A psicologia explica por que, mesmo sabendo que a medida mais recomendável para o combate à pandemia é o isolamento, as pessoas resistem a cumpri-la, escreve Vivian Oswald, de Londres, para a revista Época, matéria publicada nesta sexta, 22/05. Muito interessante a reportagem, continua abaixo.
Enquanto os países buscam meios de retomar a rotina sequestrada pela pandemia, fica cada vez mais claro: a ciência vai determinar a que distância o mundo se encontra do novo normal. A vida não será como antes, como ficou atestado desde o primeiro caso de Covid-19 registrado fora da China. O fim do confinamento não depende da vontade deste ou daquele cidadão, empresário ou político. Especialistas avisam que só haverá paz nesta guerra contra o inimigo invisível quando se chegar a uma vacina. Até lá, independentemente dos pacotes de estímulo financeiro multibilionários para reativar as economias, as nações terão de lidar com um desafio que vai muito além do vírus: a natureza humana.
Por que é tão difícil tomar a decisão certa — de ficar em casa, para os que podem —, mesmo sabendo claramente qual ela é? No Brasil, o nível de isolamento social tem oscilado para menos de 50% em locais considerados epicentros da pandemia, como São Paulo. Há pessoas que, por razões de subsistência ou por terem empregos em serviços essenciais, não estão confinadas. Mas há também uma grande parcela que pode, mas prefere não aderir ao sacrifício, mesmo sabendo que isso é o certo a fazer. Há ainda aquelas que tentam, mas acabam burlando a disciplina mental e cedendo ao ímpeto de sair.
Foi o caso do epidemiologista Neil Ferguson, que conduzia as pesquisas do novo coronavírus do Imperial College, instituição britânica de renome que convenceu o Reino Unido e o mundo a priorizarem o distanciamento social para conter a pandemia. Ele foi surpreendido furando a quarentena ao receber sua amante. Pediu demissão. Semanas antes, a então médica-chefe do governo da Escócia, Catherine Calderwood, que repetia diariamente na televisão a necessidade de os escoceses ficarem em casa, renunciara. Ela aparecera em fotos, nas primeiras páginas de jornais locais, nas proximidades de Edimburgo, em sua casa de campo, onde passara dois fins de semana consecutivos com o marido. Não se pode viajar de carro sem um bom motivo dentro da Escócia até segunda ordem.
Criticado desde que a pandemia chegou ao Reino Unido pela demora de instituir o isolamento, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, defendeu a hipótese de que a psicologia indicava que prender as pessoas em casa antes da hora causaria uma “fadiga comportamental”. Ou seja, quanto mais tempo de confinamento, mais difícil convencer as pessoas a ficar onde estão. Ele pode até ter razão sobre a “fadiga”. Mas essa hipótese não se aplicava ao Reino Unido, que via as mortes escalar desde março e hoje é o segundo país com mais vítimas da Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos.
Governos pelo mundo têm usado cada vez mais a ciência comportamental para guiar a comunicação com o público. Não é à toa que desde 2009 o Reino Unido investiu nesse segmento para tomar decisões de governo. Ainda na era do ex-primeiro-ministro David Cameron foi criado um núcleo chamado “nudge”. Em português, a palavra significa “empurrão”. É referência à teoria econômica comportamental que se popularizou pelo livro Nudge (com mais de 1,5 milhão de cópias vendidas), de Richard Thaler, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, e Cass Sunstein, publicado em 2008. A premissa do livro se baseia em mecanismos que ajudam as pessoas a tomarem as melhores decisões para si próprias a partir de pequenos estímulos que chamam sua atenção e mudam seu comportamento. Na avaliação dos governos que fazem uso da teoria, ao compreender como as pessoas pensam, torna-se possível estabelecer uma “arquitetura da escolha”, que facilita o reconhecimento das melhores opções para o indivíduo e para a sociedade.
O departamento tinha por objetivo influenciar os britânicos a tomar as decisões corretas, como não atrasar o pagamento de impostos ou pagar suas multas, só pelo envio de um SMS, por exemplo. A unidade acabou virando uma pequena empresa público-privada e agora é uma entidade social, que opera também em outros países. Foi com o apoio dessa ciência que o governo conservador britânico, no poder há uma década, conduziu uma intensa política de austeridade sem perder o apoio da população.
A especialista em psicologia experimental Magda Osman, da Queen Mary University of London, se debruça há anos sobre processos decisórios, aprendizado, solução de problemas, risco e incertezas. Segundo ela, o que impacta o nível de observância do indivíduo é o julgamento que ele faz da severidade da ameaça a que está submetido e sua suscetibilidade a essa ameaça. E é justamente a calibragem dessas percepções que vai determinar seu grau de engajamento. Isso quer dizer que, com o tempo, e com todas as distorções observadas nos dados da pandemia, muita gente pode achar que não está tão suscetível por não pertencer ao grupo de risco mais evidente, por exemplo. “Começo a ver que estou bem e isso passa a influenciar meu comportamento. Vou quebrar as regras porque isso é injusto comigo, já que não sou tão suscetível. Somos extremamente sensíveis a injustiças”, afirmou Osman.
Isso quer dizer que a resposta inicial da população é mais rápida — porém, tem um tempo de duração curto. “É preciso menos para convencer as pessoas no começo. Vê-se pela quantidade de gente que se trancou em casa, antes mesmo das quarentenas. Para garantir o sucesso da estratégia, governos vão ter de emitir mensagens coerentes, mas pensando nos diferentes grupos com os quais têm de lidar e em diferentes momentos”, afirmou Ulrike Hahn, da Birkbeck, University of London.
Além do tempo útil limitado de medidas que restrinjam completamente a liberdade, há aqueles que se sentem intocáveis em razão de um falso sentimento de proteção. Osman cita o exemplo do uso de máscaras, que sugere certa imunidade que ainda não existe. “As pessoas se arriscam mais quando se acham protegidas. Máscaras dão a falsa licença para correr mais riscos”, observou. Ela citou ainda o exemplo dos indivíduos quem têm incentivos vitais para furar a quarentena, como dificuldades econômicas. “‘Estou desempregado, valorizo outras coisas em minha vida e não estou no grupo de risco. Então, vou fazer tudo que eu bem entender’. Você começa a pôr na balança seus valores, sua suscetibilidade e a severidade da pandemia”, disse. A necessidade primordial da subsistência, que, em última instância, é também um risco à vida, acaba dando a esse indivíduo a percepção de que a pandemia é um mal menor. Por isso, internamente, ele pode vir a concluir que o risco de ser afetado pela doença é menor que o risco de estar sujeito a outros problemas financeiros.
O exemplo visto nas ruas, nesse aspecto, pode ter impacto relevante na escolha de um indivíduo pelo que é certo. “É mais eficaz mostrar a imagem de ruas vazias do que um grupo de pessoas desrespeitando a quarentena e caminhando na praia”, disse Osman. “A gente regula o comportamento um dos outros pelo que vemos as pessoas fazerem. Insistir na minoria que está furando é incentivar quem está cumprindo a furar também”, explicou.
O fundamental, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, é que a mensagem transmitida pelos governos para que os cidadãos se sintam estimulados a cumprir medidas de restrição seja direta, coordenada, clara e coerente. Não à toa, chefes de Estado que engajaram a população em suas diretrizes estão com a popularidade em alta. E isso se aplica até mesmo a Boris Johnson, adepto tardio do isolamento, que depois conseguiu equilibrar o discurso. A mensagem inicial do premiê era confusa. Na véspera de o governo determinar o fechamento do comércio e de escolas, bares e pubs pelo país estavam cheios como se a vida estivesse normal. No entanto, a partir do momento em que o discurso de distanciamento ficou claro, a população entendeu e respeitou. O primeiro-ministro pediu que a comunidade se unisse por uma causa comum e que os indivíduos se afastassem. O mantra tantas vezes repetido pela equipe de Johnson “Stay home, save lives, protect the NHS” (“Fique em casa, salve vidas e proteja o sistema de saúde público”) foi municiado por números e recomendações de cientistas. Mesmo durante o período de quase um mês em que Johnson esteve afastado do cargo, enquanto lutava contra a Covid-19, a orientação vinda do governo foi cumprida.
Uma pesquisa realizada pela London School of Economics (LSE) em dez cidades britânicas confirma que a mensagem clara manteve as pessoas em casa em percentuais elevados, acima de 85% em alguns casos. Mais de 86% dos entrevistados garantiram não ter tido qualquer contato com quem não era de casa. Países como Portugal, Grécia e Nova Zelândia, que mais rápido declararam quarentena e engajaram a população, são os que, até agora, apresentaram os melhores resultados. A Eslovênia, primeiro país europeu a se declarar livre da Covid-19, deu início ao lockdown no dia 12 de março, oito dias depois de registrar o primeiro caso de contágio. No Brasil, ainda que o governo de Jair Bolsonaro tenha tido mais tempo que os europeus para pensar em uma estratégia coordenada, a falta de ação e o conflito com governos estaduais agiu para atenuar o discurso único de isolamento, reduzindo o engajamento da população. Como resultado, no Brasil, há quase 20 mil mortos em pouco mais de dois meses de pandemia.
Enquanto os países buscam meios de retomar a rotina sequestrada pela pandemia, fica cada vez mais claro: a ciência vai determinar a que distância o mundo se encontra do novo normal. A vida não será como antes, como ficou atestado desde o primeiro caso de Covid-19 registrado fora da China. O fim do confinamento não depende da vontade deste ou daquele cidadão, empresário ou político. Especialistas avisam que só haverá paz nesta guerra contra o inimigo invisível quando se chegar a uma vacina. Até lá, independentemente dos pacotes de estímulo financeiro multibilionários para reativar as economias, as nações terão de lidar com um desafio que vai muito além do vírus: a natureza humana.
Por que é tão difícil tomar a decisão certa — de ficar em casa, para os que podem —, mesmo sabendo claramente qual ela é? No Brasil, o nível de isolamento social tem oscilado para menos de 50% em locais considerados epicentros da pandemia, como São Paulo. Há pessoas que, por razões de subsistência ou por terem empregos em serviços essenciais, não estão confinadas. Mas há também uma grande parcela que pode, mas prefere não aderir ao sacrifício, mesmo sabendo que isso é o certo a fazer. Há ainda aquelas que tentam, mas acabam burlando a disciplina mental e cedendo ao ímpeto de sair.
Foi o caso do epidemiologista Neil Ferguson, que conduzia as pesquisas do novo coronavírus do Imperial College, instituição britânica de renome que convenceu o Reino Unido e o mundo a priorizarem o distanciamento social para conter a pandemia. Ele foi surpreendido furando a quarentena ao receber sua amante. Pediu demissão. Semanas antes, a então médica-chefe do governo da Escócia, Catherine Calderwood, que repetia diariamente na televisão a necessidade de os escoceses ficarem em casa, renunciara. Ela aparecera em fotos, nas primeiras páginas de jornais locais, nas proximidades de Edimburgo, em sua casa de campo, onde passara dois fins de semana consecutivos com o marido. Não se pode viajar de carro sem um bom motivo dentro da Escócia até segunda ordem.
Criticado desde que a pandemia chegou ao Reino Unido pela demora de instituir o isolamento, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, defendeu a hipótese de que a psicologia indicava que prender as pessoas em casa antes da hora causaria uma “fadiga comportamental”. Ou seja, quanto mais tempo de confinamento, mais difícil convencer as pessoas a ficar onde estão. Ele pode até ter razão sobre a “fadiga”. Mas essa hipótese não se aplicava ao Reino Unido, que via as mortes escalar desde março e hoje é o segundo país com mais vítimas da Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos.
Governos pelo mundo têm usado cada vez mais a ciência comportamental para guiar a comunicação com o público. Não é à toa que desde 2009 o Reino Unido investiu nesse segmento para tomar decisões de governo. Ainda na era do ex-primeiro-ministro David Cameron foi criado um núcleo chamado “nudge”. Em português, a palavra significa “empurrão”. É referência à teoria econômica comportamental que se popularizou pelo livro Nudge (com mais de 1,5 milhão de cópias vendidas), de Richard Thaler, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, e Cass Sunstein, publicado em 2008. A premissa do livro se baseia em mecanismos que ajudam as pessoas a tomarem as melhores decisões para si próprias a partir de pequenos estímulos que chamam sua atenção e mudam seu comportamento. Na avaliação dos governos que fazem uso da teoria, ao compreender como as pessoas pensam, torna-se possível estabelecer uma “arquitetura da escolha”, que facilita o reconhecimento das melhores opções para o indivíduo e para a sociedade.
O departamento tinha por objetivo influenciar os britânicos a tomar as decisões corretas, como não atrasar o pagamento de impostos ou pagar suas multas, só pelo envio de um SMS, por exemplo. A unidade acabou virando uma pequena empresa público-privada e agora é uma entidade social, que opera também em outros países. Foi com o apoio dessa ciência que o governo conservador britânico, no poder há uma década, conduziu uma intensa política de austeridade sem perder o apoio da população.
A especialista em psicologia experimental Magda Osman, da Queen Mary University of London, se debruça há anos sobre processos decisórios, aprendizado, solução de problemas, risco e incertezas. Segundo ela, o que impacta o nível de observância do indivíduo é o julgamento que ele faz da severidade da ameaça a que está submetido e sua suscetibilidade a essa ameaça. E é justamente a calibragem dessas percepções que vai determinar seu grau de engajamento. Isso quer dizer que, com o tempo, e com todas as distorções observadas nos dados da pandemia, muita gente pode achar que não está tão suscetível por não pertencer ao grupo de risco mais evidente, por exemplo. “Começo a ver que estou bem e isso passa a influenciar meu comportamento. Vou quebrar as regras porque isso é injusto comigo, já que não sou tão suscetível. Somos extremamente sensíveis a injustiças”, afirmou Osman.
Isso quer dizer que a resposta inicial da população é mais rápida — porém, tem um tempo de duração curto. “É preciso menos para convencer as pessoas no começo. Vê-se pela quantidade de gente que se trancou em casa, antes mesmo das quarentenas. Para garantir o sucesso da estratégia, governos vão ter de emitir mensagens coerentes, mas pensando nos diferentes grupos com os quais têm de lidar e em diferentes momentos”, afirmou Ulrike Hahn, da Birkbeck, University of London.
Além do tempo útil limitado de medidas que restrinjam completamente a liberdade, há aqueles que se sentem intocáveis em razão de um falso sentimento de proteção. Osman cita o exemplo do uso de máscaras, que sugere certa imunidade que ainda não existe. “As pessoas se arriscam mais quando se acham protegidas. Máscaras dão a falsa licença para correr mais riscos”, observou. Ela citou ainda o exemplo dos indivíduos quem têm incentivos vitais para furar a quarentena, como dificuldades econômicas. “‘Estou desempregado, valorizo outras coisas em minha vida e não estou no grupo de risco. Então, vou fazer tudo que eu bem entender’. Você começa a pôr na balança seus valores, sua suscetibilidade e a severidade da pandemia”, disse. A necessidade primordial da subsistência, que, em última instância, é também um risco à vida, acaba dando a esse indivíduo a percepção de que a pandemia é um mal menor. Por isso, internamente, ele pode vir a concluir que o risco de ser afetado pela doença é menor que o risco de estar sujeito a outros problemas financeiros.
O exemplo visto nas ruas, nesse aspecto, pode ter impacto relevante na escolha de um indivíduo pelo que é certo. “É mais eficaz mostrar a imagem de ruas vazias do que um grupo de pessoas desrespeitando a quarentena e caminhando na praia”, disse Osman. “A gente regula o comportamento um dos outros pelo que vemos as pessoas fazerem. Insistir na minoria que está furando é incentivar quem está cumprindo a furar também”, explicou.
O fundamental, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, é que a mensagem transmitida pelos governos para que os cidadãos se sintam estimulados a cumprir medidas de restrição seja direta, coordenada, clara e coerente. Não à toa, chefes de Estado que engajaram a população em suas diretrizes estão com a popularidade em alta. E isso se aplica até mesmo a Boris Johnson, adepto tardio do isolamento, que depois conseguiu equilibrar o discurso. A mensagem inicial do premiê era confusa. Na véspera de o governo determinar o fechamento do comércio e de escolas, bares e pubs pelo país estavam cheios como se a vida estivesse normal. No entanto, a partir do momento em que o discurso de distanciamento ficou claro, a população entendeu e respeitou. O primeiro-ministro pediu que a comunidade se unisse por uma causa comum e que os indivíduos se afastassem. O mantra tantas vezes repetido pela equipe de Johnson “Stay home, save lives, protect the NHS” (“Fique em casa, salve vidas e proteja o sistema de saúde público”) foi municiado por números e recomendações de cientistas. Mesmo durante o período de quase um mês em que Johnson esteve afastado do cargo, enquanto lutava contra a Covid-19, a orientação vinda do governo foi cumprida.
Uma pesquisa realizada pela London School of Economics (LSE) em dez cidades britânicas confirma que a mensagem clara manteve as pessoas em casa em percentuais elevados, acima de 85% em alguns casos. Mais de 86% dos entrevistados garantiram não ter tido qualquer contato com quem não era de casa. Países como Portugal, Grécia e Nova Zelândia, que mais rápido declararam quarentena e engajaram a população, são os que, até agora, apresentaram os melhores resultados. A Eslovênia, primeiro país europeu a se declarar livre da Covid-19, deu início ao lockdown no dia 12 de março, oito dias depois de registrar o primeiro caso de contágio. No Brasil, ainda que o governo de Jair Bolsonaro tenha tido mais tempo que os europeus para pensar em uma estratégia coordenada, a falta de ação e o conflito com governos estaduais agiu para atenuar o discurso único de isolamento, reduzindo o engajamento da população. Como resultado, no Brasil, há quase 20 mil mortos em pouco mais de dois meses de pandemia.
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