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EUA e China travam a Guerra Fria da era digital

EUA e China, as duas maiores economias do mundo, travam uma disputa que projeta ao vencedor a possibilidade de redesenhar a economia e a geopolítica global do século XXI. Não se trata da busca da vacina da covid-19 nem de um golpe decisivo na guerra comercial entre os países, que desde 2018 (entre sanções e retaliações) já causou prejuízos bilaterais de mais de US$ 600 bilhões. O que está em jogo é algo maior - a hegemonia global em inovação e alta tecnologia, os principais vetores da Quarta Revolução Industrial, escreve José Eduardo Barella no Valor, em artigo publicado na sexta, 15/5. Vale a leitura, tema bastante contemporâneo e decisivo para o período pós-pandemia. Íntegra abaixo.

Nessa corrida de longo prazo, travada simultaneamente em várias frentes e avaliada em dezenas de trilhões de dólares, EUA e China perseguem a primazia tecnológica nas áreas de inteligência artificial, redes 5G, computação quântica, veículos autônomos, nanotecnologia, biotecnologia, serviços financeiros digitais e internet das coisas, entre outras aplicações. O domínio dessas áreas, além de possibilitar ampla vantagem comercial, vai assegurar a hegemonia em setores estratégicos, como o militar e o espacial.
“Os primeiros monopólios de dados combinados ao domínio da inteligência artificial e da computação quântica poderiam rapidamente dominar mercados e inviabilizar a concorrência internacional”, afirma o economista japonês Asei Ito, especialista em China da Universidade de Tóquio, resumindo o limite dessa disputa num mundo digital e globalizado. Segundo ele, um eventual predomínio da China na área tecnológica, em especial em inteligência artificial, daria ao país uma hegemonia de produtividade só comparável à criada com a Revolução Industrial, que trouxe primazia ao Ocidente.
Os EUA não enfrentavam ameaça à sua liderança desde o fim da Guerra Fria, em 1991, quando o país se consolidou como a única superpotência global. A China, que viu sua economia crescer à base de dois dígitos nos últimos 40 anos, começou a incomodar a Casa Branca com a chegada ao poder de Xi Jinping, em 2013. Desde então, o regime chinês trocou o pragmatismo comercial que sempre marcou sua política externa por uma postura mais assertiva, “para ajudar a criar uma nova governança global”, como o presidente Xi costuma dizer em discursos.
A estratégia chinesa de brigar de frente com os EUA ficou clara há cinco anos, com o lançamento do programa Made in China 2025. A iniciativa de dez pontos previa aumentar o progresso tecnológico em áreas como semicondutores, hardware e software de computadores, redes e comunicações, automóveis e engenharia genética. O programa contemplava ainda apoio à formação de capital humano nas áreas de ciência e tecnologia - as universidades americanas recebem cerca de 300 mil estudantes chineses por ano. Depois, acabou incorporando outra iniciativa, que visa transformar a China numa potência em inteligência artificial até 2030.
O programa se aproveitou da transferência de tecnologia prevista na legislação - que obriga empresas estrangeiras a se associarem a companhias locais para entrar no mercado chinês - e da estratégia anterior de privilegiar as “campeãs nacionais”, que hoje já competem globalmente. Entre elas, a Huawei (equipamentos de telecomunicações), Baidu (inteligência artificial), Alibaba (“e-commerce”) e outras sete listadas entre as maiores do mundo na área de defesa.
“Foi o lançamento do Made in China 2025 que levou o governo americano a elaborar, em 2017, a estratégia da guerra comercial com a China, implementada no ano seguinte pelo presidente Donald Trump”, afirma a diplomata e economista Tatiana Rosito (leia entrevista nesta edição). O americano define o programa chinês como um “roubo de tecnologia que ameaça a segurança nacional e a livre concorrência”.
Os resultados já começaram a aparecer. A China é líder global nos mercados de 5G, pequenos drones, softwares de reconhecimento facial, veículos elétricos, tecnologia de energia limpa (eólica e solar) e de plataformas digitais, além de deter o maior banco de dados do mundo de engenharia genética. O país também é responsável por 40% das patentes na área de tecnologia, o dobro registrado pelos EUA e quatro vezes mais que o Japão.
O sistema de pagamentos é um exemplo da revolução digital que a China está vivendo. Duas novas opções de pagamento, que tornaram obsoleto o uso de cartão bancário, passaram a dominar as transações de varejo. Elas são baseadas em carteiras digitais, acessíveis pelo smartphone por meio de códigos QR (códigos de barras bidimensionais), e executadas pela Alipay, ligada à gigante de tecnologia digital Alibaba (versão chinesa da Amazon), e pelo WeChat Pay, da Tencent (rede social semelhante ao Facebook). Cerca de 1 bilhão de chineses acessam sua conta bancária pelo smartphone para comprar, vender e até dar esmolas na rua, usando os códigos QR para fazer a transação de um celular a outro.
O modelo de código QR foi usado pelo regime chinês para controlar a expansão do coronavírus durante a pandemia. Na entrada de metrôs e ônibus, os usuários passam o smartphone, com os dados pessoais conectados ao sistema de saúde e recebem um código verde, amarelo ou vermelho, com base no histórico de viagens e na exposição a casos confirmados.
Para remodelar a geopolítica global, porém, a China terá de percorrer um longo caminho. “Primeiro, precisa primeiro obter a hegemonia dos mercados de 5G, inteligência artificial e de computação quântica; depois, ver como os outros países responderão a isso e, por fim, saber se conseguirá sustentar o peso dessa liderança”, afirma a pesquisadora italiana Francesca Ghiretti, especialista em Ásia do Instituto de Assuntos Exteriores (IAI), de Roma.
Além disso, tem de ultrapassar a superpotência. Os Estados Unidos ainda desfrutam de uma considerável vantagem competitiva, resultado do poderio econômico, tecnológico e militar acumulado desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A hegemonia americana é reforçada por um ecossistema de inovação que inclui as melhores universidades, investimento por décadas em ciência e pesquisa básica, economia de livre mercado e estímulo ao desenvolvimento tecnológico, o que abriu caminho para a revolução digital, simbolizada pelo Vale do Silício e suas inovações: internet, semicondutores, software e aplicativos. O domínio tecnológico também se estendeu no desenvolvimento de drones, comunicações criptografadas e sistema de navegação por satélite (GPS), além de armas teleguiadas, símbolos da supremacia militar americana.
Os Estados Unidos estão à frente nas áreas de inteligência artificial, engenharia genética, computação quântica, carros autônomos, biotecnologia e nanotecnologia. Tudo isso ajudou a compensar a perda da produção manufatureira, terceirizada para Ásia, Europa Oriental e até para o vizinho México, durante o processo de globalização da economia.
Foi justamente essa mudança no sistema de produção, com a estruturação das cadeias de suprimento em diferentes países, que ajudou a consolidar o crescimento econômico chinês. Em 1979, quando o então líder Deng Xiaoping (1904-1997) abriu a economia da China ao Ocidente, seu Produto Interno Bruto (PIB) representava um décimo do americano e apenas 20% do japonês. Hoje, a economia chinesa é 2,5 vezes maior que a do Japão e deve passar a dos EUA em 2030 - pela paridade do poder de compra (PPP), parâmetro que corrige o cálculo do PIB, a China já é a primeira desde 2014.
A estratégia chinesa de expansão global idealizada por Xi Jinping incluiu o lançamento da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês), programa de infraestrutura para escoar a produção chinesa e abrir rotas comerciais conectando até 60 países da Ásia, África e Europa, por terra e mar. Avaliada a longo prazo em US$ 1 trilhão, a BRI tem cerca de 300 projetos capitaneados pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Aiib, na sigla em inglês) - a instituição financeira multilateral criada por Pequim para fazer frente ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) - e por fundos do próprio governo chinês, que acumula US$ 3 trilhões em reservas internacionais.
Numa lista de 186 países analisada pela consultoria McKinsey, a China é apontada como o maior destino de exportação para 33 países e a maior fonte de importação de 65. Sua influência vai além da concentração industrial e trocas comerciais - chineses inundaram nos últimos anos os mercados mundiais com US$ 7 trilhões em investimentos e aquisições, boa parte por meio de 40 mil empresas do país que atuam no exterior.
O surgimento da covid-19 abriu um novo capítulo na crescente rivalidade entre EUA e China. Trump demorou para admitir a gravidade da doença, usando as entrevistas coletivas como palanque para sua campanha de reeleição em novembro, enquanto a pandemia avançava no país. “Isso é pior do que Pearl Harbor ou World Trade Center. Nunca houve um ataque como este”, disse Trump sobre a pandemia. “Poderia ter sido parado na China, não foi”, acusou.
A China retrucou, mas também cometeu erros, negando por um mês a existência de um surto e, depois, escondendo o tamanho de sua propagação em Wuhan. Quando finalmente admitiu o óbvio, a pandemia já se espalhava para o mundo - atrasando uma ação global coordenada para barrá-la. O regime chinês se aproveitou de ter controlado a pandemia primeiro para oferecer ajuda a outros países.
No aspecto econômico, a pandemia acabou expondo a dependência mundial da China na era globalizada. A expectativa é de que muitas empresas ocidentais decidam revisar a excessiva dependência de fornecedores chineses. País mais rico do mundo, os EUA descobriram que tinham apenas 10% das máscaras especiais e menos de 20% dos respiradores necessários para enfrentar a covid-19. Teve de recorrer ao rival, maior fornecedor mundial desses equipamentos e de 90% dos remédios consumidos pelos americanos.
A recessão econômica causada pela pandemia deverá afetar a disputa tecnológica dos dois países. Os investimentos de empresas chinesas em alta tecnologia também podem sofrer reduções significativas. O PIB chinês caiu 6,8% no primeiro trimestre do ano, em comparação com o mesmo período de 2019. Foi a primeira vez desde 1992 que houve recuo do PIB. De acordo com o FMI, a economia americana deve cair 5,9% em 2020 e a da União Europeia, 7,5%.
Além da recessão global, a eleição americana em novembro pode gerar novos embates na disputa comercial entre EUA e China. Trump vai explorar à exaustão o fato de a covid-19 ter começado em território chinês para culpar o país pela pandemia e dobrar as pressões para barrar o avanço da chinesa Huawei, líder global do emergente mercado 5G, com 91 contratos fechados e presente em 170 países.
O governo americano alega que a tecnologia desenvolvida pela Huawei pode acessar secretamente redes de telefonia celular em todo o mundo por meio de “portas traseiras”, criadas para uso de órgãos judiciais, ou ser suscetíveis a espionagem por parte do governo chinês. “Essas são acusações infundadas sem nenhuma evidência revelada em lugar algum. Para a Huawei, cibersegurança e a proteção de privacidade representam prioridade máxima, acima de quaisquer interesses comerciais”, rebateu a Huawei.
Com velocidade cem vezes superior à do 4G, as redes móveis 5G representam a batalha tecnológica mais visível até agora entre os dois países. Quando implementadas, permitirão aplicações de inteligência artificial (IA), internet das coisas e medicina remota. Um relatório do Fórum Econômico Mundial estima o mercado global das redes sem fio de quinta geração em US$ 13,2 trilhões, com potencial de gerar 22,3 milhões de empregos.
“Os esforços de Trump para banir a Huawei dos mercados ocidentais têm mais a ver com a questão de domínio tecnológico do que com a de segurança nacional”, afirma o economista Peter Petri, do Brookings Institution, centro de pesquisa de Washington. “A segurança nacional deve ser uma prioridade dos EUA, mas não podemos esperar que o país seja a única fonte das principais novas tecnologias.”
Até agora, além dos EUA, apenas cinco países (Japão, Vietnã, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia) barraram a Huawei. Outros aliados dos EUA, como Alemanha e Reino Unido, devem liberar o acesso ao seu mercado 5G com restrições em áreas sensíveis, como de segurança e comunicações de governo.
A pressão americana tem sido rejeitada por uma questão comercial, pois os equipamentos de comunicação de muitos países dependem há anos da Huawei, e o 5G deve ser construído com base nisso - tornando a empresa chinesa a solução mais econômica. “Livrar-se dos aparelhos já existentes e construir novos para que o 5G seja desenvolvido por outros fornecedores é possível, mas extremamente caro”, diz a pesquisadora italiana Francesca Ghiretti, do IAI.
É o caso do Brasil, que adota a tecnologia da Huawei há 22 anos e também tem sofrido pressões do governo americano. “O Brasil precisa defender seus interesses, sem tomar partido em guerra tecnológica ou comercial entre EUA e China, que vai prosseguir por muitos anos”, afirma o embaixador Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice).
A licitação da Anatel para as redes 5G deve ser mantida para 2020. O edital não impôs qualquer restrição à tecnologia 5G da Huawei, que não participa do leilão 5G, mas fornece equipamentos para as operadoras. Segundo Barbosa, a nova tecnologia é fundamental para ajudar na recuperação da economia brasileira, por incorporar aplicações de IA e internet das coisas. “É difícil o governo americano retaliar o Brasil, pois não participamos de rede de inteligência com os EUA. Por outro lado, o Brasil poderá ser afetado, caso a China decida reorientar suas importações de produtos agrícolas”, afirma.
A polêmica em relação às redes 5G e, de forma mais ampla, da segurança de dados oficiais ou privados certamente vai alimentar a disputa tecnológica nos próximos anos. A possibilidade de desavenças entre EUA e China levarem a uma dissociação tecnológica, ou seja, à criação de sistemas digitais que não se integrem, causaria um potencial destrutivo de fluxos e mercados, além de uma divisão na capacidade de inovação.
“Do ponto de vista econômico, é desperdício de recursos, mas existem sérias preocupações quanto às implicações geopolíticas da inovação”, afirma o economista Asei Ito, da Universidade de Tóquio. “Hoje, infelizmente, não temos uma resposta clara e simples a essa questão.”



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