, o Renda Brasil busca “dar a assinatura” do Ministério da Economia na política social do governo.
O recado de Guedes
Na fala a jornalistas em que anunciou a saída de Mattar e Uebel, Guedes abordou o assunto da pressão sobre o teto de gastos, norma que, resumidamente, limita os gastos reais (ajustados pela inflação) do governo a um nível pré-determinado. O ministro disse que o abandono da regra fiscal poderá colocar Bolsonaro em uma posição política delicada.
O controle de gastos e a redução do papel do Estado na economia são o cerne do discurso de Guedes desde a campanha eleitoral de 2018. O ministro teve papel central para que Bolsonaro conquistasse o apoio do mercado financeiro rumo à vitória nas urnas.
Mesmo sob pressão, Guedes mantém a defesa da agenda de controle de gastos e respeito às regras fiscais. A ideia conta também com apoio do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que deixa claro que é contra a flexibilização do teto de gastos e que não irá pautar a prorrogação da calamidade pública. Na terça-feira (11), o jornal O Estado de S. Paulo revelou que a equipe de Guedes prepara uma força-tarefa para apresentar a deputados e senadores argumentos contrários a mudanças no teto e ao aumento dos gastos.
As demonstrações públicas de Bolsonaro
Na quarta-feira (12), depois da debandada, Jair Bolsonaro fez uma reunião com Guedes, outros auxiliares do governo e os presidentes da Câmara e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), além de representantes do Congresso, para discutir o teto de gastos. Em seguida, fez um pronunciamento na entrada do Palácio da Alvorada para sinalizar apoio à agenda de Guedes.
Maia e Alcolumbre também reafirmaram o compromisso com a regra fiscal. Estavam presentes também os ministros da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que vinha defendendo o aumento de gastos públicos na crise.
No início do dia, o presidente já havia publicado uma mensagem nas redes sociais em que apoiava o ministro da Economia e defendia processos de privatização. “O Estado está inchado e deve se desfazer de suas empresas deficitárias, bem como daquelas que podem ser melhor administradas pela iniciativa privada”, escreveu.
A defesa das privatizações e do teto de gastos por Jair Bolsonaro vai na contramão de uma fala recente de Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente e senador pelo Republicanos do Rio de Janeiro. Em entrevista ao jornal O Globo publicada em 5 de agosto, Flávio defendeu a ampliação dos gastos, contrária à agenda de Guedes.
Duas análises sobre a debandada
O Nexo conversou com especialistas para entender o impacto que a debandada no Ministério da Economia tem sobre o futuro da agenda econômica do governo.
Celina Ramalho, professora de economia da FGV-EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas)
Carlos Melo, cientista político e professor do Insper
A debandada na equipe econômica indica que a agenda liberal do governo está sendo abandonada?
CELINA RAMALHO Indiretamente, sim. Eu entendo que Paulo Guedes teve a grande dificuldade de aceitar que a política econômica prevista para o governo Bolsonaro precisou mudar de direção. O modelo liberal não cabe para a economia brasileira neste momento. É um momento em que o papel do Estado na economia – e, portanto, o compromisso da política fiscal – é muito grande, por conta da circunstância. Infelizmente é preciso revisar o modelo de política econômica para que seja atendida a necessidade de reordenamento da economia brasileira neste momento.
Sem dúvida, a saída dos secretários anuncia a não compatibilidade que eles estão considerando neste momento com uma política econômica mais adequada para o governo. Entendo que a saída dos secretários foi o grande recado para o ministro da Economia de que a política econômica tem que voltar para um comportamento mais pró-Estado, menos liberal. Entendo que ficaria uma situação insustentável para ele [Paulo Guedes] se ele persistir [com a agenda liberal], porque a economia não vai corresponder. Como é uma situação emergencial, é uma condição de não-escolha. Vai ter que tratar da situação, doa o que doer.
CARLOS MELO Indica que já foi abandonada. Veja: a reforma da Previdência ficou aquém do esperado justamente porque o presidente da República teve uma série de interferências; a reforma administrativa nunca foi enviada porque o presidente da República está sempre delongando qualquer decisão a respeito disso; a reforma tributária não é feita sem o peso político do presidente da República, que é completamente omisso com relação a isso.
E, na questão fiscal, é evidente que Bolsonaro pegou gosto pelos efeitos dos auxílios emergenciais. E está querendo transformar de alguma forma o governo numa grande Caixa Econômica Federal para fornecer mais auxílios, sem pensar em políticas de longo prazo ou transformações mais profundas. O projeto do presidente é eminentemente eleitoral. Para ele, a agenda fiscal de Paulo Guedes é muito menos importante. Aliás, dentro dos objetivos do presidente, ela até atrapalha, porque o presidente percebeu que, para os objetivos eleitorais dele, ele vai precisar de recursos, de dinheiro.
O Estado brasileiro está quebrado, não tem dinheiro; é impossível aumentar impostos para criar o Renda Brasil, não há espaço político para trazer, por exemplo, a nova CPMF. Então você vai ter que estourar o teto, vai ter que exceder mesmo os limites fiscais, comprometer ainda mais as finanças do país.
Precisamos ver se Paulo Guedes não acaba tendo a mesma disposição, a mesma atitude – que, ao meu ver, é bastante coerente – dos seus assessores que estão indo embora. Estão vendo que o projeto que foi apresentado ao presidente da República e que foi acordado com o presidente da República não está sendo honrado. Eles estão indo embora. Paulo Guedes vai ficar ali fazendo o quê? Precisamos ver se o Paulo Guedes é consistente com seu discurso.
Qual é a força de Paulo Guedes hoje no governo?
CELINA RAMALHO Acho que tem bastante força perante a Presidência da República. Ainda com todas as mudanças de ministério, o presidente Jair Bolsonaro se apoia inquestionavelmente em Paulo Guedes. Entendo, inclusive, que Guedes tem bastante arbítrio através do papel dele no governo. Hoje, não consigo imaginar como seria uma eventual saída dele do governo. Sem dúvida, existe a possibilidade, mas ela é remota, pequena. Ele é um grande pilar do governo Bolsonaro. Acho que o diálogo deles [Guedes e Bolsonaro] é muito estreito, de muita comunicação e compreensão.
É uma situação muito adversa; não acho que haverá uma mudança radical no sentido de substituição do ministro da Economia, e tampouco sei quando ele vai tomar compreensão e adotar uma decisão mais estratégica no sentido de uma nova formulação de política econômica, que é o que o país precisa neste momento, mais que urgentemente.
Tem um jargão que diz “aceita que dói menos”. Acho que essa é a frase de efeito para Paulo Guedes. Na teoria econômica, temos várias formas de modelar a economia. Ora precisamos de mais governo, ora precisamos de menos governo. Por vezes, a decisão das pessoas precisa ser uma decisão contrária a sua formação, a suas premissas.
Quando Paulo Guedes assumiu o Ministério da Economia, o cenário da economia brasileira conspirava mais favoravelmente para uma possibilidade de sucesso da política liberal. Mas as coisas mudaram de uma forma muito adversa. O acometimento da economia é um acometimento sem precedentes. Não dá para reordenar e reconfigurar um plano econômico para o Brasil sem considerar o papel do Estado. Não existe outro método na teoria econômica que não o papel do Estado na economia neste momento.
CARLOS MELO Acho que a medida que ele passa a ser visto como um empecilho para o projeto eleitoral [de Bolsonaro], a força dele [Paulo Guedes] fica muito menor. A questão é a seguinte: Paulo Guedes tem uma força relativa que é como que o mercado e os preços do mercado reagirão a uma saída do ministro.
O mercado, de repente, vai se tocar que o governo vai para o tudo ou nada eleitoral, vai gastar. A situação fiscal do país, a vulnerabilidade financeira do país fica muito maior: investimento não vem, privatização não ocorre. Os preços do mercado começam a subir: começam a subir dólar e juros do futuro, começa a ter debandada de investimentos para outros lugares.
O que segura Paulo Guedes hoje é como o mercado pode reagir. Agora, veja: se o mercado se antecipar e reagir, já acreditando na queda de Paulo Guedes, ele passa a não servir para mais nada. Se o mercado fica desconfiado e se antecipa porque Paulo Guedes perdeu a credibilidade, aí ele [Guedes] não serve para mais nada mesmo.
A equipe e o presidente da República estão dando mostras de que o papel de Paulo Guedes é mesmo domar o mercado. Não com atos ou medidas, mas com discurso e pronunciamentos que, no fim das contas, não se efetivam.
Saída de secretários importantes do Ministério da Economia ocorre em meio à pressão sobre gastos públicos. Ao ‘Nexo’, especialistas avaliam o futuro da cartilha liberal de Paulo Guedes
O ministro Paulo Guedes anunciou na terça-feira (11) a saída de dois nomes importantes de sua equipe econômica. Salim Mattar, da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, e Paulo Uebel, da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, pediram demissão.
De acordo com Guedes, Mattar saiu pela dificuldade de avançar o projeto de privatizações. Já Uebel teria pedido demissão por insatisfação após o governo adiar os planos de reforma administrativa, que deve ficar para 2021. Ao anunciar as saídas à imprensa, o próprio ministro admitiu que há uma debandada no Ministério da Economia.
As novas baixas levam a cinco o total de saídas importantes da equipe de Guedes em 2020. Além de Mattar e Uebel, deixaram o governo o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, e o diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda, Caio Megale.
O papel dos que saíram
Os cinco pedidos de demissão, que aconteceram em um período de dois meses, ocorrem num momento de crise econômica e ampliação de gastos do governo brasileiro devido à pandemia do novo coronavírus. O quadro forçou um abandono – a princípio, temporário – da agenda de controle de despesas e redução da participação do Estado na economia.
Em meio à guinada econômica do governo, a debandada do ministério atinge nomes mais ligados à agenda liberal e austera. Mansueto Almeida, por exemplo, era tido no mercado financeiro como o “fiador” do ajuste fiscal brasileiro, e considerado um dos nomes mais fortes da equipe de Paulo Guedes.
Mansueto ocupava o comando da Secretaria do Tesouro desde o governo de Michel Temer (2016-2018), e permaneceu no posto sob Jair Bolsonaro. Seu foco principal era o equilíbrio das contas públicas, que registram deficits anuais consecutivos desde 2014. No governo de Bolsonaro, era tido por técnicos do Ministério da Economia como o “bombeiro do ajuste” fiscal. Isso porque teve atuação de controlar “incêndios” dentro do governo relacionados a possíveis aumentos de gastos, incentivos fiscais ou subsídios – sempre no sentido de aconselhar contra a expansão de gastos.
Salim Mattar é outro membro importante a sair do governo. Desde o início do mandato de Bolsonaro e da gestão de Guedes, ele foi uma das principais vozes defensoras das privatizações. O empresário, fundador e sócio da locadora de veículos Localiza, pediu demissão em um momento de paralisação parcial dos processos de privatização. Em março, ainda no início da crise, o próprio Mattar disse que a pandemia atrapalhava os planos nesse sentido. Em texto publicado no site Brazil Journal na quarta-feira (12), o ex-secretário reforçou o que disse Paulo Guedes: saiu por conta da dificuldade de implementar as privatizações.
Segundo apurou o blog da jornalista Ana Flor, da GloboNews, a saída de Rubem Novaes da presidência do Banco do Brasil também estaria ligada à lentidão das privatizações. Novaes era um defensor da venda do banco à iniciativa privada. Na reunião ministerial de 22 de abril, que teve vídeo publicado por decisão do Supremo, Guedes disse sobre o Banco do Brasil que “tem que vender essa porra logo”. Na mesma reunião, Bolsonaro respondeu, afirmando que a privatização do banco só entraria na agenda após as eleições de 2022.
A agenda econômica em disputa
O momento de crise pressiona a agenda liberal de Paulo Guedes. A pandemia deixou milhões de brasileiros desamparados e fragilizou empresas, obrigando o governo a ampliar gastos. A resposta contou também com a iniciativa do Congresso Nacional, que aprovou o afrouxamento de regras fiscais – via decreto de calamidade pública e orçamento de guerra – e articulou a criação do auxílio emergencial, principal política assistencial do governo na pandemia.
O quadro de 2020 levou alas do governo – como a dos militares – a defenderem a continuidade de uma elevação dos gastos públicos. Desde abril, por exemplo, os ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e general Walter Braga Netto, da Casa Civil, articulam o Plano Pró-Brasil, um programa de investimentos em obras públicas visando a recuperação da atividade econômica no pós-pandemia. O plano é reprovado por Paulo Guedes, que não estava presente na primeira apresentação do programa à imprensa. O ministro crê que os investimentos devem partir da iniciativa privada.
Dentro do governo, há também pressão para que o teto de gastos, uma das principais regras fiscais do governo federal, seja flexibilizado. Isso daria espaço para o governo fazer investimentos de longo prazo sem precisar fazer cortes em outras áreas do Orçamento.
Em Brasília, também circula a ideia de estender o período de calamidade pública para 2021 – a princípio, a calamidade vale só até 31 de dezembro de 2020. A prorrogação tiraria amarras fiscais do governo e liberaria um regime de gastos mais altos por mais um ano.
Nesse cenário, a equipe de Paulo Guedes anunciou o lançamento do Renda Brasil, um programa social que reformula e unifica benefícios sociais como o Bolsa Família, ao mesmo tempo que extingue outros gastos tidos pelo governo como ineficientes, como o abono salarial. O novo programa deve elevar os gastos do governo, pressionando ainda mais o teto. De acordo com reportagem publicada pela revista Época em 31 de julho, o Renda Brasil busca “dar a assinatura” do Ministério da Economia na política social do governo.
O recado de Guedes
Na fala a jornalistas em que anunciou a saída de Mattar e Uebel, Guedes abordou o assunto da pressão sobre o teto de gastos, norma que, resumidamente, limita os gastos reais (ajustados pela inflação) do governo a um nível pré-determinado. O ministro disse que o abandono da regra fiscal poderá colocar Bolsonaro em uma posição política delicada.
O controle de gastos e a redução do papel do Estado na economia são o cerne do discurso de Guedes desde a campanha eleitoral de 2018. O ministro teve papel central para que Bolsonaro conquistasse o apoio do mercado financeiro rumo à vitória nas urnas.
Mesmo sob pressão, Guedes mantém a defesa da agenda de controle de gastos e respeito às regras fiscais. A ideia conta também com apoio do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que deixa claro que é contra a flexibilização do teto de gastos e que não irá pautar a prorrogação da calamidade pública. Na terça-feira (11), o jornal O Estado de S. Paulo revelou que a equipe de Guedes prepara uma força-tarefa para apresentar a deputados e senadores argumentos contrários a mudanças no teto e ao aumento dos gastos.
As demonstrações públicas de Bolsonaro
Na quarta-feira (12), depois da debandada, Jair Bolsonaro fez uma reunião com Guedes, outros auxiliares do governo e os presidentes da Câmara e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), além de representantes do Congresso, para discutir o teto de gastos. Em seguida, fez um pronunciamento na entrada do Palácio da Alvorada para sinalizar apoio à agenda de Guedes.
Maia e Alcolumbre também reafirmaram o compromisso com a regra fiscal. Estavam presentes também os ministros da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que vinha defendendo o aumento de gastos públicos na crise.
No início do dia, o presidente já havia publicado uma mensagem nas redes sociais em que apoiava o ministro da Economia e defendia processos de privatização. “O Estado está inchado e deve se desfazer de suas empresas deficitárias, bem como daquelas que podem ser melhor administradas pela iniciativa privada”, escreveu.
A defesa das privatizações e do teto de gastos por Jair Bolsonaro vai na contramão de uma fala recente de Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente e senador pelo Republicanos do Rio de Janeiro. Em entrevista ao jornal O Globo publicada em 5 de agosto, Flávio defendeu a ampliação dos gastos, contrária à agenda de Guedes.
Duas análises sobre a debandada
O Nexo conversou com especialistas para entender o impacto que a debandada no Ministério da Economia tem sobre o futuro da agenda econômica do governo.
Celina Ramalho, professora de economia da FGV-EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas)
Carlos Melo, cientista político e professor do Insper
A debandada na equipe econômica indica que a agenda liberal do governo está sendo abandonada?
CELINA RAMALHO Indiretamente, sim. Eu entendo que Paulo Guedes teve a grande dificuldade de aceitar que a política econômica prevista para o governo Bolsonaro precisou mudar de direção. O modelo liberal não cabe para a economia brasileira neste momento. É um momento em que o papel do Estado na economia – e, portanto, o compromisso da política fiscal – é muito grande, por conta da circunstância. Infelizmente é preciso revisar o modelo de política econômica para que seja atendida a necessidade de reordenamento da economia brasileira neste momento.
Sem dúvida, a saída dos secretários anuncia a não compatibilidade que eles estão considerando neste momento com uma política econômica mais adequada para o governo. Entendo que a saída dos secretários foi o grande recado para o ministro da Economia de que a política econômica tem que voltar para um comportamento mais pró-Estado, menos liberal. Entendo que ficaria uma situação insustentável para ele [Paulo Guedes] se ele persistir [com a agenda liberal], porque a economia não vai corresponder. Como é uma situação emergencial, é uma condição de não-escolha. Vai ter que tratar da situação, doa o que doer.
CARLOS MELO Indica que já foi abandonada. Veja: a reforma da Previdência ficou aquém do esperado justamente porque o presidente da República teve uma série de interferências; a reforma administrativa nunca foi enviada porque o presidente da República está sempre delongando qualquer decisão a respeito disso; a reforma tributária não é feita sem o peso político do presidente da República, que é completamente omisso com relação a isso.
E, na questão fiscal, é evidente que Bolsonaro pegou gosto pelos efeitos dos auxílios emergenciais. E está querendo transformar de alguma forma o governo numa grande Caixa Econômica Federal para fornecer mais auxílios, sem pensar em políticas de longo prazo ou transformações mais profundas. O projeto do presidente é eminentemente eleitoral. Para ele, a agenda fiscal de Paulo Guedes é muito menos importante. Aliás, dentro dos objetivos do presidente, ela até atrapalha, porque o presidente percebeu que, para os objetivos eleitorais dele, ele vai precisar de recursos, de dinheiro.
O Estado brasileiro está quebrado, não tem dinheiro; é impossível aumentar impostos para criar o Renda Brasil, não há espaço político para trazer, por exemplo, a nova CPMF. Então você vai ter que estourar o teto, vai ter que exceder mesmo os limites fiscais, comprometer ainda mais as finanças do país.
Precisamos ver se Paulo Guedes não acaba tendo a mesma disposição, a mesma atitude – que, ao meu ver, é bastante coerente – dos seus assessores que estão indo embora. Estão vendo que o projeto que foi apresentado ao presidente da República e que foi acordado com o presidente da República não está sendo honrado. Eles estão indo embora. Paulo Guedes vai ficar ali fazendo o quê? Precisamos ver se o Paulo Guedes é consistente com seu discurso.
Qual é a força de Paulo Guedes hoje no governo?
CELINA RAMALHO Acho que tem bastante força perante a Presidência da República. Ainda com todas as mudanças de ministério, o presidente Jair Bolsonaro se apoia inquestionavelmente em Paulo Guedes. Entendo, inclusive, que Guedes tem bastante arbítrio através do papel dele no governo. Hoje, não consigo imaginar como seria uma eventual saída dele do governo. Sem dúvida, existe a possibilidade, mas ela é remota, pequena. Ele é um grande pilar do governo Bolsonaro. Acho que o diálogo deles [Guedes e Bolsonaro] é muito estreito, de muita comunicação e compreensão.
É uma situação muito adversa; não acho que haverá uma mudança radical no sentido de substituição do ministro da Economia, e tampouco sei quando ele vai tomar compreensão e adotar uma decisão mais estratégica no sentido de uma nova formulação de política econômica, que é o que o país precisa neste momento, mais que urgentemente.
Tem um jargão que diz “aceita que dói menos”. Acho que essa é a frase de efeito para Paulo Guedes. Na teoria econômica, temos várias formas de modelar a economia. Ora precisamos de mais governo, ora precisamos de menos governo. Por vezes, a decisão das pessoas precisa ser uma decisão contrária a sua formação, a suas premissas.
Quando Paulo Guedes assumiu o Ministério da Economia, o cenário da economia brasileira conspirava mais favoravelmente para uma possibilidade de sucesso da política liberal. Mas as coisas mudaram de uma forma muito adversa. O acometimento da economia é um acometimento sem precedentes. Não dá para reordenar e reconfigurar um plano econômico para o Brasil sem considerar o papel do Estado. Não existe outro método na teoria econômica que não o papel do Estado na economia neste momento.
CARLOS MELO Acho que a medida que ele passa a ser visto como um empecilho para o projeto eleitoral [de Bolsonaro], a força dele [Paulo Guedes] fica muito menor. A questão é a seguinte: Paulo Guedes tem uma força relativa que é como que o mercado e os preços do mercado reagirão a uma saída do ministro.
O mercado, de repente, vai se tocar que o governo vai para o tudo ou nada eleitoral, vai gastar. A situação fiscal do país, a vulnerabilidade financeira do país fica muito maior: investimento não vem, privatização não ocorre. Os preços do mercado começam a subir: começam a subir dólar e juros do futuro, começa a ter debandada de investimentos para outros lugares.
O que segura Paulo Guedes hoje é como o mercado pode reagir. Agora, veja: se o mercado se antecipar e reagir, já acreditando na queda de Paulo Guedes, ele passa a não servir para mais nada. Se o mercado fica desconfiado e se antecipa porque Paulo Guedes perdeu a credibilidade, aí ele [Guedes] não serve para mais nada mesmo.
A equipe e o presidente da República estão dando mostras de que o papel de Paulo Guedes é mesmo domar o mercado. Não com atos ou medidas, mas com discurso e pronunciamentos que, no fim das contas, não se efetivam.
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