Vale a leitura da excelente reportagem da jornalista do Valor Econômico, publicada nesta sexta-feira, 8/5. Na íntegra, abaixo.
Enquanto os europeus atualizavam estatísticas sobre contaminados e mortos pelo novo coronavírus, dois filósofos franceses conhecidos se manifestaram sobre especulações em torno do amanhã. Reflexões ainda um tanto quanto difusas, porém latentes: o mundo será o mesmo depois da covid-19? Controlada a transmissão do vírus e tendo à disposição uma vacina eficaz, voltaremos aos nossos velhos modos de vida? Respiraremos os mesmos níveis de poluição? Assistiremos aos mesmos distúrbios climáticos - queimadas, enchentes, derretimento das calotas polares? Continuaremos a alimentar um consumismo praticamente insaciável?
Edgar Morin era um desses filósofos. Aos 99 anos e vivendo com a mulher num apartamento térreo em Paris - com direito a um jardinzinho onde toma sol e vizinhos camaradas que hoje fazem compras de mercado para o casal -, ele se deixou ouvir por jornalistas do “Le Monde” em longa entrevista.
Admitiu que, mesmo tendo previsto crises sociais e econômicas resultantes das dinâmicas da globalização, jamais pensou numa grande crise sanitária. “Acho que o único profeta do que estamos vivendo foi Bill Gates. Em conferência de alguns anos atrás, preocupado com o ebola, ele disse claramente: o grande perigo da humanidade no nosso século não será o nuclear, mas o sanitário”. Morin admite que muitas futurologias naufragaram na atual pandemia e que o conforto intelectual, assim como os hábitos materiais, “têm horror a tudo que os incomode”.
Ainda assim, o velho mestre da transdisciplinaridade, autor de obras marcantes como “O Método”, “Introdução ao Pensamento Complexo” e “Ciência com Consciência”, deixou como nota de otimismo a possibilidade de uma tomada geral de consciência, “algo que nos leve ao interior da aventura humana e nos mostre o quão incerto e trágico é o nosso destino na Terra”. Acrescentou à nota o convite para que pensemos em termos contraditórios. Mundializar, sim, mas desmundializar também. Desenvolver a economia de grande escala, mas reforçar a economia comunitária. Manter o comércio para o atendimento do bem-estar geral, mas diminuir o comércio sobre o descartável, o frívolo.
No momento em que se manifestava, Morin foi chamado de “mercador da sabedoria” por um filósofo conterrâneo, Luc Ferry, em outro jornal francês, “Le Figaro”. Aos 69 anos e autor de livros como “A Revolução do Amor” e “7 Maneiras de Ser Feliz”, Ferry assinou uma crônica ácida, intitulada “Os Abutres”. Nela, disparou contra “os colapsólogos que adoram uma catástrofe”. Além de Morin, colocou nesse grupo Nicolas Hulot, ecologista e ex-ministro do Meio Ambiente de Emmanuel Macron, “que a todo custo quer associar a pandemia ao ‘ultimatum’ da natureza, o que é risível e sem base científica”. Ferry prevê que pouca coisa mudará quando a crise sanitária estiver sob controle. Aposta que o crescimento liberal mundializado voltará com tudo, seguindo direção clara: “business as usual”.
São visões contrastadas, em boa parte antagônicas, por entre as quais vagam negacionistas, combate ao vírus com medicamentos exóticos (de vermífugos a produtos de limpeza), contaminação “de rebanho” como estratégia de imunização (sem levar em conta o número de mortes que isso implicaria hoje) - e por aí segue o debate em torno de uma pandemia jamais vista pela humanidade, que em semanas se espalhou nos dois hemisférios, colocando em isolamento social mais da metade da população planetária. E mais: uma pandemia que expôs a fragilidade dos sistemas de saúde, fora os sinais de recessão econômica global, de consequências e duração imprevisíveis. Afinal, sairemos disso da mesma forma como entramos? Voltaremos à “normalidade”? Que lições vamos de tirar da covid-19?
Possivelmente, inúmeras e diversas - o problema é que nem sempre lições são assimiladas. Segundo epidemiologistas, os EUA, ainda a maior potência mundial do planeta, tinham todas as condições para enfrentar a pandemia da covid-19 de forma antecipada e organizada. Em 2015, estava claro para o governo americano o tipo de ameaça global que representou o vírus ebola, cujo primeiro surto importante ocorrera um ano antes, em países da África. Ainda na administração Obama, realizou-se detalhado estudo sobre essa transmissão viral, bem como a gravidade da infecção e sua letalidade, dando origem a um relatório de 73 páginas e 21 recomendações, herdado pela administração Trump.
Sob a Presidência republicana, o Departamento de Saúde realizou simulações em 2019 face a possível situação pandêmica, com base no relatório dos democratas. No entanto, os resultados dos experimentos sequer foram divulgados, conforme denunciou “The New York Times” recentemente. Talvez lições não aprendidas levaram o presidente americano a reagir com ceticismo ao novo coronavírus. Trump achou que era um problema restrito, passageiro, e demorou três semanas para acionar o alarme. Vale lembrar: o primeiro caso em território americano pipocou em Chicago, 47 dias antes de a Organização Mundial da Saúde decretar a pandemia, em 11 de março. Só que, no momento do anúncio, a projeção era a de que muitos milhares de americanos seriam infectados. E o ceticismo de Trump só fez piorar as estimativas.
Outro exemplo de que lições podem passar batidas ocorreu na França, visivelmente despreparada para a covid-19. Onze anos depois de ter alertado o país sobre os riscos de contágio em massa pelo vírus H1N1, Roselyne Bachelot, ex-ministra da Saúde no governo do primeiro-ministro François Fillon, viu-se redimida nas últimas semanas. “Virei atualidade”, ironizou, publicamente. “As emoções agora estão muito fortes, mas foi com serenidade e antecipação que consegui ter vacinas para imunizar mais de 6 milhões de pessoas em meu país, em 2009. Além disso, reforcei o sistema de saúde, encomendei a fabricantes locais grandes quantidades de luvas e máscaras. Fui objeto de gozação, ataques insuportáveis, injustiças.” Com os sucessivos cortes nas verbas de saúde nos últimos anos, de repente a França de Macron viu que máscaras, só as chinesas. E dependendo da disponibilidade do fornecedor.
É provável que muitas lições da pandemia atual nem possam ser identificadas ainda, uma vez que o vírus, de alta complexidade, continua a desafiar a comunidade científica, assim como as sociedades e seus governantes. Infectados de hoje serão os imunizados de amanhã? Haverá ondas sucessivas de transmissão? O quão mutante é o Sars-CoV-2, esse vírus de proximidade com altíssimo poder de contágio e sintomatologia grave? Enquanto universidades, centros de pesquisa e laboratórios farmacêuticos se lançam na louca corrida para encontrar saídas - tratamentos eficazes e, sobretudo, uma vacina imunizadora -, a sensação de vulnerabilidade social continuará a crescer num mundo com barreiras sanitárias e economias em frangalhos.
Entre as fontes ouvidas pelo Valor, dentro e fora do Brasil, sobre os contornos possíveis do amanhã, parece haver consenso de que, embora a pandemia tenha mandado todo mundo para casa, independentemente de idade, raça, sexo, instrução, religião, profissão, poder econômico ou visão política, é certo que a desigualdade no planeta agora ficou escancarada. No entanto, quando a emergência sanitária se impôs, novamente sistemas de privilégios foram acionados, sendo incapazes de deter a velocidade do contágio, por um lado, e cavando ainda mais o fosso entre ricos e pobres, por outro.
Essa é a visão do cientista franco-colombiano Carlos Moreno, especialista em inovação e controle de sistemas complexos, professor da Sorbonne e o principal consultor da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, em planejamento urbano. Em meados de janeiro, ele já estava desenhando um plano de emergência ao lado da prefeita, que logo compreendeu a dimensão do problema. Era preciso fechar Paris o mais rápido possível, assumindo que a covid-19 abriria uma crise urbana sistêmica, de natureza sanitária, afetando todos os setores.
“Logo Anne cancelou os festejos pelo ano-novo chinês, fechou estabelecimentos comerciais, pontos turísticos, enfim, mandou as pessoas para casa e ainda enviou uma carta com dez pontos para Macron, alertando-o sobre a gravidade do que viria. Naquele momento, o presidente ainda falava que máscaras não serviriam para nada.”
O problema, segundo Moreno, é que, com o passar das semanas, ficou evidente que o confinamento, obrigatório e extensivo a todos, era diferente para uns e outros. “Logo começamos a ver uma sobremortalidade nos bairros mais populares de Paris, atingindo pessoas que precisam sair de casa para trabalhar e ganhar a vida, portanto, que se expõem mais. São os mais pobres, os imigrantes, os entregadores, os subempregados”, enumera o cientista, agregando que metrópoles confinadas cobram ainda mais a presença dos que não podem parar.
“Esse fenômeno se repete em muitas cidades pelo mundo, porque elas estão organizadas assim. Eu mesmo entro em pânico quando ouço as barbaridades ditas pelo presidente brasileiro”, afirma. “Me vêm à memória as favelas que conheço no Rio, os espaços pequenos onde vivem famílias numerosas, gente trabalhadora... esse senhor só pode ser um suicida ao ignorar essa realidade e estimular o fim do confinamento.”
A organização social e territorial das cidades é tema que entrou em pauta na travessia da covid-19. Nos últimos anos, muito se falou sobre as “smart cities”, cidades inteligentes operadas por grandes sistemas de dados - Big Data - e inteligência artificial. Quando a ordem passou a ser “fique em casa”, “lave as mãos com água e sabão”, “use água sanitária na faxina”, “poupe o álcool em gel porque vai faltar”, “improvise máscaras com retalhos de pano ou filtros de coar café”, toda aquela sofisticação tecnológica precisou dar passagem a conselhos rudimentares, caseiros, para o enfrentamento da crise - ainda que tenha sido justamente o mundo on-line que impediu o planeta de sucumbir no isolamento completo. Hoje a conversa entre urbanistas mudou: mais do que inteligentes, é tempo de pensar em cidades resilientes para todas as pessoas. “Human living cities” é o conceito da vez.
Uma urbanista brasileira já vinha alertando a comunidade internacional sobre as fragilidades do modelo de cidade construído pelas democracias ocidentais no século XX, segundo a visão capitalista. “Estava claro que, com o crescimento da desigualdade, as cidades teriam que pensar em espaços de acolhimento, moradia digna, proteção social e biossegurança. Mas não foi feito. Por exemplo, saímos da crise financeira de 2008/2009 preocupados em salvar bancos, e não em cuidar das pessoas”, compara Raquel Rolnik, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, diretora de planejamento urbano da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-1992) e relatora especial da ONU para Direito à Moradia de 2008 a 2014.
“Agora a pandemia colocou tudo isso a nu. Revelou ao mundo como uma potência como os EUA insistem em manter um sistema de saúde tão ruim e precário. Ou, pensando no Brasil, mostrou como há pessoas em São Paulo vivendo sem água encanada, ainda que a companhia de saneamento básico da metrópole, a Sabesp, seja uma das maiores do mundo, com ações listadas na Bolsa de Nova York.”
Carlos Moreno lança outras perguntas: afinal, como viver num mundo onde pessoas têm respirador reservado em hospital privado, ou máscaras e luvas para quando deixarem o confinamento domiciliar protegido, enquanto em cidades como Guaiaquil, capital do Equador, os corpos das vítimas da doença são empilhados para enterro em caixas de papelão e valas comuns? Imagens que vêm de cidades brasileiras não têm menos impacto. Conforme Moreno, dá para projetar um mundo mais resiliente mantendo situações tão discrepantes? Ele próprio arrisca uma resposta: “O século XX foi das nações. O século XXI é o das cidades. Elas precisam ser repensadas e, nisso, o papel dos prefeitos cresce. São os governantes mais próximos das pessoas, enxergam as demandas e têm capacidade de responder de forma mais rápida e eficaz”.
Raquel aponta uma alternativa: segundo ela, modelos centralizados de gestão administrativa, implantados de cima para baixo, não são capazes de responder aos desafios atuais das cidades, inclusive novas crises virais que poderão vir a acontecer, como preveem epidemiologistas.
“Tenho visto exemplos de autogestão surpreendentes nas últimas semanas, verdadeiras lições para o poder público”, comenta a urbanista. “No momento zero da pandemia, moradores de comunidades como Heliópolis, em São Paulo, ou da Favela da Maré, no Rio, já saíram tomando providências - quem precisa de comida, quem precisa de sabão, quem não tem cama, quem vai ficar isolado? A mesma coisa aconteceu em ocupações de moradia do MTST, com impressionante capacidade de organização. Ou na distribuição de alimentos feita pelo MST. Essas coisas precisam ser vistas e reconhecidas! Não é à toa que hoje essas organizações estão trabalhando em parceria com as prefeituras. É a cidade funcionando de baixo para cima.”
Bill Gates, que está investindo bilhões de dólares na pesquisa e no desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus, por meio de sua fundação filantrópica, trata o tema da desigualdade com abordagem aparentemente simplória, que faz pensar: “Diante de uma doença tão grave como esta, descobrimos que estamos todos no mesmo barco”. A afirmação pode até causar desconfiança partindo de um dos homens mais ricos do planeta, fundador do império Microsoft, mas pode servir como elemento de reflexão sobre um materialismo fora dos limites que, numa situação como a de hoje, além de inútil, perde o sentido.
Moreno comenta com o Valor a primeira coisa que fizeram os chineses de Wuhan quando o isolamento social foi suspenso: formaram filas para comprar artigos de luxo nas lojas Hermés e Louis Vuitton mais próximas. “Saíram do confinamento para comprar bolsas e sapatos!”, diz.
Raquel destaca que há um modelo asiático de megacidade, não só na China, mas em Cingapura ou Taiwan - panóptico, militarizado, calcado na vigilância social por meios digitais - que pode ter feito enorme diferença no combate ao vírus ao propiciar uma resposta social mais organizada. Porém, lembra a urbanista, trata-se de um modelo autoritário, ainda que aberto a tentações (permitidas) do consumismo. Aliás, os asiáticos não são apenas os grandes compradores das grifes de luxo, em seus países ou fora deles, como representam também a faixa mais rentável do turismo internacional - outro campo cercado de interrogações sobre o amanhã.
É consenso na comunidade científica que o vírus se deslocou de um primeiro continente para os outros por meio das pessoas que viajam, o que põe em xeque como se dará, no pós-covid 19, a mobilidade humana pelo planeta.
É um imenso problema: segundo o World Travel and Tourism Council - WTTC (Conselho Mundial de Viagens e Turismo), a atual pandemia poderá colocar em risco 50 milhões de empregos associados ao setor, pelo mundo afora. Não há previsão segura de retomada antes de um ano. Note-se que essa indústria, até semanas atrás, respondia por 10% do PIB global. Números vindos da International Air Transport Association (Iata) também preocupam: as receitas globais da aviação caíram 20% e, na região Ásia-Pacífico, 25%. Ainda não foram reprogramados prazos para a retomada do setor, num possível cenário de falências em série.
Essas companhias lutam contra um inimigo imponderável: o medo das pessoas. Mesmo se adaptando a novos padrões internacionais de vigilância sanitária, restará o receio de se deslocar em ambientes confinados, climatizados artificialmente, sejam aviões, trens ou navios.
Recorrendo a exemplos: assim como ficarão na memória imagens de cidades-fantasmas, em “lockdown”, por muito tempo também serão lembradas as imagens de passageiros acenando do transatlântico Diamond Press, ancorado perto do porto de Yokohama, na baía de Tóquio, com 3,7 mil pessoas a bordo - entre elas, centenas de infectados pelo novo coronavírus. Ou do Grand Princess, outro navio saído dos estaleiros de Fincatieri, na Itália, estacionado na costa de San Francisco, nos Estados Unidos, esperando o desembarque de passageiros adoecidos, que seguiram direto para quarentena em bases militares americanas.
“Não é de hoje que se sabe que esses navios representam alto risco para a saúde. São monstrengos que podem levar 5 mil pessoas a bordo, centenas trabalhando e vivendo como escravas nos andares inferiores. Fazem escalas de 4 a 6 horas em cidades como Barcelona, Dubrovnik ou Salvador, despejando em terra multidões ávidas por um turismo predatório, que não agrega valor ao local. E por que esses navios viviam lotados? Por vender para as massas o sonho do cruzeiro marítimo, a preços módicos. Esses navios confinam e descarregam gente o tempo todo, operam em péssimas condições de higiene, sem falar na enorme poluição provocada por suas caldeiras, exalando fumaça cancerígena. O que pode haver de pior?” O relato é do jornalista Fábio Steinberg, há 20 anos escrevendo sobre o setor de turismo. Criou também o blog Turismo Sem Censura.
Na sua avaliação, os meganavios já deveriam estar com os dias contados, mas, como muitas dessas empresas primam pela falta de transparência, “elas agirão como circo. Se não tem como fazer espetáculo, recolherão a lona e esperarão a crise passar”. A preocupação maior de Steinberg é com a rede hoteleira.
“Este é o setor que vai sofrer mais. Hotéis têm estruturas, custos fixos altos, pessoal a pagar. Hoje, no setor de viagem e turismo em escala global, 70% das receitas vêm da área de ‘business’, ou seja, viagens de negócios, e só 30% do lazer. Se as empresas percebem que muito do seu trabalho pode ser feito de forma remota, de pequenas reuniões a convenções com milhares de funcionários, imagine o impacto econômico disso para os hotéis? Imagine as perdas para a rede hoteleira de metrópoles como São Paulo ou Las Vegas, que há muito tempo não vive dos cassinos, mas dos megaeventos corporativos? ”
Steinberg admite que os encontros cara a cara desse mundo possam ser mantidos ao menos em parte nos tempos que virão, garantindo um certo glamour ao mundo dos negócios, algo que implica conversas, coquetéis, jantares, espetáculos, brindes etc. Porém, a proximidade humana continuará sendo uma difícil equação para diferentes setores - alguns mais essenciais do que outros, como nos exemplos a seguir.
No fim de fevereiro, com os casos de contaminação assustando a Itália, uma escola-modelo da afluente região da Lombardia, a International School of Monza, quis mostrar como foi acertado investir em educação por meio da tecnologia (“e-tech”): em 24 horas, transformou-se de escola física em escola virtual de alto padrão, com professores já capacitados para operar on-line e de forma integrada com alunos com ótimo acesso a internet e um MacBook.
Com a pandemia se espalhando pelo globo terrestre e 1,5 bilhão de estudantes fora da escola, Andreas Schleicher, diretor-geral do Departamento de Educação e Competências da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), afirma: “É um grande momento para a educação. Buscamos soluções criativas, e os alunos poderão ser proprietários do seu aprendizado. Mudanças acontecerão a partir desta crise”.
A desigualdade desafia o otimismo. Schleicher não pode deixar de levar em conta que 95% das crianças e jovens noruegueses têm acesso a computador e internet de qualidade, contra 35% na Indonésia. No Brasil, verifica-se a possibilidade de ampliação e melhoria do ensino remoto, uma vez que 86% dos jovens e adolescentes estão de alguma forma conectados à web.
“No isolamento social, o Brasil vem fazendo o mesmo que outros países, ou seja, combinando estratégias - aulas on-line e teleaulas usando redes como a TV Justiça, além de cadernos de atividades enviados para as casas. Fico emocionada com o que se tem conseguido fazer de uma hora para outra em muitos Estados e municípios brasileiros, sem colaboração do MEC, o que é muito grave”, diz Claudia Costin, ex-ministra da Administração e Reforma do Estado no governo FHC (1995-2002) e hoje diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV.
De seu confinamento, Claudia orienta escolas públicas em 50 municípios de diferentes Estados. Participa de um esforço concentrado para que milhares de crianças brasileiras continuem a estudar em lares já abalados pela crise sanitária e seu impacto econômico. “Essas crianças estão afetadas emocionalmente, assim como os pais, mas temos que agir de alguma forma. Hoje são muitas ideias criativas colocadas sobre a mesa, como, por exemplo, reforçar as relações familiares nesta fase dura. Propomos que pais e filhos separem um tempo para, juntos, rever álbuns de família ou fotografias esparsas - não importa. Que troquem histórias sobre parentes vivos ou que já se foram. Que compartilhem lembranças familiares. E assim as crianças vão trabalhando a construção da própria identidade.”
“Não podemos deixar de aproveitar esse tempo”, diz Claudia, reconhecendo que a escola de hoje, seja pública ou privada, terá de se preparar para a Quarta Revolução Industrial e o futuro do trabalho, com a inteligência virtual substituindo a presença humana em muitos campos. Uma escola que prepare o indivíduo para competências sofisticadas, como a empatia, a persistência, o empreendedorismo - atributos que faltam aos robôs. Mas ainda cabe a pergunta: podem os defensores do “home schooling”, ou ensino domiciliar, uma das bandeiras da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, encherem-se de razão num momento de escolas fechadas?
Para Claudia Costin, haverá essa tentativa. “Temos, no Brasil, 48 milhões de inscritos no ensino básico. É possível imaginar 20 milhões de famílias educando crianças em casa? Os adultos deixarão de trabalhar e buscar o sustento para estudar com os menores? Que fique claro: pais são educadores, não são professores”, afirma, deixando uma recomendação para o pós-covid: a escola física, presencial, não é só o lugar para adquirir conhecimentos e aprender a pensar criticamente. É também o espaço para desenvolver talentos, para aprender a trabalhar em grupo e lidar com as regras do viver em sociedade. Portanto, ela deve continuar a existir, mais do que nunca.
“E como são bem tratadas as crianças aqui... Esta é uma das razões do sucesso chinês”, comenta do outro lado do mundo Francisco Foot Hardman, professor do Departamento de Literatura e do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL). Hardman atravessa os tempos da covid-19 vivendo em Pequim, onde cumpre ano acadêmico como professor de literatura em língua portuguesa na prestigiosa universidade local. Vêm dele as impressões sobre uma metrópole de 21,5 milhões de habitantes, que se organiza para voltar ao normal:
“Aqui, tudo cauteloso. Outro dia, no metrô, pigarreei de leve e o cidadão sentado na poltrona da frente, a 1m de mim, levantou-se. Preferiu ficar de pé, no vagão seguinte, a permanecer ao lado de um passageiro com cara de ocidental, que tosse. Pequim está zerada de novos casos de coronavírus, e as poucas ocorrências recentes são de chineses ou estrangeiros que conseguiram entrar no país. A primavera chegou e continua sendo, depois do outono, a estação mais linda: céu limpo, sol brilhando, temperaturas entre 4°C e 15°C e os parques públicos reabertos: as crianças fazem a festa, todas mascaradinhas. Escolas do ensino médio e fundamental, bem como universidades, fechadas ainda.”
Uma das lições dessa pandemia é a relação entre nível educacional da população e respostas sanitárias, seja para a fase do confinamento, seja para a volta à normalidade da vida. Essa relação se revela na forma como países asiáticos enfrentam a atual pandemia - caso da Coreia do Sul, exemplarmente, e da própria China, ainda que pairem dúvidas sobre os rigores do controle social no grande tigre. “Mas os chineses parecem nem estar aí com isso. Eles já se sentem como primeira potência mundial, apostam na multilateralidade e sonham com a paz perene. Espero que, passada a pandemia, possam continuar a alargar a curiosidade que têm pelo Brasil.”
Um dos mais destacados artistas plásticos da sua geração, o pintor paulista Marco Giannotti, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, recorre à experiência que teve como professor visitante da Universidade de Kyoto, no Japão, para arriscar uma explicação para a resposta asiática na pandemia. Ele acha que, além do nível educacional mais elevado da população, mecanismos milenares entraram em ação. É um caminho de análise, uma sinalização para o futuro.
“Só o confucionismo explica por que os mandatários chineses precisam ser recrutados entre os melhores politécnicos do país. Lá, quem dá as ordens e comanda tem de ser o melhor. Ou estar entre os melhores. Já o xintoísmo no Japão garante o profundo apreço pela vida e pela natureza. Isso é evidente na maneira como eles veem uma árvore, uma montanha. No Brasil, estamos nos distanciando cada vez mais das nossas tradições, entre elas o respeito pelo meio ambiente que nos ensinaram os indígenas. Somos desenraizados”.
Questionado sobre o futuro das artes, no tempo em que a proximidade das pessoas significa risco de saúde, Giannotti diz que “cada vez mais somos chamados para ‘tours’ virtuais por exposições, concertos, espetáculos de dança. Cada vez mais meus alunos se relacionam com a criação no plano virtual. Mas eles não podem ter apenas uma visão Wikipédia da arte e do mundo. Precisamos voltar a nos encontrar pelo prazer de partilhar a experiência estética, ainda que com menos recursos, talvez em ambientes menores, como salas e ateliês, mas revalorizando o fazer e o estar juntos”. Seria uma oportunidade para rever a cultura de massas? “Quisera ser otimista a respeito disso. Infelizmente, a cultura de massas, orientada pelos vetores do consumismo e da desinformação, não oferece muitas chances de ruptura. E nem de transição para um modelo em que sociedade civil e espaço público voltem a ter centralidade”, analisa Hardman.
Carlos Moreno pinça um exemplo que pode garantir, se não otimismo, um pouco de esperança. Com o isolamento de Paris por longas semanas, não só as pessoas puderam ocupar as sacadas de seus apartamentos para bater panelas de vez em quando, como para se olhar, talvez, pela primeira vez. “Foi incrível recuperar o gosto pela vizinhança. Sempre tão fechado, o parisiense pôde descobrir que, no apartamento em frente ao seu, há um jovem músico ou uma senhora com seu animal de estimação ou um casal convivendo com crianças alegres. E assim as pessoas, confinadas em casa, começaram a trocar um simples ‘bonjour’, depois, alguma conversa, passaram a se dar conta da existência do outro. Isso é mágico! Ainda que falemos tanto em isolamento, vamos todos pensar mais na nossa proximidade”.
Enquanto os europeus atualizavam estatísticas sobre contaminados e mortos pelo novo coronavírus, dois filósofos franceses conhecidos se manifestaram sobre especulações em torno do amanhã. Reflexões ainda um tanto quanto difusas, porém latentes: o mundo será o mesmo depois da covid-19? Controlada a transmissão do vírus e tendo à disposição uma vacina eficaz, voltaremos aos nossos velhos modos de vida? Respiraremos os mesmos níveis de poluição? Assistiremos aos mesmos distúrbios climáticos - queimadas, enchentes, derretimento das calotas polares? Continuaremos a alimentar um consumismo praticamente insaciável?
Edgar Morin era um desses filósofos. Aos 99 anos e vivendo com a mulher num apartamento térreo em Paris - com direito a um jardinzinho onde toma sol e vizinhos camaradas que hoje fazem compras de mercado para o casal -, ele se deixou ouvir por jornalistas do “Le Monde” em longa entrevista.
Admitiu que, mesmo tendo previsto crises sociais e econômicas resultantes das dinâmicas da globalização, jamais pensou numa grande crise sanitária. “Acho que o único profeta do que estamos vivendo foi Bill Gates. Em conferência de alguns anos atrás, preocupado com o ebola, ele disse claramente: o grande perigo da humanidade no nosso século não será o nuclear, mas o sanitário”. Morin admite que muitas futurologias naufragaram na atual pandemia e que o conforto intelectual, assim como os hábitos materiais, “têm horror a tudo que os incomode”.
Ainda assim, o velho mestre da transdisciplinaridade, autor de obras marcantes como “O Método”, “Introdução ao Pensamento Complexo” e “Ciência com Consciência”, deixou como nota de otimismo a possibilidade de uma tomada geral de consciência, “algo que nos leve ao interior da aventura humana e nos mostre o quão incerto e trágico é o nosso destino na Terra”. Acrescentou à nota o convite para que pensemos em termos contraditórios. Mundializar, sim, mas desmundializar também. Desenvolver a economia de grande escala, mas reforçar a economia comunitária. Manter o comércio para o atendimento do bem-estar geral, mas diminuir o comércio sobre o descartável, o frívolo.
No momento em que se manifestava, Morin foi chamado de “mercador da sabedoria” por um filósofo conterrâneo, Luc Ferry, em outro jornal francês, “Le Figaro”. Aos 69 anos e autor de livros como “A Revolução do Amor” e “7 Maneiras de Ser Feliz”, Ferry assinou uma crônica ácida, intitulada “Os Abutres”. Nela, disparou contra “os colapsólogos que adoram uma catástrofe”. Além de Morin, colocou nesse grupo Nicolas Hulot, ecologista e ex-ministro do Meio Ambiente de Emmanuel Macron, “que a todo custo quer associar a pandemia ao ‘ultimatum’ da natureza, o que é risível e sem base científica”. Ferry prevê que pouca coisa mudará quando a crise sanitária estiver sob controle. Aposta que o crescimento liberal mundializado voltará com tudo, seguindo direção clara: “business as usual”.
São visões contrastadas, em boa parte antagônicas, por entre as quais vagam negacionistas, combate ao vírus com medicamentos exóticos (de vermífugos a produtos de limpeza), contaminação “de rebanho” como estratégia de imunização (sem levar em conta o número de mortes que isso implicaria hoje) - e por aí segue o debate em torno de uma pandemia jamais vista pela humanidade, que em semanas se espalhou nos dois hemisférios, colocando em isolamento social mais da metade da população planetária. E mais: uma pandemia que expôs a fragilidade dos sistemas de saúde, fora os sinais de recessão econômica global, de consequências e duração imprevisíveis. Afinal, sairemos disso da mesma forma como entramos? Voltaremos à “normalidade”? Que lições vamos de tirar da covid-19?
Possivelmente, inúmeras e diversas - o problema é que nem sempre lições são assimiladas. Segundo epidemiologistas, os EUA, ainda a maior potência mundial do planeta, tinham todas as condições para enfrentar a pandemia da covid-19 de forma antecipada e organizada. Em 2015, estava claro para o governo americano o tipo de ameaça global que representou o vírus ebola, cujo primeiro surto importante ocorrera um ano antes, em países da África. Ainda na administração Obama, realizou-se detalhado estudo sobre essa transmissão viral, bem como a gravidade da infecção e sua letalidade, dando origem a um relatório de 73 páginas e 21 recomendações, herdado pela administração Trump.
Sob a Presidência republicana, o Departamento de Saúde realizou simulações em 2019 face a possível situação pandêmica, com base no relatório dos democratas. No entanto, os resultados dos experimentos sequer foram divulgados, conforme denunciou “The New York Times” recentemente. Talvez lições não aprendidas levaram o presidente americano a reagir com ceticismo ao novo coronavírus. Trump achou que era um problema restrito, passageiro, e demorou três semanas para acionar o alarme. Vale lembrar: o primeiro caso em território americano pipocou em Chicago, 47 dias antes de a Organização Mundial da Saúde decretar a pandemia, em 11 de março. Só que, no momento do anúncio, a projeção era a de que muitos milhares de americanos seriam infectados. E o ceticismo de Trump só fez piorar as estimativas.
Outro exemplo de que lições podem passar batidas ocorreu na França, visivelmente despreparada para a covid-19. Onze anos depois de ter alertado o país sobre os riscos de contágio em massa pelo vírus H1N1, Roselyne Bachelot, ex-ministra da Saúde no governo do primeiro-ministro François Fillon, viu-se redimida nas últimas semanas. “Virei atualidade”, ironizou, publicamente. “As emoções agora estão muito fortes, mas foi com serenidade e antecipação que consegui ter vacinas para imunizar mais de 6 milhões de pessoas em meu país, em 2009. Além disso, reforcei o sistema de saúde, encomendei a fabricantes locais grandes quantidades de luvas e máscaras. Fui objeto de gozação, ataques insuportáveis, injustiças.” Com os sucessivos cortes nas verbas de saúde nos últimos anos, de repente a França de Macron viu que máscaras, só as chinesas. E dependendo da disponibilidade do fornecedor.
É provável que muitas lições da pandemia atual nem possam ser identificadas ainda, uma vez que o vírus, de alta complexidade, continua a desafiar a comunidade científica, assim como as sociedades e seus governantes. Infectados de hoje serão os imunizados de amanhã? Haverá ondas sucessivas de transmissão? O quão mutante é o Sars-CoV-2, esse vírus de proximidade com altíssimo poder de contágio e sintomatologia grave? Enquanto universidades, centros de pesquisa e laboratórios farmacêuticos se lançam na louca corrida para encontrar saídas - tratamentos eficazes e, sobretudo, uma vacina imunizadora -, a sensação de vulnerabilidade social continuará a crescer num mundo com barreiras sanitárias e economias em frangalhos.
Entre as fontes ouvidas pelo Valor, dentro e fora do Brasil, sobre os contornos possíveis do amanhã, parece haver consenso de que, embora a pandemia tenha mandado todo mundo para casa, independentemente de idade, raça, sexo, instrução, religião, profissão, poder econômico ou visão política, é certo que a desigualdade no planeta agora ficou escancarada. No entanto, quando a emergência sanitária se impôs, novamente sistemas de privilégios foram acionados, sendo incapazes de deter a velocidade do contágio, por um lado, e cavando ainda mais o fosso entre ricos e pobres, por outro.
Essa é a visão do cientista franco-colombiano Carlos Moreno, especialista em inovação e controle de sistemas complexos, professor da Sorbonne e o principal consultor da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, em planejamento urbano. Em meados de janeiro, ele já estava desenhando um plano de emergência ao lado da prefeita, que logo compreendeu a dimensão do problema. Era preciso fechar Paris o mais rápido possível, assumindo que a covid-19 abriria uma crise urbana sistêmica, de natureza sanitária, afetando todos os setores.
“Logo Anne cancelou os festejos pelo ano-novo chinês, fechou estabelecimentos comerciais, pontos turísticos, enfim, mandou as pessoas para casa e ainda enviou uma carta com dez pontos para Macron, alertando-o sobre a gravidade do que viria. Naquele momento, o presidente ainda falava que máscaras não serviriam para nada.”
O problema, segundo Moreno, é que, com o passar das semanas, ficou evidente que o confinamento, obrigatório e extensivo a todos, era diferente para uns e outros. “Logo começamos a ver uma sobremortalidade nos bairros mais populares de Paris, atingindo pessoas que precisam sair de casa para trabalhar e ganhar a vida, portanto, que se expõem mais. São os mais pobres, os imigrantes, os entregadores, os subempregados”, enumera o cientista, agregando que metrópoles confinadas cobram ainda mais a presença dos que não podem parar.
“Esse fenômeno se repete em muitas cidades pelo mundo, porque elas estão organizadas assim. Eu mesmo entro em pânico quando ouço as barbaridades ditas pelo presidente brasileiro”, afirma. “Me vêm à memória as favelas que conheço no Rio, os espaços pequenos onde vivem famílias numerosas, gente trabalhadora... esse senhor só pode ser um suicida ao ignorar essa realidade e estimular o fim do confinamento.”
A organização social e territorial das cidades é tema que entrou em pauta na travessia da covid-19. Nos últimos anos, muito se falou sobre as “smart cities”, cidades inteligentes operadas por grandes sistemas de dados - Big Data - e inteligência artificial. Quando a ordem passou a ser “fique em casa”, “lave as mãos com água e sabão”, “use água sanitária na faxina”, “poupe o álcool em gel porque vai faltar”, “improvise máscaras com retalhos de pano ou filtros de coar café”, toda aquela sofisticação tecnológica precisou dar passagem a conselhos rudimentares, caseiros, para o enfrentamento da crise - ainda que tenha sido justamente o mundo on-line que impediu o planeta de sucumbir no isolamento completo. Hoje a conversa entre urbanistas mudou: mais do que inteligentes, é tempo de pensar em cidades resilientes para todas as pessoas. “Human living cities” é o conceito da vez.
Uma urbanista brasileira já vinha alertando a comunidade internacional sobre as fragilidades do modelo de cidade construído pelas democracias ocidentais no século XX, segundo a visão capitalista. “Estava claro que, com o crescimento da desigualdade, as cidades teriam que pensar em espaços de acolhimento, moradia digna, proteção social e biossegurança. Mas não foi feito. Por exemplo, saímos da crise financeira de 2008/2009 preocupados em salvar bancos, e não em cuidar das pessoas”, compara Raquel Rolnik, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, diretora de planejamento urbano da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-1992) e relatora especial da ONU para Direito à Moradia de 2008 a 2014.
“Agora a pandemia colocou tudo isso a nu. Revelou ao mundo como uma potência como os EUA insistem em manter um sistema de saúde tão ruim e precário. Ou, pensando no Brasil, mostrou como há pessoas em São Paulo vivendo sem água encanada, ainda que a companhia de saneamento básico da metrópole, a Sabesp, seja uma das maiores do mundo, com ações listadas na Bolsa de Nova York.”
Carlos Moreno lança outras perguntas: afinal, como viver num mundo onde pessoas têm respirador reservado em hospital privado, ou máscaras e luvas para quando deixarem o confinamento domiciliar protegido, enquanto em cidades como Guaiaquil, capital do Equador, os corpos das vítimas da doença são empilhados para enterro em caixas de papelão e valas comuns? Imagens que vêm de cidades brasileiras não têm menos impacto. Conforme Moreno, dá para projetar um mundo mais resiliente mantendo situações tão discrepantes? Ele próprio arrisca uma resposta: “O século XX foi das nações. O século XXI é o das cidades. Elas precisam ser repensadas e, nisso, o papel dos prefeitos cresce. São os governantes mais próximos das pessoas, enxergam as demandas e têm capacidade de responder de forma mais rápida e eficaz”.
Raquel aponta uma alternativa: segundo ela, modelos centralizados de gestão administrativa, implantados de cima para baixo, não são capazes de responder aos desafios atuais das cidades, inclusive novas crises virais que poderão vir a acontecer, como preveem epidemiologistas.
“Tenho visto exemplos de autogestão surpreendentes nas últimas semanas, verdadeiras lições para o poder público”, comenta a urbanista. “No momento zero da pandemia, moradores de comunidades como Heliópolis, em São Paulo, ou da Favela da Maré, no Rio, já saíram tomando providências - quem precisa de comida, quem precisa de sabão, quem não tem cama, quem vai ficar isolado? A mesma coisa aconteceu em ocupações de moradia do MTST, com impressionante capacidade de organização. Ou na distribuição de alimentos feita pelo MST. Essas coisas precisam ser vistas e reconhecidas! Não é à toa que hoje essas organizações estão trabalhando em parceria com as prefeituras. É a cidade funcionando de baixo para cima.”
Bill Gates, que está investindo bilhões de dólares na pesquisa e no desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus, por meio de sua fundação filantrópica, trata o tema da desigualdade com abordagem aparentemente simplória, que faz pensar: “Diante de uma doença tão grave como esta, descobrimos que estamos todos no mesmo barco”. A afirmação pode até causar desconfiança partindo de um dos homens mais ricos do planeta, fundador do império Microsoft, mas pode servir como elemento de reflexão sobre um materialismo fora dos limites que, numa situação como a de hoje, além de inútil, perde o sentido.
Moreno comenta com o Valor a primeira coisa que fizeram os chineses de Wuhan quando o isolamento social foi suspenso: formaram filas para comprar artigos de luxo nas lojas Hermés e Louis Vuitton mais próximas. “Saíram do confinamento para comprar bolsas e sapatos!”, diz.
Raquel destaca que há um modelo asiático de megacidade, não só na China, mas em Cingapura ou Taiwan - panóptico, militarizado, calcado na vigilância social por meios digitais - que pode ter feito enorme diferença no combate ao vírus ao propiciar uma resposta social mais organizada. Porém, lembra a urbanista, trata-se de um modelo autoritário, ainda que aberto a tentações (permitidas) do consumismo. Aliás, os asiáticos não são apenas os grandes compradores das grifes de luxo, em seus países ou fora deles, como representam também a faixa mais rentável do turismo internacional - outro campo cercado de interrogações sobre o amanhã.
É consenso na comunidade científica que o vírus se deslocou de um primeiro continente para os outros por meio das pessoas que viajam, o que põe em xeque como se dará, no pós-covid 19, a mobilidade humana pelo planeta.
É um imenso problema: segundo o World Travel and Tourism Council - WTTC (Conselho Mundial de Viagens e Turismo), a atual pandemia poderá colocar em risco 50 milhões de empregos associados ao setor, pelo mundo afora. Não há previsão segura de retomada antes de um ano. Note-se que essa indústria, até semanas atrás, respondia por 10% do PIB global. Números vindos da International Air Transport Association (Iata) também preocupam: as receitas globais da aviação caíram 20% e, na região Ásia-Pacífico, 25%. Ainda não foram reprogramados prazos para a retomada do setor, num possível cenário de falências em série.
Essas companhias lutam contra um inimigo imponderável: o medo das pessoas. Mesmo se adaptando a novos padrões internacionais de vigilância sanitária, restará o receio de se deslocar em ambientes confinados, climatizados artificialmente, sejam aviões, trens ou navios.
Recorrendo a exemplos: assim como ficarão na memória imagens de cidades-fantasmas, em “lockdown”, por muito tempo também serão lembradas as imagens de passageiros acenando do transatlântico Diamond Press, ancorado perto do porto de Yokohama, na baía de Tóquio, com 3,7 mil pessoas a bordo - entre elas, centenas de infectados pelo novo coronavírus. Ou do Grand Princess, outro navio saído dos estaleiros de Fincatieri, na Itália, estacionado na costa de San Francisco, nos Estados Unidos, esperando o desembarque de passageiros adoecidos, que seguiram direto para quarentena em bases militares americanas.
“Não é de hoje que se sabe que esses navios representam alto risco para a saúde. São monstrengos que podem levar 5 mil pessoas a bordo, centenas trabalhando e vivendo como escravas nos andares inferiores. Fazem escalas de 4 a 6 horas em cidades como Barcelona, Dubrovnik ou Salvador, despejando em terra multidões ávidas por um turismo predatório, que não agrega valor ao local. E por que esses navios viviam lotados? Por vender para as massas o sonho do cruzeiro marítimo, a preços módicos. Esses navios confinam e descarregam gente o tempo todo, operam em péssimas condições de higiene, sem falar na enorme poluição provocada por suas caldeiras, exalando fumaça cancerígena. O que pode haver de pior?” O relato é do jornalista Fábio Steinberg, há 20 anos escrevendo sobre o setor de turismo. Criou também o blog Turismo Sem Censura.
Na sua avaliação, os meganavios já deveriam estar com os dias contados, mas, como muitas dessas empresas primam pela falta de transparência, “elas agirão como circo. Se não tem como fazer espetáculo, recolherão a lona e esperarão a crise passar”. A preocupação maior de Steinberg é com a rede hoteleira.
“Este é o setor que vai sofrer mais. Hotéis têm estruturas, custos fixos altos, pessoal a pagar. Hoje, no setor de viagem e turismo em escala global, 70% das receitas vêm da área de ‘business’, ou seja, viagens de negócios, e só 30% do lazer. Se as empresas percebem que muito do seu trabalho pode ser feito de forma remota, de pequenas reuniões a convenções com milhares de funcionários, imagine o impacto econômico disso para os hotéis? Imagine as perdas para a rede hoteleira de metrópoles como São Paulo ou Las Vegas, que há muito tempo não vive dos cassinos, mas dos megaeventos corporativos? ”
Steinberg admite que os encontros cara a cara desse mundo possam ser mantidos ao menos em parte nos tempos que virão, garantindo um certo glamour ao mundo dos negócios, algo que implica conversas, coquetéis, jantares, espetáculos, brindes etc. Porém, a proximidade humana continuará sendo uma difícil equação para diferentes setores - alguns mais essenciais do que outros, como nos exemplos a seguir.
No fim de fevereiro, com os casos de contaminação assustando a Itália, uma escola-modelo da afluente região da Lombardia, a International School of Monza, quis mostrar como foi acertado investir em educação por meio da tecnologia (“e-tech”): em 24 horas, transformou-se de escola física em escola virtual de alto padrão, com professores já capacitados para operar on-line e de forma integrada com alunos com ótimo acesso a internet e um MacBook.
Com a pandemia se espalhando pelo globo terrestre e 1,5 bilhão de estudantes fora da escola, Andreas Schleicher, diretor-geral do Departamento de Educação e Competências da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), afirma: “É um grande momento para a educação. Buscamos soluções criativas, e os alunos poderão ser proprietários do seu aprendizado. Mudanças acontecerão a partir desta crise”.
A desigualdade desafia o otimismo. Schleicher não pode deixar de levar em conta que 95% das crianças e jovens noruegueses têm acesso a computador e internet de qualidade, contra 35% na Indonésia. No Brasil, verifica-se a possibilidade de ampliação e melhoria do ensino remoto, uma vez que 86% dos jovens e adolescentes estão de alguma forma conectados à web.
“No isolamento social, o Brasil vem fazendo o mesmo que outros países, ou seja, combinando estratégias - aulas on-line e teleaulas usando redes como a TV Justiça, além de cadernos de atividades enviados para as casas. Fico emocionada com o que se tem conseguido fazer de uma hora para outra em muitos Estados e municípios brasileiros, sem colaboração do MEC, o que é muito grave”, diz Claudia Costin, ex-ministra da Administração e Reforma do Estado no governo FHC (1995-2002) e hoje diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV.
De seu confinamento, Claudia orienta escolas públicas em 50 municípios de diferentes Estados. Participa de um esforço concentrado para que milhares de crianças brasileiras continuem a estudar em lares já abalados pela crise sanitária e seu impacto econômico. “Essas crianças estão afetadas emocionalmente, assim como os pais, mas temos que agir de alguma forma. Hoje são muitas ideias criativas colocadas sobre a mesa, como, por exemplo, reforçar as relações familiares nesta fase dura. Propomos que pais e filhos separem um tempo para, juntos, rever álbuns de família ou fotografias esparsas - não importa. Que troquem histórias sobre parentes vivos ou que já se foram. Que compartilhem lembranças familiares. E assim as crianças vão trabalhando a construção da própria identidade.”
“Não podemos deixar de aproveitar esse tempo”, diz Claudia, reconhecendo que a escola de hoje, seja pública ou privada, terá de se preparar para a Quarta Revolução Industrial e o futuro do trabalho, com a inteligência virtual substituindo a presença humana em muitos campos. Uma escola que prepare o indivíduo para competências sofisticadas, como a empatia, a persistência, o empreendedorismo - atributos que faltam aos robôs. Mas ainda cabe a pergunta: podem os defensores do “home schooling”, ou ensino domiciliar, uma das bandeiras da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, encherem-se de razão num momento de escolas fechadas?
Para Claudia Costin, haverá essa tentativa. “Temos, no Brasil, 48 milhões de inscritos no ensino básico. É possível imaginar 20 milhões de famílias educando crianças em casa? Os adultos deixarão de trabalhar e buscar o sustento para estudar com os menores? Que fique claro: pais são educadores, não são professores”, afirma, deixando uma recomendação para o pós-covid: a escola física, presencial, não é só o lugar para adquirir conhecimentos e aprender a pensar criticamente. É também o espaço para desenvolver talentos, para aprender a trabalhar em grupo e lidar com as regras do viver em sociedade. Portanto, ela deve continuar a existir, mais do que nunca.
“E como são bem tratadas as crianças aqui... Esta é uma das razões do sucesso chinês”, comenta do outro lado do mundo Francisco Foot Hardman, professor do Departamento de Literatura e do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL). Hardman atravessa os tempos da covid-19 vivendo em Pequim, onde cumpre ano acadêmico como professor de literatura em língua portuguesa na prestigiosa universidade local. Vêm dele as impressões sobre uma metrópole de 21,5 milhões de habitantes, que se organiza para voltar ao normal:
“Aqui, tudo cauteloso. Outro dia, no metrô, pigarreei de leve e o cidadão sentado na poltrona da frente, a 1m de mim, levantou-se. Preferiu ficar de pé, no vagão seguinte, a permanecer ao lado de um passageiro com cara de ocidental, que tosse. Pequim está zerada de novos casos de coronavírus, e as poucas ocorrências recentes são de chineses ou estrangeiros que conseguiram entrar no país. A primavera chegou e continua sendo, depois do outono, a estação mais linda: céu limpo, sol brilhando, temperaturas entre 4°C e 15°C e os parques públicos reabertos: as crianças fazem a festa, todas mascaradinhas. Escolas do ensino médio e fundamental, bem como universidades, fechadas ainda.”
Uma das lições dessa pandemia é a relação entre nível educacional da população e respostas sanitárias, seja para a fase do confinamento, seja para a volta à normalidade da vida. Essa relação se revela na forma como países asiáticos enfrentam a atual pandemia - caso da Coreia do Sul, exemplarmente, e da própria China, ainda que pairem dúvidas sobre os rigores do controle social no grande tigre. “Mas os chineses parecem nem estar aí com isso. Eles já se sentem como primeira potência mundial, apostam na multilateralidade e sonham com a paz perene. Espero que, passada a pandemia, possam continuar a alargar a curiosidade que têm pelo Brasil.”
Um dos mais destacados artistas plásticos da sua geração, o pintor paulista Marco Giannotti, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, recorre à experiência que teve como professor visitante da Universidade de Kyoto, no Japão, para arriscar uma explicação para a resposta asiática na pandemia. Ele acha que, além do nível educacional mais elevado da população, mecanismos milenares entraram em ação. É um caminho de análise, uma sinalização para o futuro.
“Só o confucionismo explica por que os mandatários chineses precisam ser recrutados entre os melhores politécnicos do país. Lá, quem dá as ordens e comanda tem de ser o melhor. Ou estar entre os melhores. Já o xintoísmo no Japão garante o profundo apreço pela vida e pela natureza. Isso é evidente na maneira como eles veem uma árvore, uma montanha. No Brasil, estamos nos distanciando cada vez mais das nossas tradições, entre elas o respeito pelo meio ambiente que nos ensinaram os indígenas. Somos desenraizados”.
Questionado sobre o futuro das artes, no tempo em que a proximidade das pessoas significa risco de saúde, Giannotti diz que “cada vez mais somos chamados para ‘tours’ virtuais por exposições, concertos, espetáculos de dança. Cada vez mais meus alunos se relacionam com a criação no plano virtual. Mas eles não podem ter apenas uma visão Wikipédia da arte e do mundo. Precisamos voltar a nos encontrar pelo prazer de partilhar a experiência estética, ainda que com menos recursos, talvez em ambientes menores, como salas e ateliês, mas revalorizando o fazer e o estar juntos”. Seria uma oportunidade para rever a cultura de massas? “Quisera ser otimista a respeito disso. Infelizmente, a cultura de massas, orientada pelos vetores do consumismo e da desinformação, não oferece muitas chances de ruptura. E nem de transição para um modelo em que sociedade civil e espaço público voltem a ter centralidade”, analisa Hardman.
Carlos Moreno pinça um exemplo que pode garantir, se não otimismo, um pouco de esperança. Com o isolamento de Paris por longas semanas, não só as pessoas puderam ocupar as sacadas de seus apartamentos para bater panelas de vez em quando, como para se olhar, talvez, pela primeira vez. “Foi incrível recuperar o gosto pela vizinhança. Sempre tão fechado, o parisiense pôde descobrir que, no apartamento em frente ao seu, há um jovem músico ou uma senhora com seu animal de estimação ou um casal convivendo com crianças alegres. E assim as pessoas, confinadas em casa, começaram a trocar um simples ‘bonjour’, depois, alguma conversa, passaram a se dar conta da existência do outro. Isso é mágico! Ainda que falemos tanto em isolamento, vamos todos pensar mais na nossa proximidade”.
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