O fenômeno “O Nome da Rosa”, que trata da oposição entre fé e razão, ganha nova versão, com John Turturro, escreve Elaine Guerini no Valor Econômico, em resenha publicada na quinta-feira, 30/4. Outra boa dica para o final de semana prolongado.
Difícil ler “O Nome da Rosa”, best-seller de Umberto Eco (1932-2016), e não imaginar Sean Connery como o frade franciscano protagonista. Sorte a de John Turturro, que nunca viu a adaptação cinematográfica homônima lançada em 1986, seis anos após a publicação do livro responsável pela venda de mais de 50 milhões de cópias ao redor do globo. Do contrário, talvez o ator americano tivesse se deixado influenciar pela interpretação do escocês, ao revisitar o personagem, o frei William de Baskerville, mais de três décadas depois.
“Como não assisti ao filme de Sean Connery na sua estreia, não me ajudaria vê-lo agora. Não queria ter algo que precisasse apagar da memória”, diz Turturro, escalado para viver o frade do século XIV na minissérie “The Name of the Rose”. Rodada na Itália, a produção de oito episódios chega à América Latina e ao Brasil no dia 7 de maio, pelo serviço de streaming Starzplay.
“Eles [políticos] distorcem os fatos para criar uma narrativa falsa. Há ainda o medo do conhecimento e da ciência”, diz Turturro
Assim que começou a ler o livro, ao aceitar participar da minissérie dirigida pelo italiano Giacomo Battiato, Turturro percebeu que o personagem era específico o suficiente nas páginas, fornecendo tudo o que o ator precisaria para a sua composição. “Adoro Sean Connery, mas queria ter um encontro com Eco. Nada de Connery flutuando na minha mente como James Bond ou William de Baskerville”, afirma o ator de 63 anos, que cresceu brincando com um boneco de Connery como 007.
O frade interpretado pelo escocês teve mesmo um quê de herói de ação com jeito sarcástico. Até porque a imagem de Connery continuava impregnada pelo agente secreto britânico que ele tinha encarnado em sete filmes. Quando “O Nome da Rosa” chegou aos cinemas, o último deles, “007 - Nunca Mais Outra Vez” (1983), ainda estava recente na mente do público.
Mas nada que pudesse impedir Connery de conquistar o Bafta de melhor ator pelo papel. Com bilheteria fraca nos EUA, de US$ 7,2 milhões, o filme dirigido pelo francês Jean-Jacques Annaud fez mais sucesso na Europa, onde provavelmente fez a renda total subir para US$ 77 milhões e ainda levou o César (o Oscar francês) de melhor produção estrangeira.
O porte atlético de Connery na época, que sempre foi um ator mais alto que a média, com 1,88m, também contribuiu para uma performance mais física. Nas mãos de Turturro, um tipo mais franzino, o frei William de Baskerville ganha uma aura ainda mais intelectual, o que combina com a intenção original de Eco - de apresentar um homem racional em um mundo guiado exclusivamente pela fé. Aqui o frade encarregado de desvendar crimes em um mosteiro beneditino é um sujeito pensativo e curioso. “Eu só poderia oferecer a minha versão do personagem”, contou Turturro ao Valor.
Por mais comum que seja a situação no teatro, onde os atores sempre resgatam papéis icônicos (como o príncipe Hamlet), interpretados numerosas vezes por outros colegas de profissão, o caso parece atrair mais comparações no cinema e na TV. “Talvez porque as pessoas vejam mais filmes e séries. Mesmo que a comparação seja inevitável, espero que todos tenham a mente aberta para ‘descobrir’ o personagem.”
William de Baskerville fascinou Turturro por ser “cheio de contradições”. “Ele é um grande investigador. É também um homem de ciência e um homem de fé. Um filósofo e um homem de ação”, conta o ator, lembrando que o personagem era um inquisidor, mas renunciou à tortura. “William também acredita que o conhecimento é uma ferramenta de resistência contra o poder, o absolutismo e o fanatismo.”
Fiel à trama que projetou Eco mundialmente, com a tradução de “O Nome da Rosa” para mais de 30 idiomas, a minissérie acompanha os passos do frade na investigação de misteriosas mortes de monges no Norte da Itália, em 1327. O primeiro desafio é combater a mentalidade dos religiosos, já que a maioria acreditava em suposta força demoníaca no mosteiro, possivelmente por viver isolada e só ter acesso ao que os superiores permitiam.
Contrário à visão da igreja, que não deixava os monges frequentarem a monumental biblioteca da abadia, para protegê-los de livros “perigosos”, o frade e o seu ajudante, o noviço Adso de Melk (Damian Hardung), buscam sempre a explicação mais lógica. Ao analisar o padrão das mortes com técnicas científicas, pouco ortodoxas no universo dos monges, a dupla representa a voz da razão.
Ao ler o livro vencedor do Strega, o prêmio literário de maior prestígio na Itália, Turturro logo percebeu que a história saída da imaginação de Eco não tinha envelhecido. Só não imaginava que a trama permitiria leitura tão contemporânea pela première da minissérie na América Latina coincidir com a pandemia do novo coronavírus, momento em que a negação da ciência ganha força mais uma vez.
“Tudo ainda é muito relevante no mundo atual. Vemos políticos tentando limitar o acesso à educação, no sentido de desinformar as pessoas e defender interesses próprios. Eles distorcem os fatos para criar uma narrativa falsa. Há ainda o medo do conhecimento e da ciência”, diz o ator, que nasceu em Nova York, onde mora até hoje. “Eco desmascara a noção romântica da Idade Média, mostrando a corrupção, a ganância e os falsos profetas. Muito disso ainda é visto”, completa.
Foi tamanho o impacto de “O Nome da Rosa” em Turturro que, ao aceitar encabeçar o elenco da minissérie, ele se ofereceu também para ajudar com o roteiro e com a produção - funções que acabou desempenhando. Depois de ler o roteiro, o ator quis conhecer o livro, o que o deixou com reservas sobre a adaptação feita. Para participar do projeto, ele fez questão de reescrever o roteiro para aproximá-lo mais da obra original, aclamada pelo modo como Eco empregou os seus estudos como semiólogo e linguista em uma história de detetive.
“Trata-se de um livro sobre homens, mas também de um livro sobre livros e sobre textos, em que as palavras são muito importantes. Como Eco foi um especialista em escrever discursos e criar argumentos, tentar refazer tudo ou se desviar muito do livro teria sido tolice”, afirma Turturro, sempre visto com uma cópia do livro no set da adaptação, nos estúdios Cinecittà. “Quando tinha dúvida sobre uma cena, sempre voltava ao livro e geralmente acrescentava mais de Eco no roteiro.”
Pelo formato longo de minissérie, com episódios com cerca de 1h, “The Name of the Rose” consegue dar tratamento mais apropriado ao original, com riqueza maior de detalhes, na visão de Turturro. “Além do simples fato de termos mais tempo para contar a história, na TV podemos reproduzir uma maior variedade de emoções. Não é preciso seguir a cartilha do drama ou da comédia, por haver espaço para mais de um gênero na mesma série.”
Para o ator, a “experiência do público é mais íntima na TV”, ao proporcionar que passe mais tempo assistindo aos atores e se conectando com os personagens. “O filme com Sean Connery foi uma versão de duas horas para um livro de 530 páginas”, lembra Turturro, puxando a sardinha para o seu lado, pela minissérie ter a duração de quase 8h.
Difícil ler “O Nome da Rosa”, best-seller de Umberto Eco (1932-2016), e não imaginar Sean Connery como o frade franciscano protagonista. Sorte a de John Turturro, que nunca viu a adaptação cinematográfica homônima lançada em 1986, seis anos após a publicação do livro responsável pela venda de mais de 50 milhões de cópias ao redor do globo. Do contrário, talvez o ator americano tivesse se deixado influenciar pela interpretação do escocês, ao revisitar o personagem, o frei William de Baskerville, mais de três décadas depois.
“Como não assisti ao filme de Sean Connery na sua estreia, não me ajudaria vê-lo agora. Não queria ter algo que precisasse apagar da memória”, diz Turturro, escalado para viver o frade do século XIV na minissérie “The Name of the Rose”. Rodada na Itália, a produção de oito episódios chega à América Latina e ao Brasil no dia 7 de maio, pelo serviço de streaming Starzplay.
“Eles [políticos] distorcem os fatos para criar uma narrativa falsa. Há ainda o medo do conhecimento e da ciência”, diz Turturro
Assim que começou a ler o livro, ao aceitar participar da minissérie dirigida pelo italiano Giacomo Battiato, Turturro percebeu que o personagem era específico o suficiente nas páginas, fornecendo tudo o que o ator precisaria para a sua composição. “Adoro Sean Connery, mas queria ter um encontro com Eco. Nada de Connery flutuando na minha mente como James Bond ou William de Baskerville”, afirma o ator de 63 anos, que cresceu brincando com um boneco de Connery como 007.
O frade interpretado pelo escocês teve mesmo um quê de herói de ação com jeito sarcástico. Até porque a imagem de Connery continuava impregnada pelo agente secreto britânico que ele tinha encarnado em sete filmes. Quando “O Nome da Rosa” chegou aos cinemas, o último deles, “007 - Nunca Mais Outra Vez” (1983), ainda estava recente na mente do público.
Mas nada que pudesse impedir Connery de conquistar o Bafta de melhor ator pelo papel. Com bilheteria fraca nos EUA, de US$ 7,2 milhões, o filme dirigido pelo francês Jean-Jacques Annaud fez mais sucesso na Europa, onde provavelmente fez a renda total subir para US$ 77 milhões e ainda levou o César (o Oscar francês) de melhor produção estrangeira.
O porte atlético de Connery na época, que sempre foi um ator mais alto que a média, com 1,88m, também contribuiu para uma performance mais física. Nas mãos de Turturro, um tipo mais franzino, o frei William de Baskerville ganha uma aura ainda mais intelectual, o que combina com a intenção original de Eco - de apresentar um homem racional em um mundo guiado exclusivamente pela fé. Aqui o frade encarregado de desvendar crimes em um mosteiro beneditino é um sujeito pensativo e curioso. “Eu só poderia oferecer a minha versão do personagem”, contou Turturro ao Valor.
Por mais comum que seja a situação no teatro, onde os atores sempre resgatam papéis icônicos (como o príncipe Hamlet), interpretados numerosas vezes por outros colegas de profissão, o caso parece atrair mais comparações no cinema e na TV. “Talvez porque as pessoas vejam mais filmes e séries. Mesmo que a comparação seja inevitável, espero que todos tenham a mente aberta para ‘descobrir’ o personagem.”
William de Baskerville fascinou Turturro por ser “cheio de contradições”. “Ele é um grande investigador. É também um homem de ciência e um homem de fé. Um filósofo e um homem de ação”, conta o ator, lembrando que o personagem era um inquisidor, mas renunciou à tortura. “William também acredita que o conhecimento é uma ferramenta de resistência contra o poder, o absolutismo e o fanatismo.”
Fiel à trama que projetou Eco mundialmente, com a tradução de “O Nome da Rosa” para mais de 30 idiomas, a minissérie acompanha os passos do frade na investigação de misteriosas mortes de monges no Norte da Itália, em 1327. O primeiro desafio é combater a mentalidade dos religiosos, já que a maioria acreditava em suposta força demoníaca no mosteiro, possivelmente por viver isolada e só ter acesso ao que os superiores permitiam.
Contrário à visão da igreja, que não deixava os monges frequentarem a monumental biblioteca da abadia, para protegê-los de livros “perigosos”, o frade e o seu ajudante, o noviço Adso de Melk (Damian Hardung), buscam sempre a explicação mais lógica. Ao analisar o padrão das mortes com técnicas científicas, pouco ortodoxas no universo dos monges, a dupla representa a voz da razão.
Ao ler o livro vencedor do Strega, o prêmio literário de maior prestígio na Itália, Turturro logo percebeu que a história saída da imaginação de Eco não tinha envelhecido. Só não imaginava que a trama permitiria leitura tão contemporânea pela première da minissérie na América Latina coincidir com a pandemia do novo coronavírus, momento em que a negação da ciência ganha força mais uma vez.
“Tudo ainda é muito relevante no mundo atual. Vemos políticos tentando limitar o acesso à educação, no sentido de desinformar as pessoas e defender interesses próprios. Eles distorcem os fatos para criar uma narrativa falsa. Há ainda o medo do conhecimento e da ciência”, diz o ator, que nasceu em Nova York, onde mora até hoje. “Eco desmascara a noção romântica da Idade Média, mostrando a corrupção, a ganância e os falsos profetas. Muito disso ainda é visto”, completa.
Foi tamanho o impacto de “O Nome da Rosa” em Turturro que, ao aceitar encabeçar o elenco da minissérie, ele se ofereceu também para ajudar com o roteiro e com a produção - funções que acabou desempenhando. Depois de ler o roteiro, o ator quis conhecer o livro, o que o deixou com reservas sobre a adaptação feita. Para participar do projeto, ele fez questão de reescrever o roteiro para aproximá-lo mais da obra original, aclamada pelo modo como Eco empregou os seus estudos como semiólogo e linguista em uma história de detetive.
“Trata-se de um livro sobre homens, mas também de um livro sobre livros e sobre textos, em que as palavras são muito importantes. Como Eco foi um especialista em escrever discursos e criar argumentos, tentar refazer tudo ou se desviar muito do livro teria sido tolice”, afirma Turturro, sempre visto com uma cópia do livro no set da adaptação, nos estúdios Cinecittà. “Quando tinha dúvida sobre uma cena, sempre voltava ao livro e geralmente acrescentava mais de Eco no roteiro.”
Pelo formato longo de minissérie, com episódios com cerca de 1h, “The Name of the Rose” consegue dar tratamento mais apropriado ao original, com riqueza maior de detalhes, na visão de Turturro. “Além do simples fato de termos mais tempo para contar a história, na TV podemos reproduzir uma maior variedade de emoções. Não é preciso seguir a cartilha do drama ou da comédia, por haver espaço para mais de um gênero na mesma série.”
Para o ator, a “experiência do público é mais íntima na TV”, ao proporcionar que passe mais tempo assistindo aos atores e se conectando com os personagens. “O filme com Sean Connery foi uma versão de duas horas para um livro de 530 páginas”, lembra Turturro, puxando a sardinha para o seu lado, pela minissérie ter a duração de quase 8h.
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