A pandemia de covid-19 aumentou a tensão entre Washington e Pequim e coloca o Brasil em situação delicada, que não mudará se Biden for eleito, escreve o ex-embaixador no Valor, em texto publicado sexta, 21/9. Íntegra a seguir.
A pandemia ora em curso acelera a confrontação estratégica entre EUA e China. O relacionamento bilateral desde a fundação da República Popular em 1949 teve um início promissor, com a hábil jogada dos EUA, conduzida por Henry Kissinger e Richard Nixon (1913-1994) ao início dos anos 1970, de abrir diálogo com a China no mais alto nível. Os EUA tinham motivação estratégica para a aproximação com a RPC: reforçar sua posição perante o bloco soviético no contexto da Guerra Fria, tirando proveito da tensão então existente entre Pequim e Moscou. Nas décadas seguintes prevaleceu um clima positivo entre Washington e Pequim.
Predominava nos EUA uma visão benigna da China. Havia naquele país expectativa de que, com mais prosperidade, o regime chinês se tornasse algo mais liberal, mais “democrático”. Nas três décadas do regime maoísta, a China, submetida a um regime totalitário, tinha sofrido com seguidas ondas de instabilidade política e dificuldades econômicas. Posteriormente, sob a liderança de Deng Xiaoping (1904-1997), o país progrediu enormemente graças ao processo de reformas e abertura ao exterior. Agora o quadro mudou totalmente.
Brasil de hoje é particularmente vulnerável a pressões na questão do 5G, ponto crucial do embate entre Estados Unidos e China
A China passou a ser vista nos EUA - nos meios políticos e de governo, na academia, na imprensa - e na opinião pública como potência rival, adversária e, em alguns setores, como inimiga com a qual até mesmo a hipótese de uma guerra não pode ser descartada. Essa mudança já se fizera sentir na gestão de Obama, quando se cristalizou em Washington a percepção de que a ascensão da China tinha deslocado o eixo mais dinâmico da economia internacional do Ocidente para a Ásia, e de que ao mesmo tempo surgia um novo desafio no plano militar.
Com a ascensão ao poder de Xi Jinping abriu-se na China nova etapa, de afirmação assertiva, até agressiva, do poderio econômico, militar e tecnológico do país. Foi abandonada a postura de discrição e comedimento da era Deng. Pesados investimentos foram feitos para a modernização das Forças Armadas, com prioridade para construção de uma Marinha capaz de desafiar o domínio que os EUA detêm no Pacífico desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
O presidente Trump segue política externa de retraimento, quase isolacionista. Mas, de outra parte, aumenta substancialmente os gastos militares, para perpetuar a inalcançável hegemonia bélica do país no plano mundial. E engajou-se numa “guerra comercial” com a China, por conta dos déficits sofridos pelos EUA no plano bilateral.
Essa “guerra” faz parte de uma estratégia mais ampla de “contenção” da China, à semelhança do que fora feito, de maneira exitosa, com a União Soviética na Guerra Fria. Setores mais radicais da Casa Branca querem ir mais longe, passando da “contenção” para uma completa “ruptura”, com total separação entre os dois países.
A hipótese de uma tal separação teria grave consequência: aumento do risco de um conflito bélico, o que seria catastrófico para toda a comunidade internacional. A nova postura da China, tanto no plano doméstico quanto no externo, tem causado desgaste na imagem do país.
Com Xi, desfizeram-se por completo as ilusões de alguma “democratização”. Isso começou com a empolgação total do poder por ele, ao abrir caminho para sua perpetuação no governo e assumir sozinho os três cargos mais importantes: a Presidência da República, a Secretaria-Geral do Partido Comunista e a chefia da Comissão Militar Central. Foi ainda mais ousado, ao incorporar seu “pensamento” à própria Constituição, assim se igualando ao legado de Mao Tsé-tung (1893-1976) e Deng.
No plano interno, enrijeceu a censura aos meios de comunicação. Implantou, com o uso de sofisticadas tecnologias, um sistema “orwelliano” de controle policial da população. Lançou campanhas de repressão a minorias étnicas e religiosas, notadamente contra o povo uighur, no extremo Oeste do país, ao que consta com recurso a encarceramento coletivo.
Hoje mais de 70% dos americanos têm visão negativa da China - postura sobre a qual Trump busca capitalizar em sua campanha pela reeleição, com referências ao “vírus chinês” e incriminação do país pela pandemia. Tem também tido forte repercussão nos EUA a legislação de segurança nacional recentemente adotada por Pequim, que na prática põe termo ao status de autonomia e liberdade democrática até há pouco vigente em Hong Kong.
No momento o ponto crucial do embate entre EUA e China é o futuro da revolucionária nova tecnologia de quinta geração da internet, a 5G. Os EUA, em geral líderes nas inovações científicas e tecnológicas, ficaram para trás nesse setor, onde a empresa mais competente e competitiva é a chinesa Huawei. Invocando até motivos de segurança nacional, o governo americano está a exercer fortíssima pressão para que outros países não permitam a participação da Huawei em suas redes de 5G.
Essa campanha está sendo conduzida também com relação ao Brasil, inclusive com o recurso a claras ameaças (“consequências”, diz o embaixador americano). O Brasil de hoje é particularmente vulnerável a tais pressões, dada a opção estratégica do governo Bolsonaro por um forte alinhamento político e ideológico com os EUA de Trump, que vai ao ponto de colocar-nos em posição de subalternidade e subserviência em face daquele país. Sintomática disso foi a recente decisão do Itamaraty de secundar os EUA num ataque velado à China na OMC.
A situação é delicada. E não melhorará se for eleito o democrata Joe Biden, que é acerbo crítico da China. Talvez a única linha de continuidade entre Trump e Biden seja o antagonismo em relação à China. Esse quadro coloca o Brasil no meio do cabo de guerra entre os dois contendores. Interessa-nos desenvolver ao máximo nossas relações com os EUA, mas a salvo de cobranças indevidas. E cumpre termos em mente que não é sem razão que nosso relacionamento com a China é conduzido sob a égide de uma frondosa e dinâmica Parceria Estratégica (lançada, por sinal, em 1993, durante minha gestão como embaixador em Pequim).
A introdução da 5G propiciará ao Brasil um extraordinário salto tecnológico, capaz de nos permitir queimar etapas na superação do atraso em que estão nossa indústria, nossos serviços e, em termos mais amplos, nossos sistemas de educação e ciência. Nessas condições, é importante que o governo não se deixe levar por afinidades ideológicas ou sucumba a pressões inaceitáveis. Que sim se faça a escolha que melhor sirva a nossos interesses políticos, econômicos, financeiros e tecnológicos.
Roberto Abdenur é ex-embaixador na China, Alemanha e EUA e ex-secretário-geral do Itamaraty
A pandemia ora em curso acelera a confrontação estratégica entre EUA e China. O relacionamento bilateral desde a fundação da República Popular em 1949 teve um início promissor, com a hábil jogada dos EUA, conduzida por Henry Kissinger e Richard Nixon (1913-1994) ao início dos anos 1970, de abrir diálogo com a China no mais alto nível. Os EUA tinham motivação estratégica para a aproximação com a RPC: reforçar sua posição perante o bloco soviético no contexto da Guerra Fria, tirando proveito da tensão então existente entre Pequim e Moscou. Nas décadas seguintes prevaleceu um clima positivo entre Washington e Pequim.
Predominava nos EUA uma visão benigna da China. Havia naquele país expectativa de que, com mais prosperidade, o regime chinês se tornasse algo mais liberal, mais “democrático”. Nas três décadas do regime maoísta, a China, submetida a um regime totalitário, tinha sofrido com seguidas ondas de instabilidade política e dificuldades econômicas. Posteriormente, sob a liderança de Deng Xiaoping (1904-1997), o país progrediu enormemente graças ao processo de reformas e abertura ao exterior. Agora o quadro mudou totalmente.
Brasil de hoje é particularmente vulnerável a pressões na questão do 5G, ponto crucial do embate entre Estados Unidos e China
A China passou a ser vista nos EUA - nos meios políticos e de governo, na academia, na imprensa - e na opinião pública como potência rival, adversária e, em alguns setores, como inimiga com a qual até mesmo a hipótese de uma guerra não pode ser descartada. Essa mudança já se fizera sentir na gestão de Obama, quando se cristalizou em Washington a percepção de que a ascensão da China tinha deslocado o eixo mais dinâmico da economia internacional do Ocidente para a Ásia, e de que ao mesmo tempo surgia um novo desafio no plano militar.
Com a ascensão ao poder de Xi Jinping abriu-se na China nova etapa, de afirmação assertiva, até agressiva, do poderio econômico, militar e tecnológico do país. Foi abandonada a postura de discrição e comedimento da era Deng. Pesados investimentos foram feitos para a modernização das Forças Armadas, com prioridade para construção de uma Marinha capaz de desafiar o domínio que os EUA detêm no Pacífico desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
O presidente Trump segue política externa de retraimento, quase isolacionista. Mas, de outra parte, aumenta substancialmente os gastos militares, para perpetuar a inalcançável hegemonia bélica do país no plano mundial. E engajou-se numa “guerra comercial” com a China, por conta dos déficits sofridos pelos EUA no plano bilateral.
Essa “guerra” faz parte de uma estratégia mais ampla de “contenção” da China, à semelhança do que fora feito, de maneira exitosa, com a União Soviética na Guerra Fria. Setores mais radicais da Casa Branca querem ir mais longe, passando da “contenção” para uma completa “ruptura”, com total separação entre os dois países.
A hipótese de uma tal separação teria grave consequência: aumento do risco de um conflito bélico, o que seria catastrófico para toda a comunidade internacional. A nova postura da China, tanto no plano doméstico quanto no externo, tem causado desgaste na imagem do país.
Com Xi, desfizeram-se por completo as ilusões de alguma “democratização”. Isso começou com a empolgação total do poder por ele, ao abrir caminho para sua perpetuação no governo e assumir sozinho os três cargos mais importantes: a Presidência da República, a Secretaria-Geral do Partido Comunista e a chefia da Comissão Militar Central. Foi ainda mais ousado, ao incorporar seu “pensamento” à própria Constituição, assim se igualando ao legado de Mao Tsé-tung (1893-1976) e Deng.
No plano interno, enrijeceu a censura aos meios de comunicação. Implantou, com o uso de sofisticadas tecnologias, um sistema “orwelliano” de controle policial da população. Lançou campanhas de repressão a minorias étnicas e religiosas, notadamente contra o povo uighur, no extremo Oeste do país, ao que consta com recurso a encarceramento coletivo.
Hoje mais de 70% dos americanos têm visão negativa da China - postura sobre a qual Trump busca capitalizar em sua campanha pela reeleição, com referências ao “vírus chinês” e incriminação do país pela pandemia. Tem também tido forte repercussão nos EUA a legislação de segurança nacional recentemente adotada por Pequim, que na prática põe termo ao status de autonomia e liberdade democrática até há pouco vigente em Hong Kong.
No momento o ponto crucial do embate entre EUA e China é o futuro da revolucionária nova tecnologia de quinta geração da internet, a 5G. Os EUA, em geral líderes nas inovações científicas e tecnológicas, ficaram para trás nesse setor, onde a empresa mais competente e competitiva é a chinesa Huawei. Invocando até motivos de segurança nacional, o governo americano está a exercer fortíssima pressão para que outros países não permitam a participação da Huawei em suas redes de 5G.
Essa campanha está sendo conduzida também com relação ao Brasil, inclusive com o recurso a claras ameaças (“consequências”, diz o embaixador americano). O Brasil de hoje é particularmente vulnerável a tais pressões, dada a opção estratégica do governo Bolsonaro por um forte alinhamento político e ideológico com os EUA de Trump, que vai ao ponto de colocar-nos em posição de subalternidade e subserviência em face daquele país. Sintomática disso foi a recente decisão do Itamaraty de secundar os EUA num ataque velado à China na OMC.
A situação é delicada. E não melhorará se for eleito o democrata Joe Biden, que é acerbo crítico da China. Talvez a única linha de continuidade entre Trump e Biden seja o antagonismo em relação à China. Esse quadro coloca o Brasil no meio do cabo de guerra entre os dois contendores. Interessa-nos desenvolver ao máximo nossas relações com os EUA, mas a salvo de cobranças indevidas. E cumpre termos em mente que não é sem razão que nosso relacionamento com a China é conduzido sob a égide de uma frondosa e dinâmica Parceria Estratégica (lançada, por sinal, em 1993, durante minha gestão como embaixador em Pequim).
A introdução da 5G propiciará ao Brasil um extraordinário salto tecnológico, capaz de nos permitir queimar etapas na superação do atraso em que estão nossa indústria, nossos serviços e, em termos mais amplos, nossos sistemas de educação e ciência. Nessas condições, é importante que o governo não se deixe levar por afinidades ideológicas ou sucumba a pressões inaceitáveis. Que sim se faça a escolha que melhor sirva a nossos interesses políticos, econômicos, financeiros e tecnológicos.
Roberto Abdenur é ex-embaixador na China, Alemanha e EUA e ex-secretário-geral do Itamaraty
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.