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Época: a quarentena atroz vivida por mulheres vítimas de violência doméstica

Elas relatam a ÉPOCA as aflições e o medo ao se ver confinadas com seus agressores, num período de escalada desse tipo de ocorrência criminosa, escreve Natália Portinari em ótima reportagem publicada na edição desta semana da revista Época. Vale a leitura.

Professora da rede estadual, Márcia Santos tem dois filhos — um deles é um bebê — e mora na Região Metropolitana do Recife. Em janeiro, viu as agressões verbais costumeiras do marido culminarem em violência física. Ele teve um rompante quando, depois de beber, viu uma troca de mensagens dela com um motorista de van, combinando de buscá-la em casa. Deu tapas, socos, apertou seu pescoço, puxou seu cabelo, a empurrou e quebrou seu celular. Ela conseguiu fugir de casa e ir à delegacia. Era um sábado à noite, e o escrivão se recusou a atendê-la. Márcia teve de voltar para casa junto com o agressor, que a havia seguido. Dias depois, finalmente foi atendida pela polícia. Já sem marcas no corpo, o delegado considerou que não havia provas e não pediu uma medida protetiva. Em suma, ela não conseguiu afastar o marido de casa, numa agonia prolongada pelo "home office" decorrente da pandemia.
O marido de Márcia também é professor. Gestor de escola, ganha um salário maior que o dela e o apartamento está alugado em seu nome. Ele usa isso como argumento para se manter em casa. Sem uma medida protetiva, ela não tem justificativa legal para expulsá-lo. Com a ajuda de uma amiga, ela achou um novo apartamento e já até pagou a mudança, mas não tem como levar os móveis enquanto ele estiver em casa confinado.
Sem trabalhar, seu marido tem bebido cerveja o dia todo. Para o aniversário de 1 ano de seu bebê, no início de abril, Márcia confeccionou potes de vidro de papinha, com bonequinhos de biscuit e fitas com um tecido especial. No último rompante de raiva, ele destruiu todos os potes, arrancou o celular dela e o espatifou na parede. Foi o terceiro aparelho quebrado. “Preciso esperar um dia que ele saia por um longo tempo de casa, para eu levar o que é meu”, explicou Márcia, que falou com a reportagem durante um breve momento em que ele se ausentou.
No isolamento imposto às famílias durante o combate ao vírus, aumentaram os casos de agressão e de mulheres reféns de abusadores, como é o caso de Márcia. O Ministério Público (MP) de São Paulo relatou elevação no número de medidas protetivas concedidas (29%) e prisões em flagrante (51%) por violência doméstica contra a mulher em março — o flagrante faz com que o homem seja preso imediatamente depois de espancar uma mulher. Se não houver o flagrante, um inquérito é instaurado e só depois do julgamento o agressor começa a cumprir pena.
Ainda segundo o MP, houve também um salto de 9% nas denúncias de violência contra a mulher no Disque 180 na última semana de março. Em geral, porém, menos mulheres têm ido às delegacias, em parte porque estão confinadas com seus agressores, afirmaram as promotoras ouvidas por ÉPOCA. “O isolamento não é a causa da violência doméstica, ele é um agravamento da situação”, disse Carla Araújo, procuradora do Ministério Público do Rio de Janeiro. “Elas estão apanhando em razão de um relacionamento abusivo. Elas estavam sofrendo a violência de outra forma, e o isolamento acaba agravando a tensão.” No Rio de Janeiro, houve um crescimento de 50% no número de casos registrados no plantão judiciário da cidade no primeiro fim de semana de isolamento.
Um dos tipos de medida protetiva de urgência (MPU) é o afastamento do homem do lar, justamente para que mulheres na situação de Márcia possam se desvencilhar do parceiro. É um direito de todas as vítimas de agressões, embora alguns juízes neguem os pedidos quando não há flagrante ou provas anexadas ao boletim de ocorrência. Quando uma medida protetiva é concedida, não importa quem é o dono do imóvel. E quando o casal não mora junto, a medida determina que o homem não possa chegar perto da vítima. O descumprimento desse tipo de determinação é crime desde 2018. O número de medidas impostas a agressores no Brasil aumenta a cada ano. Em 2019, foram 403 mil concedidas, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 20% a mais que no ano anterior.
Em meados de março, a paulista Eliana Toscano recebeu uma ligação que a deixou apreensiva. Seu ex-companheiro, que estava preso por violência doméstica, foi solto da prisão devido à pandemia do coronavírus no país. Como havia uma medida protetiva que o impedia de chegar perto dela, em razão de agressões passadas, o fórum a avisou sobre a soltura. Livre, ele disse estar arrependido e tentou reatar — ela cedeu. Logo, ambos estavam vivendo juntos, na Zona Sul de São Paulo. Em poucos dias, Eliana percebeu o erro. O comportamento agressivo se mantivera, assim como as constantes crises de ciúme.
Mesmo confinada em casa, Eliana não podia fazer nada sozinha. Da ida ao mercado às mensagens de celular. Ela então mandou mensagem a uma amiga: “Chame a polícia e não me responda”. A amiga não entendeu, e mandou uma terceira pessoa ligar para Eliana para saber se estava tudo bem. O namorado fez com que ela atendesse a ligação no viva-voz. “Mudei o tom de voz. Falei ‘está tudo bem’ e desliguei. As pessoas não têm a sensibilidade de saber que o outro está em perigo.”
Depois de 15 dias de ameaças, ofensas e restrições cada vez maiores à comunicação, um dia saíram de casa e pegaram o metrô juntos. Na estação, Eliana disse que precisava usar o banheiro e sugeriu que ele fosse também. Aproveitou a oportunidade para sair correndo. Foi até a rodoviária da Barra Funda e pegou o primeiro ônibus que encontrou para fora da cidade. Naquela noite, dormiu em um hotel em um município do interior. De lá, entrou em contato com amigas que a acolheram. Ainda hoje teme voltar para a própria casa.
Advogada especializada em casos de violência contra a mulher, Marina Ruzzi recomenda que, em estados onde já há a possibilidade de fazer um boletim de ocorrência on-line, a mulher explicite que quer uma medida protetiva. São Paulo liberou essa ferramenta durante a pandemia, enquanto o Rio de Janeiro já dispunha do formulário on-line. “O único crime que a mulher não pode fazer (denúncia) on-line em São Paulo é o de estupro, porque a delegada tem de dar uma guia para ir a um instituto médico-legal fazer exame de corpo de delito”, disse a advogada.
Nem todos os estados contam com esse atendimento, no entanto. Um dos que não abriram essa possibilidade é Pernambuco, onde casos como o de Márcia precisam ainda de denúncia presencial. Além de São Paulo, Rio e Distrito Federal, já contam com boletim on-line Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina.
A analista de sistemas Stefanie Borges contou com o boletim virtual para denunciar uma agressão sofrida em um período de maior convivência com seu namorado, em razão do isolamento. Motorista, ele estava afastado do trabalho. Moravam juntos na casa dela em Paraisópolis, comunidade na Zona Sul de São Paulo. “Eu estava em casa trabalhando, em home office, então tivemos dificuldades”, contou. Stefanie já havia sido agredida algumas vezes por ele.
Quando Stefanie comunicou ao parceiro que queria terminar a relação, ele pegou uma faca e uma tesoura, e ameaçou cortar seu cabelo e retalhar seu rosto. Disse que, assim, ninguém teria mais atração por ela. Depois disso, pegou um frasco de álcool em gel e começou a despejar pela casa e jogar o líquido nela, dizendo que iria atear fogo em tudo. Quando ele ligou a chama do fogão, ela levou a ameaça a sério e pulou pela janela. Caiu de uma altura relativamente alta e se machucou. Foi socorrida por uma vizinha. Estava só com a roupa do corpo.
Da casa de sua mãe, Stefanie fez a notificação pela internet. Por uma semana, o agressor se recusou a sair da casa da vítima e fez novas ameaças por telefone. Depois de um tempo, ele cedeu e foi embora. Ainda assim, Stefanie aguardou o resultado de uma medida protetiva de urgência — já concedida pela Justiça, após cerca de dez dias de espera — para poder voltar para sua própria casa.
No Distrito Federal, houve queda nos boletins de ocorrência e medidas protetivas de casos de violência contra a mulher. A coordenadora do núcleo de gênero do Ministério Público, Mariana Távora, atribui essa queda ao fato de muitas mulheres desconhecerem o formulário on-line. Para intensificar o uso desse mecanismo, os órgãos de combate à violência contra a mulher, promotoria, delegacias e defensoria pública, trabalharam juntos para criar novos canais on-line e divulgá-los. “Neste momento, a gente tem de fornecer atendimentos alternativos. Temos canal de WhatsApp, telefone. Mas há situações em que a gente de fato precisaria fazer audiência”, disse Távora. A promotora frisou, porém, que as delegacias em todo o Brasil continuam abertas. É obrigação da polícia atender vítimas e notificar crimes, apesar da experiência fracassada de Márcia no Recife, quando o escrivão se negou a atendê-la.
Mulheres podem registrar crimes de violência em qualquer delegacia, ainda que muitas sejam erroneamente orientadas a se dirigir somente a delegacias da mulher. O atendimento especializado nesse tipo de órgão é recomendado, mas não é obrigatório. Até porque é escasso. Um levantamento do site Gênero e Número encontrou apenas 21 delegacias especializadas abertas 24 horas por dia em todo o Brasil em fevereiro de 2019. Uma delas, localizada em Capivari, no interior de São Paulo, mandou agentes para prestar socorro à auxiliar de produção S.C., de 38 anos, ameaçada pelo marido, Josias, durante a quarentena.
S. conheceu Josias, um motorista de ambulância de 48 anos, cinco anos atrás. Logo no começo do relacionamento, os dois discutiram, e ele bateu a cabeça dela na parede. Num segundo episódio, deu um tapa forte na boca dela, cortando-lhe o lábio. Como estavam juntos havia pouco tempo, S. achou que ele havia perdido a cabeça porque ficou muito nervoso e resolveu relevar. De lá para cá, sua vida foi permeada de ameaças. “Tudo tinha de ser do jeito dele. Se eu falasse alguma coisa, ele levantava o punho e dizia: ‘Assim eu perco a cabeça’. Com medo, eu ficava quieta.”
O casal morava num sítio, no interior de São Paulo, e ela não podia sair de casa sozinha. S. tinha um carro, mas Josias não a deixava dirigir. A qualquer lugar que fosse, ele a levava e buscava. Em outubro do ano passado, S. resolveu voltar a trabalhar e conseguiu um emprego de auxiliar de produção. O dinheiro que ganhava, porém, era controlado por Josias. Ela não podia comprar roupas novas nem fazer as unhas. Em março, veio a pandemia do coronavírus, e o casal ficou 15 dias em casa, sem trabalhar, o que agravou a tensão. Josias resolveu emprestar o carro dela para que o filho de seu primeiro casamento saísse. Ela reclamou, e ele tentou agredi-la com um pedaço de pau. S. correu para a casa de uma vizinha e chamou a polícia. O policial que atendeu a ocorrência ouviu os dois lados e perguntou a S. se ela teria para onde ir. Ela afirmou que poderia voltar para a casa da mãe. “Aí ele me disse: ‘A senhora não tem filho, trabalha, tem para onde ir. Vai ficar aqui sofrendo por quê?’. Só então percebi que não tinha mesmo por que continuar ali.”
Com Cleide Carvalho



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