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A vida de quem não tem uma casa para ficar

Em meio à campanha “fique em casa”, o psicanalista Jorge Broide trabalha com aqueles que não têm casa, as 25 mil pessoas em situação de rua, escreve Robinson Borges em excelente reportagem publicada no Valor na sexta, 15/5. Vale muito a leitura.
O interesse do psicanalista Jorge Broide pela vida nas ruas surgiu com a leitura de “Capitães de Areia”, romance de Jorge Amado (1912-2001) sobre meninos pobres de Salvador que vivem nas vias públicas, dormem sob a lua, num velho trapiche abandonado, e cometem pequenos delitos para sobreviver. Essas sensibilidades, relações e experiências com contornos trágicos e urgentes foram determinantes para aquele jovem e futuro professor na PUC incorporar à sua atividade em consultório o trabalho com pessoas que vivem à margem das convenções sociais, como os protagonistas da obra amadiana.
Ainda na faculdade, Broide partiu para a escuta de medos, raivas, devaneios e abandonos de crianças, adolescentes e adultos em ruas e prisões, além de fazer um trabalho com operários militantes e vítimas da violência policial dos anos 1970, em plena ditadura civil-militar. Hoje, em meio a uma pandemia em que se recomenda o recolhimento em casa, o psicanalista está preocupado com os que não têm um teto para ficar: as 24.344 pessoas de São Paulo que vivem em situação de rua, segundo pesquisa feita pela Qualitest antes da crise.
Vida e morte estão sempre presentes na dinâmica dessa parcela da população, mas a pandemia de uma doença supercontagiosa tem um potencial para elevar o estigma. “A pessoa vira, também, entre muitas aspas, porta-voz da peste”, afirma.
O que significa atender pessoas que não têm redes de sustentação típicas das classes média e alta e vivem em um outro mundo? Ao deixar o consultório e ir para a rua, Broide teve de construir dispositivos diferentes: não há divã, não há poltrona. Para ele, o que valida a psicanálise é a escuta do sujeito onde quer que ele esteja. Com as pessoas em situação de rua, ela tem de ser territorial, feita por meio de ancoragens, os fios invisíveis que ligam o sujeito à vida. Pode até ser um familiar, mas geralmente são outras pessoas ou mesmo um animal, como ocorre com Baleia, de “Vidas Secas”, em que Graciliano Ramos (1892-1953) revela a relação afetiva e até humanizada entre o cão e quem vive na rua. “É fundamental que a gente entenda essas ancoragens para poder apostar na vida, não na morte”, afirma.
Na entrevista a seguir, o autor de “Psicanálise em Situações Sociais Críticas” fala sobre como a pandemia de covid-19 afeta a sociedade, aborda o seu trabalho nas ruas da cidade e faz propostas para a execução de políticas públicas. “Não é possível ter abordagem eficaz se não houver articulação entre o Estado, que sozinho não consegue fazer; a iniciativa privada; o terceiro setor e a sociedade civil”, afirma.
Valor: A campanha do isolamento pede para ficarmos em casa, mas as pessoas em situação de rua não têm essa opção. O que esses sujeitos têm contado sobre essa experiência?
Jorge Broide: Mesmo com o enorme desamparo em que a população em situação de rua vive, num momento normal ela tem o apoio do comércio, da vida da cidade, dos restaurantes, da circulação de dinheiro pela cidade. Quando temos a pandemia e a quarentena, essa circulação de dinheiro e essa vida que pulsa deixa de existir. Ela vai perdendo os vínculos, ficando somente entre si e as pessoas que fazem algum trabalho com elas. A pessoa vira, também, entre muitas aspas, porta-voz da peste. É colocada como aquela que transmite a doença. Aquilo que a sociedade não quer ver, que é essa exclusão tão brutal.
Valor: É possível comparar o sofrimento dos que têm de ficar em casa com os que não têm uma casa para ficar?
Broide: Tem uma diferença grande na questão social. Ela se expressa pelas redes que sustentam a constituição do psiquismo do sujeito. A pessoa de classe média sofre com a pandemia e com o isolamento, mas tem uma rede social que banca isso, um computador, um telefone, uma possibilidade de contatos, mesmo com o incômodo que isso gera. Quando escutamos os pacientes, isso tem sido um tema recorrente. No caso da população em situação de rua não existe rede social, e isso constitui uma diferença grande.
Valor: O que faz com que as pessoas passem a viver em situação de rua?
Broide: Para alguém ir para rua, passou por sucessivas perdas que se dão na comunidade onde mora, na família, nas relações afetivas e de trabalho. Quando há a última ruptura é porque não tem mais saída. Essas perdas também se dão pela falta de sustentação social. A gente [da classe média] perde, se separa, tem recursos, um banco de amigos. Mas a pessoa numa situação de carência social não tem esses recursos, as perdas têm impacto mais forte. Não é que alguém da classe média não sofra. Sofre, mas a rede social sustenta. Na pobreza não tem essa rede. Em cada ruptura o sujeito se vê diante de um abismo, até o momento em que cai nas ruas. Na rua tem que refazer o que perdeu, vínculos afetivos, a forma de ganhar dinheiro, o amor, os amigos. Tudo no mesmo espaço, o que configura uma situação paradoxal. Falando em termos da psicanálise, vive-se algo semelhante a uma regressão forte.
Valor: Como assim?
Broide: Da mesma forma que um bebê depende da mãe para tudo, quando há a ruptura a pessoa depende da rua para tudo: é daquele lugar que depende para sobreviver, dos amigos, da vida afetiva. A rua engole o sujeito. Tudo o que é importante para ele está depositado naquela situação. Se vai embora da rua, tem mais uma ruptura, vão ficar os afetos, a forma de sobrevivência, os amigos. Vai ficar para trás a rede mínima que conseguiu constituir.
Valor: Freud (1856-1939) fala da fase em que a criança é “sua majestade, o bebê” para os pais, mas considerando as dificuldades de parcela da sociedade que vive na exclusão, como se dá essa dinâmica em que crianças nascem em situações de organização bastante precária, sem condição para que a majestade seja coroada?
Broide: É importante que a mãe possa “ler” o bebê: se está com frio, com calor, com fome. A mãe vai incluindo o bebê num mundo de sensações suportáveis, prazerosas, em que as necessidades dele vão sendo preenchidas. Mas uma mãe vai ter enorme dificuldade com o olhar e a escuta do bebê numa situação de urgência social, com o caos instalado, violência, outros filhos, um companheiro que também está numa situação de emergência.
Valor: O bebê já viverá sua primeira exclusão.
Broide: Como Freud diz em um de seus primeiros textos, o “Projeto de uma Psicologia”, a relação da mãe com o bebê é a fonte primordial de todos os motivos morais. Em alguns casos, a experiência que o bebê tem com o mundo é de desamparo, de dor, de não ser visto. A questão da visibilidade vai se transformar em algo da maior importância, inclusive, na adolescência e na juventude.
Valor: O senhor vê relação dessa invisibilidade com a questão da lei?
Broide: Para você instaurar a lei, precisa ter um mínimo de ordenação do ambiente, dos laços afetivos e sociais. É difícil a função paterna - a lei - poder ordenar na constituição da subjetividade da criança se esse pai está em urgência, se essa mãe está em urgência e essa criança está se sentindo muito abandonada, está se sentindo com muita dor. Fica muito difícil constituir a organização que dá o limite, que dá um recado, que orienta.
Valor: Pesquisas mostram que é comum o abuso no consumo de álcool, a drogadição e explosões de violência na população em situação de rua. Como o senhor vê a questão: é a causa ou um sintoma?
Broide: Vejo mais como sintoma. A rua mói o sujeito. A partir de determinado momento, é difícil alguém viver na rua sem beber, sem se drogar. Possivelmente, se estivéssemos na rua faríamos o mesmo. É a única forma de você se aliviar um pouco e sair desse sentimento de desproteção. Trabalho com isso há mais de 40 anos e estou convencido de que, em termos de políticas públicas, não é possível ter abordagem eficaz se não houver articulação entre o Estado, que sozinho não consegue fazer; a iniciativa privada; o terceiro setor e a sociedade civil.
Valor: Que tipo de ação está indo na direção certa, na sua avaliação?
Broide: A gente pretende fazer um piloto - mas isso só não resolve - com o grupo do Movimento Nacional de População em Situação de Rua em um equipamento no viaduto Pedroso, na avenida Vinte e Três de Maio [zona central de São Paulo]. Vamos construir um espaço onde se possa testar soluções e onde a população em situação de rua possa buscar um projeto de vida e elaborá-lo. Essas pessoas têm enorme dificuldade de pensar sobre a rua e elaborar essa experiência. Como estamos fazendo isso, outras pessoas, também, espero que façam. Mas é necessária uma articulação muito maior, é o momento de haver um trabalho conjunto para o enfrentamento das questões sociais graves do nosso país, que sem isso não será possível avançar.
Valor: Por que as políticas públicas para a questão das pessoas em situação de rua fracassam?
Broide: Vejo dois aspectos. Um é não entender a subjetividade da pessoa e o que está depositado da vida dela na rua. Não é fácil para a pessoa sair de lá, precisa ser feita a elaboração. Tentam tirá-la e constituem outra ruptura, dessa vez até mais radical, porque está tudo depositado no mesmo espaço: a rua. O outro é que ainda estamos numa política “familiarista”. A assistência social e outros lugares de atenção pensam, em primeiro lugar, em mandar o sujeito para a família. Quando mandam, geralmente ocorre a retraumatização. Estão mandando para o lugar de onde saiu traumatizado.
Valor: Por isso vocês trabalham com os conceitos de ancoragem?
Broide: Muitas vezes a gente se pergunta: como essa pessoa está viva? Isso ocorre porque tem os fios invisíveis que amarram essa pessoa viva, o que chamamos de ancoragens. Temos de escutar esses fios, que são o nosso radar, com o que vamos falar. Pode ser ou não da família, mas é fundamental que a gente entenda essas ancoragens para poder apostar na vida, não na morte. Esse conceito pode ser compreendido pelas equipes que trabalham e pelas políticas públicas. Podemos trabalhar, tanto na psicanálise quanto na política social, fazendo a ponte com aquilo que denominamos escuta territorial. Como podemos escutar a pulsação da cidade? Não vou a esmo. Vou falar com aquela pessoa que é importante para o sujeito, que pode amarrá-lo mais à vida. A gente faz a passagem da clínica, do inconsciente, da transferência, conceitos fundamentais da psicanálise, e vai transformando em conceitos que constituem uma ferramenta útil para política pública.
Valor: Que tipo de política pública deve ser implementada?
Broide: Seria interessante pensar em repúblicas, moradias e equipes dedicadas à reelaboração dessas rupturas, na constituição de um projeto de vida, mais ou menos como estamos tentando fazer na avenida Vinte e Três de Maio, só que ali não tem moradia. Isso exige mobilização do Estado, da iniciativa privada. Não são três repúblicas. É um enorme movimento social para poder abordar de verdade essa questão, para que não seja um paliativo.
Valor: Quais devem ser os impactos da pandemia para a sociedade?
Broide: Não há paciente que não fale disso. Essa pandemia nos coloca no desconhecido. Nossa tendência é querer saber o que vai acontecer. O mais difícil é aguentar o não saber, que gera uma angústia grande. Mas é importante manter o não saber. Porque se começamos a inventar coisas, não conseguimos operar na realidade. Temos que aguentar ver o que vem da realidade.
Valor: Por isso o senhor diria que parcela da população opera na negação da pandemia?
Broide: Tem uma negação grande, uma tendência a negar porque se tem muito medo. Muita gente diz: “Como vou viver? Não tem como”. Mas eu volto à questão: o Estado e a sociedade têm que dar rede de proteção social para que as pessoas possam ficar em casa também. Eu posso ficar, você pode ficar, estamos trabalhando remotamente, mas e as pessoas que estão numa situação de carência absoluta? Têm que sair para arrumar dinheiro. Estamos diante, também, de uma convulsão social importantíssima, a gente tem que pensar nisso. Temos a questão sobre o papel que o Estado vai ter nesta situação.
Valor: Por causa da pandemia, familiares não podem realizar os ritos de despedida dos seus mortos, importantes para elaborar a perda. Como nossa subjetividade responde a isso?
Broide: Freud tem um texto lindo, “Luto e Melancolia”, em que fala da necessidade da elaboração do luto para não se ficar no estado de melancolia, que é ser dominado por essa experiência de perda e até se identificar com a experiência de perda. A possibilidade de elaboração disso é muito importante para o sujeito. Temos os casos dos desaparecidos [políticos], em que não há a possibilidade de elaboração da perda. Estamos tentando fazer um trabalho numa favela muito carenciada. Veja que a crise vai abrindo possibilidades para o trabalho psicanalítico completamente inusitadas. A gente não ia pensar em fazer um grupo dentro de uma favela com atendimento por telefone. Mas estamos fazendo. São pessoas que talvez tenham perdido alguém. Se perderam, vão estar muito angustiadas. Isso pode ser um caminho de elaboração das perdas. Também atendemos um grupo com mães ou famílias de adolescentes em conflito com a lei.
Valor: Como tem sido o impacto do confinamento para as dinâmicas familiares?
Broide: É muito interessante você ver como as relações sociais constituem o inconsciente e o laço entre as pessoas. Isso está mudando muito. As pessoas estão namorando, ou estão conhecendo alguém, ou têm uma relação de namoro e chega o isolamento. Vão ficar separadas três, quatro meses, ou vão morar juntos? Ou o namorado vai para a casa da namorada? Ou vão agir como se nada tivesse acontecido e entrar numa situação de risco? Isso coloca na relação uma decisão muito importante. A mesma coisa os casais. Você está lá 24h com a sua esposa, com sua companheira, com seus filhos, com seus enteados, e aí a relação se põe à prova. Como o que ocorre no social, isso nos afeta na mais profunda subjetividade. No íntimo.



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