Robson Viturino resenha no Valor o novo livro da jornalista Tati Bernardi, presença frequente neste blog. Texto saiu dia 7/8, íntegra abaixo.
Saul Bellow (1915-2005), romancista que fazia o cômico andar de mãos dadas com ideias profundas, certa vez escreveu: “A vida é coisa séria, mas é também, decididamente, palhaçada”. Em seu novo romance, “Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha”, a escritora e roteirista Tati Bernardi faz dessa ideia um mandamento.
Lançada em um período de muitos lutos (o livro foi um dos primeiros da editora Companhia das Letras na era covid-19), a obra se faz sobre uma prosa raivosa, desconcertante e delicada, mas sobretudo hilária. Fala de coisa séria com muita palhaçada.
Karine, alter ego da autora, é filha de uma família suburbana do Belenzinho, na rua dos Gloriosos, onde todo mundo era o que se chamava de “não deu em nada”. A coisa mais bonita da rua dos Gloriosos, diz Karine, é que as pessoas ali aceitam a piada.
“Era um jeito de ser famoso, sei lá. Sacanear os outros era um jeito de amar. Ser humilhado, uma maneira de ser amado.” O bairro paulistano do Belenzinho às vezes lembra a Rimini felliniana. Nele a sua família existe no volume máximo, desconhece meias-palavras e privacidade. É uma matilha bafejando humor corrosivo.
Aos 35 anos, Karine embarca na aventura da maternidade. Como em muito do que a autora escreveu em seu livro “Depois a Louca Sou Eu” (2016) e na sua coluna semanal na “Folha de S. Paulo”, o corpo insubordinado, com seus ritmos, urgências e limites, explode como ameaça. Não bastasse o próprio corpo, Karine carrega um outro, totalmente dependente dela.
Mas a ciranda caústica só irá se completar com outras mulheres - a avó, as tias e, sobretudo, a mãe de Karine, a ponta de lança do charme, do destempero, da possessividade e do despreparo para a vida adulta.
“Ser adulto também é esse monte de mulher sozinha para sempre cuidando de um monte de mulher sozinha para sempre”, diz Karine. A espiral do cuidado e da solidão para sempre pertence às mulheres e apenas a elas.
Os homens, quando não totalmente apagados, são sujeitos apalermados ou então utensílios para o sexo, eventualmente dirigido à maternidade. Karine mistura todos os tempos - é neta desnorteada, filha engolida pela mãe e mulher grávida de um bebê desmancha prazeres - em uma profusão de cenas cômicas.
Em uma dos pontos altos do livro, Karine e sua mãe antecipam a volta de uma viagem de 20 dias à praia porque o apartamento do Belenzinho está alagado. “O nome disso é inveja”, diz sua mãe. Chegam as tias, o ex-marido, o zelador, o porteiro, e logo o cubículo encarpetado é tomado por mais de dez pessoas pisando em cem panos brancos para sugar a água. Alguns dançam, outros se esmeram na piada. Todos querem “ajudar”. “A madrugada começa e eu tenho certeza que essa será a minha vida pra sempre. Pisar naqueles panos, torcer, pisar naqueles panos”, diz Karine.
A ideia de que uma filha sempre estará à sombra da mãe, sendo consumida por ela, até que se torne ela própria a responsável por outra vida, reproduzindo esse vínculo, está no cerne do romance.
A maternidade sem idealizações, às vezes retratada de forma crua e até mesmo brutal, tem sido um tema importante na literatura - a italiana Elena Ferrante, a nigeriana Buchi Emecheta, a canadense Alice Munro e a franco-marroquina Leïla Slimani estão entre as expoentes que tratam do assunto. Filiada ao grupo, Tati Bernardi é a especialista em cinismo, sarcasmo e escatologia.
A narradora em primeira pessoa, cuja voz se confunde o tempo todo com a da própria autora, carrega algo do desejo de enquadrar todo e qualquer sujeito, memória ou indagação em uma moldura de riso nervoso. É uma fórmula com momentos ótimos, mas tem seus riscos.
Além de os seus artifícios estarem um tanto expostos, há outro ponto: como muito da autoficção no Brasil, o romance se apoia em recursos que em tese potencializam a criação, mas às vezes parecem limitá-la. Para a alegria do leitor, o ritmo vertiginoso do texto acaba se impondo.
O humor derrisório dá o tom do romance na maior parte do tempo. Mas algo surge pelas frestas da superfície mais áspera do texto. Entre cenas de conflitos edipianos e frases como “Falhei como parceira amorosa da minha mãe”, é possível encontrar notas dissonantes. Depois de subverter a crônica paulista com veia “rodrigueana”, morder e assoprar o feminismo, expor as próprias vísceras, diz ela, por puro prazer masoquista, Tati Bernardi toca em algo delicado. Entre palhaçadas, fala de vida adulta, de busca por sentido e de um novo feminino.
“Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha”
Tati Bernardi Companhia das Letras R$ 39,90; 144 págs.
Saul Bellow (1915-2005), romancista que fazia o cômico andar de mãos dadas com ideias profundas, certa vez escreveu: “A vida é coisa séria, mas é também, decididamente, palhaçada”. Em seu novo romance, “Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha”, a escritora e roteirista Tati Bernardi faz dessa ideia um mandamento.
Lançada em um período de muitos lutos (o livro foi um dos primeiros da editora Companhia das Letras na era covid-19), a obra se faz sobre uma prosa raivosa, desconcertante e delicada, mas sobretudo hilária. Fala de coisa séria com muita palhaçada.
Karine, alter ego da autora, é filha de uma família suburbana do Belenzinho, na rua dos Gloriosos, onde todo mundo era o que se chamava de “não deu em nada”. A coisa mais bonita da rua dos Gloriosos, diz Karine, é que as pessoas ali aceitam a piada.
“Era um jeito de ser famoso, sei lá. Sacanear os outros era um jeito de amar. Ser humilhado, uma maneira de ser amado.” O bairro paulistano do Belenzinho às vezes lembra a Rimini felliniana. Nele a sua família existe no volume máximo, desconhece meias-palavras e privacidade. É uma matilha bafejando humor corrosivo.
Aos 35 anos, Karine embarca na aventura da maternidade. Como em muito do que a autora escreveu em seu livro “Depois a Louca Sou Eu” (2016) e na sua coluna semanal na “Folha de S. Paulo”, o corpo insubordinado, com seus ritmos, urgências e limites, explode como ameaça. Não bastasse o próprio corpo, Karine carrega um outro, totalmente dependente dela.
Mas a ciranda caústica só irá se completar com outras mulheres - a avó, as tias e, sobretudo, a mãe de Karine, a ponta de lança do charme, do destempero, da possessividade e do despreparo para a vida adulta.
“Ser adulto também é esse monte de mulher sozinha para sempre cuidando de um monte de mulher sozinha para sempre”, diz Karine. A espiral do cuidado e da solidão para sempre pertence às mulheres e apenas a elas.
Os homens, quando não totalmente apagados, são sujeitos apalermados ou então utensílios para o sexo, eventualmente dirigido à maternidade. Karine mistura todos os tempos - é neta desnorteada, filha engolida pela mãe e mulher grávida de um bebê desmancha prazeres - em uma profusão de cenas cômicas.
Em uma dos pontos altos do livro, Karine e sua mãe antecipam a volta de uma viagem de 20 dias à praia porque o apartamento do Belenzinho está alagado. “O nome disso é inveja”, diz sua mãe. Chegam as tias, o ex-marido, o zelador, o porteiro, e logo o cubículo encarpetado é tomado por mais de dez pessoas pisando em cem panos brancos para sugar a água. Alguns dançam, outros se esmeram na piada. Todos querem “ajudar”. “A madrugada começa e eu tenho certeza que essa será a minha vida pra sempre. Pisar naqueles panos, torcer, pisar naqueles panos”, diz Karine.
A ideia de que uma filha sempre estará à sombra da mãe, sendo consumida por ela, até que se torne ela própria a responsável por outra vida, reproduzindo esse vínculo, está no cerne do romance.
A maternidade sem idealizações, às vezes retratada de forma crua e até mesmo brutal, tem sido um tema importante na literatura - a italiana Elena Ferrante, a nigeriana Buchi Emecheta, a canadense Alice Munro e a franco-marroquina Leïla Slimani estão entre as expoentes que tratam do assunto. Filiada ao grupo, Tati Bernardi é a especialista em cinismo, sarcasmo e escatologia.
A narradora em primeira pessoa, cuja voz se confunde o tempo todo com a da própria autora, carrega algo do desejo de enquadrar todo e qualquer sujeito, memória ou indagação em uma moldura de riso nervoso. É uma fórmula com momentos ótimos, mas tem seus riscos.
Além de os seus artifícios estarem um tanto expostos, há outro ponto: como muito da autoficção no Brasil, o romance se apoia em recursos que em tese potencializam a criação, mas às vezes parecem limitá-la. Para a alegria do leitor, o ritmo vertiginoso do texto acaba se impondo.
O humor derrisório dá o tom do romance na maior parte do tempo. Mas algo surge pelas frestas da superfície mais áspera do texto. Entre cenas de conflitos edipianos e frases como “Falhei como parceira amorosa da minha mãe”, é possível encontrar notas dissonantes. Depois de subverter a crônica paulista com veia “rodrigueana”, morder e assoprar o feminismo, expor as próprias vísceras, diz ela, por puro prazer masoquista, Tati Bernardi toca em algo delicado. Entre palhaçadas, fala de vida adulta, de busca por sentido e de um novo feminino.
“Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha”
Tati Bernardi Companhia das Letras R$ 39,90; 144 págs.
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