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Vídeo polariza enfrentamento com STF e expõe intestinos do governo

Primeiro teste desse enfrentamento se dará no desafio do presidente a cumprir qualquer decisão judicial que o obrigue a entregar seu celular, escreve a colunista Maria Cristina Fernandes no site do Valor Econômico, em artigo publicado após a divulgação do vídeo da reunião presidencial de 22/4. Como sempre, uma bela análise de MC Fernandes.

Se a principal consequência da divulgação da íntegra do vídeo é encorpar a reação do Supremo Tribunal Federal (STF) em sua própria defesa e das instituições da República, seu primeiro teste se dará na nova frente de batalha aberta pelo presidente Jair Bolsonaro ao desafiar o cumprimento de qualquer decisão judicial que o obrigue a entregar o celular.
Não houve decisão neste sentido. O ministro Celso de Mello se limitou a encaminhar ao procurador-geral da República os pedidos feitos pelos partidos políticos para que seja tomado o depoimento do presidente, e entregue, à perícia, seu celular e de seu filho Carlos Bolsonaro.
Ao desafiar o decano a fazê-lo, além de colocar à prova a união colegiada da Corte, o presidente atiça, contra seus ministros, o bolsonarismo raiz sobre o qual fez reiteradas referências ao longo das duas horas da reunião ministerial revelada pelo vídeo.
Cabe ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que, aliás, se posicionou contrariamente à divulgação do vídeo, decidir sobre a busca e apreensão do celular do presidente da República. Bolsonaro aposta que ele não virá a fazê-lo. Com isso, passaria, à sua militância, a impressão de que derrotou o Supremo tão abertamente afrontado pelo conteúdo do vídeo.
A reunião não revela mais do que já se sabia sobre a disposição do presidente da República de controlar a Polícia Federal (PF), a não ser a descarada virada de pescoço em direção ao ex-ministro Sergio Moro quando diz: “Vou intervir”. Ficou clara sua disposição de trocar o superintendente da instituição no Rio de Janeiro para melhor proteger sua família, mas há controvérsias sobre a possibilidade de se provar o ato que configuraria a advocacia administrativa, ou seja, o uso da administração pública para um benefício privado. O superintendente só seria trocado semanas depois e ainda não se conhecem atos deste em benefício da família do presidente.
O ato que, durante a reunião, o presidente deixa claro ter sido tomado contra a segurança nacional, é a revogação das portarias do Exército de controle de armas. Bolsonaro diz claramente que quer armar o povo para evitar que se instale uma “ditadura” no Brasil. Não se sente protegido pelas forças – armadas e policiais – constitucionalmente legitimadas a fazê-lo e propõe a formação de milícias em sua defesa.
É com um tom de cobrança – ora agressivo, ora depreciativo – que o presidente se refere às Forças Armadas. Elogia a nota do Ministério da Defesa em respeito à democracia para completar: “Não aceita golpe, dez! Também não aceita um contragolpe dos caras, porra!”. Por duas vezes, o presidente referiu-se ao quartel-general do Exército, em frente ao qual armou-se manifestação antidemocrática com sua presença, como “forte apache”, denominação que os militares detestam.
Bolsonaro quer incluir as Forças Armadas naquilo que, ao longo da reunião deixa claro ser seu principal objetivo: unir seus ministros em torno do mesmo discurso político em defesa do seu mandato que, ele deixa claro, está sob cerco". Diz que não faz questão da reeleição, mas usa as decisões pró-isolamento social de governadores e prefeitos, aos quais denomina de “bosta” (João Doria e Arthur Virgílio Neto) e “estrume” (Wilson Witzel), como pretexto para se dizer perseguido em sua liberdade.
O presidente trata seus ministros como generais da tropa do bolsonarismo raiz. Usa, para cativá-los, o mesmo discurso com o qual se dirige aos seus militantes mais radicais (“Se tiver que cair, vamos cair lutando”, “nosso barco pode tá indo em direção a um iceberg”, “a gente vai pro fundo”, “tô me lixando com a reeleição”). Não por acaso, a divulgação do vídeo atiçou seus seguidores nas redes sociais que vinham perdendo terreno nos últimos dias.
Os ministros mais leais, que reproduzem seu tom, são, pela ordem, Abraham Weintraub (“Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”), Damares Alves (“nós tamos pedindo, inclusive, a prisão de alguns governadores”), Pedro Guimarães (“Se a minha filha fosse pro camburão ou eu matava ou morria” – sobre a detenção de pessoas que desrespeitam o isolamento) e Paulo Guedes (“É tiro, porrada e bomba, mas nós não perdemos a bússola”).
O ministro da Economia deixa claro que seu adversário número 1 naquela reunião é o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. O encontro, oficialmente, havia sido convocado para que o ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, colhesse sugestões para o programa Pró-Brasil, de investimentos públicos. O ministro deixa claro que joga em dueto com Marinho, diz não acreditar em teoria da conspiração e que a catástrofe que se abateu sobre o mundo estava mudando o entendimento de todos sobre o papel do Estado: “Peço que tenhamos aqui as mentes abertas e que os dogmas, quaisquer que sejam eles, presidente, sejam colocados de lado nesse momento”.
Guedes partiu para o contra-ataque. Chamou de despreparado quem havia falado em Plano Marshall (Braga Netto) e jogou um contêiner de arrogância sobre Marinho: “Então, eu li Keynes, é ... três vezes no original antes de eu chegar a Chicago. Então pra mim não tem música, não tem dogma, não tem blá-blá-blá”. Só não passou recibo da sutil estocada que recebeu do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto: “Falta analisar, nos gastos do governo, o quanto desse gasto que eu recupero lá na frente, via preservar emprego, via manter uma empresa viva que ia morrer. Então, eu acho que falta análise completa do gasto. O gasto nunca é a fundo perdido”.
É nas falas de Guedes, Bolsonaro e, pasme, do vice-presidente Hamilton Mourão, que sempre aparece como o apaziguador nas relações sino-brasileiras, que aparecem os cortes censurados, supostamente por referências desabonadoras à China. Ao acatar o pedido da Advocacia-Geral da União de suprimir os trechos referentes a “outras nações”, o ministro Celso de Mello evitou que o Brasil secundasse a Austrália como o próximo país a ser punido por retaliações comerciais dos chineses. Quatro frigoríficos estabelecidos na Austrália (entre os quais dois da JBS) tiveram seus contratos de venda para a China suspensos depois de acusações de integrantes do governo australiano ao “vírus chinês”.
O presidente faz uma única referência, ainda assim velada, aos novos aliados com os quais busca se blindar contra o impeachment, os parlamentares do Centrão: “A gente vai se aproximando de quem não deve. Eu já tenho que me policiar no tocante a isso daí. São pessoas aqui em Brasília, dos três poderes, que não sabem o que é povo”.
Bolsonaro, porém, não precisava de novos aliados para afrontar a República. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, não poderia ter se mostrado mais afinado com o espírito da coisa: “Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação”. Salles vale-se da pandemia para destruir o Estado. Mais bolsonarista, impossível.



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