Pular para o conteúdo principal

Jornalismo e poder na área digital

Célia de Gouvêa Franco resenha para o Valor o livro Jornalismo em Retração, Poder em Expansão - A Segunda Morte da Opinião Pública, de Ricardo Gandour, ex-diretor de redação do Estadão e hoje chefe do jornalismo da rádio CBN. Vale a leitura.

Adaptando-se ao novo perfil dos interessados em notícias e análises e seguindo uma forte tendência mundial, os jornais brasileiros aumentaram de forma muito significativa suas atividades digitais nos últimos anos.
Cresceu ainda mais vigorosamente a interação com os leitores por esse meio, apesar da redução - também muito expressiva - do número de profissionais nas redações. Proporcionalmente, porém, foi ainda maior a expansão das atividades digitais de governantes no país. A combinação desses dois fenômenos levanta uma série de dúvidas sobre o papel da imprensa como formador da opinião pública e como se combina com o protagonismo dos que foram escolhidos para cargos públicos.
Dados inéditos sobre o comportamento da mídia tradicional em comparação com a participação de governadores de Estados nas redes sociais foram levantados por meia de pesquisas e analisados pelo jornalista Ricardo Gandour, diretor de jornalismo da rádio CBN e professor na ESPM, e são o fulcro da pesquisa conduzida na escola de jornalismo da Columbia University, em Nova York, e concluída na Universidade de São Paulo. Seu trabalho está sendo lançado em livro - “Jornalismo em Retração, Poder em Expansão - A Segunda Morte da Opinião Pública”, pela Summus Editorial.
Não são muito comuns no Brasil pesquisas empíricas que retratem as atividades jornalísticas. O livro de Gandour foge a esse padrão pelo detalhamento da pesquisa abrangendo o período de 2013 a 2016. Ele mediu o número de posts publicados por jornais de todo o país, tendo selecionado um representante da mídia de cada Estado, e por governadores também de todos os Estados.
Em resumo, a média diária de mensagens postadas pelos governadores cresceu 91% entre 2013 e 2016 - a media diária de posts dos jornais aumentou 6%. A interação por mensagem teve acréscimos muito maiores nos dois casos: 324% em se tratando dos governantes e 354% dos jornais. Todos os achados do levantamento são apresentados de forma muito clara, em gráficos e tabelas que ajudam muito o leitor.
A mesma preocupação com didatismo marca todo o livro, talvez refletindo o lado de professor do autor. Gandour explica os passos que o levaram a escolha dos objetos de pesquisa e o período - inclusive o impacto das manifestações populares de 2013, que certamente influenciaram governadores a participaram mais e com maior constância das redes sociais. O levantamento foi feito a partir dos posts no Facebook, na época a rede com maior número de participantes no país.
Antes dos resultados da pesquisa, Gandour apresenta e explica a diminuição no número de jornalistas nas redações de jornais, fenômeno - também global - provocado principalmente pela diminuição da receita publicitária dirigida à chamada mídia tradicional. O levantamento, resultado de consultas às chefias de redação, mostrou que 83% dos jornais consultados tiveram redução do número de jornalistas no período de dez anos anterior às entrevistas. Apenas 3% relataram aumento na equipe de profissionais. Com isso, houve também uma diminuição na produção de conteúdo próprio.
O livro não é apenas, porém, uma coleção de estatísticas e estudos comparativos dos dados. Baseado em parte na sua experiência na Columbia University e numa ampla bibliografia, Gandour explora os limites do jornalismo pós-expansão das redes sociais, debatendo, por exemplo, até que ponto matérias investigativas tocadas por repórteres estão sendo e serão substituídas por informes redigidos e divulgados pelas assessorias de imprensa de governantes.
A partir das constatações das suas pesquisas, ele levanta a possibilidade de a sociedade ficar mais sujeita, mais exposta às divulgações oficiais ou oficiosas, para usar exatamente suas palavras, de governantes por meio das redes sociais. Como qualquer outro observador da sociedade, Gandour não tem como negar a perda de poder da imprensa tradicional e a ascensão da comunicação direta entre governantes e eleitores - o exemplo da eleição do presidente Jair Bolsonaro é claro, nesse sentido. Mas Gandour ressalta o papel de mediador que o jornalismo pode exercer numa democracia e lembra que o uso mais intenso e aprimorado das redes sociais pode ajudá-la a retomar parte do espaço perdido.
Um ponto interessante para reflexão dos interessados por mídia e seu papel na atual conjuntura é levantado por Michael Massing, escritor americano e ex-editor da “Columbia Journalism Review”, que, depois de visitar as redações de publicações puramente virtuais e analisar o conteúdo por elas divulgado, comenta que a repercussão desse material é incomparavelmente menor do que a das matérias dos jornais tradicionais. E Massing considera um diferencial arrasador. Com o tempo, a tendência das redações nascidas com o novo formato digital seria se aproximar das fórmulas clássicas de jornalismo. Jornalista há quatro décadas, torço para que Massing e Gandour estejam certos nas suas previsões e que o jornalismo investigativo sobreviva e viceje.
“Jornalismo em Retração, Poder em Expansão - A Segunda Morte da Opinião Pública”
Ricardo Gandour, Summus Editorial, 120 páginas, R$ 48,20


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe