Inspirada no livro de Philip Roth, a série propõe uma realidade alternativa e opressora nos Estados Unidos da década de 1940, escreve Jerônimo Teixeira em artigo publicado na revista Época. Vale a leitura, saiu no começo do mês, dia 8/5 e segue atual.
O corretor de seguros Herman Levin é um patriota. Acredita nos ideais de liberdade e igualdade expressos em documentos fundamentais dos Estados Unidos, como o Discurso de Gettysburg — breve pronunciamento que o presidente Abraham Lincoln fez em uma cerimônia fúnebre no palco de uma das mais cruentas batalhas da Guerra Civil americana. Nas férias escolares dos filhos, Herman põe a família no carro e parte de Newark, Nova Jersey, para uma excursão cívica pela capital federal, Washington. No imponente Memorial Lincoln, o dedicado pai de família envolve-se em uma discussão política com outros turistas — e um deles chama Herman de “judeu falastrão”. O insulto antissemita cala mais fundo ao ser proferido no monumento que traz em uma das paredes o Discurso de Gettysburg, com sua eloquente afirmação do princípio de que todos os homens são criados iguais. Herman acredita que seu ofensor só ousara falar daquele modo odioso porque a Casa Branca, naquele ano de 1941, era ocupada por Charles Lindbergh, o popular aviador que realizara o primeiro voo sem escalas entre Nova York e Paris — e que foi um notório simpatizante de Hitler.
Na verdade, Lindbergh jamais se candidatou a um cargo político. O presidente americano em 1941, como todos sabem, era Franklin Delano Roosevelt, que com firmeza conduziu seu país na guerra contra as forças do Eixo na Europa e no Pacífico. A cena descrita acima aparece no terceiro dos seis episódios de The plot against America (Complô contra a América), minissérie da HBO disponível pelo serviço de assinatura da Net Now. Trata-se de uma excelente adaptação do romance de mesmo título de Philip Roth (1933-2018), lançado em 2004, no qual se imagina um passado alternativo em que Lindbergh derrota Roosevelt na eleição de 1940. David Simon, um dos criadores da série, adaptou o livro para a TV com a intenção, declarada em várias entrevistas, de representar a ameaça à democracia que ele identifica no governo Donald Trump. Considerada a admiração sabuja que Jair Bolsonaro demonstra pelo presidente americano, seria inevitável que o espectador brasileiro encontrasse paralelos entre a estranha realidade política em que seu país mergulhou e o passado imaginário criado por Roth e recriado por Simon. E calhou de a série ser exibida no Brasil enquanto se desenrolava uma escalada nacional de irracionalidade promovida por um presidente que, mesmo depois de milhares de brasileiros mortos, minimiza a gravidade da pandemia do coronavírus. Essas circunstâncias tornam ainda mais assustadores os paralelos de Complô contra a América, o livro e a série, com o Brasil atual.
Admirador da ditadura militar, Jair Bolsonaro é o político que, falando a apoiadores na frente do Palácio do Planalto, no domingo 3, evocou a Constituição como uma espécie de carta branca para a total autoridade presidencial. Suas credenciais de democrata são duvidosas, na melhor das hipóteses. É bom que se esclareça, porém, que não se está sugerindo aqui que o presidente tenha afinidades com o nazismo. As aproximações com a ficção são menos óbvias. Dizem respeito não tanto à ideologia política que Lindbergh carrega para o governo americano no mundo alternativo de Roth, mas à erosão de pactos de civilidade e ao aviltamento da vida cotidiana que uma figura hostil à democracia causa ao ocupar a Presidência. Voltemos à cena no Memorial Lincoln: Herman percebe que um chefe do Executivo que faz acenos amistosos para os nazistas — oferecerá até uma glamourosa recepção, na Casa Branca, para Ribbentrop, o chanceler de Hitler — representa um tácito sinal verde para que os antissemitas expressem seu ódio. Em momento posterior da trama, lojas de proprietários judeus são depredadas, e sinagogas incendiadas. Episódios assim, comuns na Alemanha dos anos 1930, pareciam inimagináveis para Herman, que se recusa a abandonar seu país mesmo quando amigos judeus se mudam para o Canadá. Corte abrupto para o Brasil real do século XXI: sim, nossa história recente conheceu, sobretudo a partir de 2013, uma boa dose de turbulência nas ruas, com episódios variados de violência (tanto de manifestantes quanto de policiais) e vandalismo. Mas até ontem pareceria inimaginável que hospitais fossem objeto de ódio político. Então o ocupante do cargo máximo do Executivo conclamou a população a enfrentar a Covid-19, que ele chama de “gripezinha”, como “homem, não como moleque”. Estava dada a senha para buzinaços em frente a hospitais. Em São Paulo, uma carreata chegou a bloquear a passagem de ambulâncias. A culminação espetacular dessa onda bárbara se deu em Brasília, no feriado de 1º de maio, quando enfermeiros em protesto pacífico por melhores condições de trabalho foram insultados e agredidos por um grupo pequeno, mas estridente, de militantes bolsonaristas. No mundo todo, profissionais da saúde estão sendo aplaudidos por seu esforço no combate à Covid-19. No Brasil, eles foram incluídos na cada vez mais abrangente categoria dos inimigos do povo — na qual já se encontram jornalistas, também vítimas de agressão das hostes bolsonaristas (embora o presidente prefira culpar “infiltrados”), e governadores que reforçam medidas de isolamento social.
O presidente incita antagonismos exatamente quando fala em “povo”, e esse discurso divisivo também guarda pontos de contato com o Lindbergh de Complô contra a América. “O Brasil como um todo reclama a volta ao trabalho”, disse Bolsonaro em live na frente do Planalto, no dia 3, com a manifestação de sua claque ao fundo. A pesquisa então mais recente do Datafolha informava que o apoio às medidas de isolamento, embora declinante, ainda estava em 52%. O “Brasil como um todo” de Bolsonaro exclui, portanto, metade dos brasileiros. A retórica do presidente e de seus associados transformou “povo” em uma categoria não inclusiva, mas excludente. Sempre ficaram de fora gays, ambientalistas, esquerdistas, intelectuais, jornalistas, cientistas, artistas e não cristãos — e a concepção militante que os ideólogos próximos ao presidente têm do cristianismo tende a excluir o fiel mais apegado à caridade e ao amor ensinados nos Evangelhos. Recentemente, também foi cassada a brasilidade de médicos e enfermeiros, de João Doria e Wilson Witzel, e até de Sergio Moro. O Lindbergh histórico, na campanha em que se engajou para que os Estados Unidos não se envolvessem na guerra contra a Alemanha, acusava seus adversários — judeus inclusive — de perseguir interesses “não americanos”. O Lindbergh da literatura de Roth e da série de Simon vai além: seu governo instaura um programa de “assimilação” para adolescentes judeus, levando-os para temporadas em grotões rurais. O pressuposto era que o fazendeiro do Kentucky representaria o americano “autêntico”, ao passo que o judeu urbano seria sempre um corpo estranho ao “país como um todo”. As iniciativas claramente antissemitas do governo Lindbergh contam com o improvável apoio de um rabino, Lionel Bengelsdorf, o que nos dá mais um melancólico termo de comparação com a realidade brasileira: mesmo no ápice de sua virulência, Jair Bolsonaro segue contando com o apoio de autopropalados liberais. Houve baixas nessas fileiras, sim, mas ainda vemos empresários, militantes de institutos liberais, blogueiros, comentaristas de rádio e TV e velhos homens da imprensa fechados em torno de um presidente que incentiva a irresponsabilidade sanitária e hostiliza imprensa, Congresso e STF.
No final não de todo convincente do romance de Roth, Roosevelt afinal retorna à Casa Branca e os Estados Unidos entram, com atraso, na Segunda Guerra Mundial. A minissérie da HBO optou por um final em aberto, e por isso mais incômodo. Complô contra a América oferece, como se buscou demonstrar aqui, certas balizas para melhor dar sentido à mesquinha política do tempo presente. Mas convém não descuidar do aspecto mais íntimo da narrativa: a família que na minissérie foi rebatizada como Levin se chamava Roth no romance. E o caçula leva o nome de Philip. Sim, é a própria família do autor que está transfigurada no livro. O escritor que escandalizou a direita reacionária e melindrou a esquerda identitária com sua abordagem crua da sexualidade masculina em obras como O complexo de Portnoy e O teatro de Sabbath também dedicava um olhar terno à vida doméstica. Dividida quando Sandy, irmão mais velho de Philip, se deixa seduzir pelas promessas de “assimilação” do rabino Bengelsdorf, a família Roth no entanto ainda consegue se amparar em meio ao terror que se instala em seu país (“Perpétuo medo” é o título do capítulo final). É um amparo generoso, mas precário quando do lado de fora da casa estão queimando sinagogas. Ou buzinando em frente a hospitais.
O corretor de seguros Herman Levin é um patriota. Acredita nos ideais de liberdade e igualdade expressos em documentos fundamentais dos Estados Unidos, como o Discurso de Gettysburg — breve pronunciamento que o presidente Abraham Lincoln fez em uma cerimônia fúnebre no palco de uma das mais cruentas batalhas da Guerra Civil americana. Nas férias escolares dos filhos, Herman põe a família no carro e parte de Newark, Nova Jersey, para uma excursão cívica pela capital federal, Washington. No imponente Memorial Lincoln, o dedicado pai de família envolve-se em uma discussão política com outros turistas — e um deles chama Herman de “judeu falastrão”. O insulto antissemita cala mais fundo ao ser proferido no monumento que traz em uma das paredes o Discurso de Gettysburg, com sua eloquente afirmação do princípio de que todos os homens são criados iguais. Herman acredita que seu ofensor só ousara falar daquele modo odioso porque a Casa Branca, naquele ano de 1941, era ocupada por Charles Lindbergh, o popular aviador que realizara o primeiro voo sem escalas entre Nova York e Paris — e que foi um notório simpatizante de Hitler.
Na verdade, Lindbergh jamais se candidatou a um cargo político. O presidente americano em 1941, como todos sabem, era Franklin Delano Roosevelt, que com firmeza conduziu seu país na guerra contra as forças do Eixo na Europa e no Pacífico. A cena descrita acima aparece no terceiro dos seis episódios de The plot against America (Complô contra a América), minissérie da HBO disponível pelo serviço de assinatura da Net Now. Trata-se de uma excelente adaptação do romance de mesmo título de Philip Roth (1933-2018), lançado em 2004, no qual se imagina um passado alternativo em que Lindbergh derrota Roosevelt na eleição de 1940. David Simon, um dos criadores da série, adaptou o livro para a TV com a intenção, declarada em várias entrevistas, de representar a ameaça à democracia que ele identifica no governo Donald Trump. Considerada a admiração sabuja que Jair Bolsonaro demonstra pelo presidente americano, seria inevitável que o espectador brasileiro encontrasse paralelos entre a estranha realidade política em que seu país mergulhou e o passado imaginário criado por Roth e recriado por Simon. E calhou de a série ser exibida no Brasil enquanto se desenrolava uma escalada nacional de irracionalidade promovida por um presidente que, mesmo depois de milhares de brasileiros mortos, minimiza a gravidade da pandemia do coronavírus. Essas circunstâncias tornam ainda mais assustadores os paralelos de Complô contra a América, o livro e a série, com o Brasil atual.
Admirador da ditadura militar, Jair Bolsonaro é o político que, falando a apoiadores na frente do Palácio do Planalto, no domingo 3, evocou a Constituição como uma espécie de carta branca para a total autoridade presidencial. Suas credenciais de democrata são duvidosas, na melhor das hipóteses. É bom que se esclareça, porém, que não se está sugerindo aqui que o presidente tenha afinidades com o nazismo. As aproximações com a ficção são menos óbvias. Dizem respeito não tanto à ideologia política que Lindbergh carrega para o governo americano no mundo alternativo de Roth, mas à erosão de pactos de civilidade e ao aviltamento da vida cotidiana que uma figura hostil à democracia causa ao ocupar a Presidência. Voltemos à cena no Memorial Lincoln: Herman percebe que um chefe do Executivo que faz acenos amistosos para os nazistas — oferecerá até uma glamourosa recepção, na Casa Branca, para Ribbentrop, o chanceler de Hitler — representa um tácito sinal verde para que os antissemitas expressem seu ódio. Em momento posterior da trama, lojas de proprietários judeus são depredadas, e sinagogas incendiadas. Episódios assim, comuns na Alemanha dos anos 1930, pareciam inimagináveis para Herman, que se recusa a abandonar seu país mesmo quando amigos judeus se mudam para o Canadá. Corte abrupto para o Brasil real do século XXI: sim, nossa história recente conheceu, sobretudo a partir de 2013, uma boa dose de turbulência nas ruas, com episódios variados de violência (tanto de manifestantes quanto de policiais) e vandalismo. Mas até ontem pareceria inimaginável que hospitais fossem objeto de ódio político. Então o ocupante do cargo máximo do Executivo conclamou a população a enfrentar a Covid-19, que ele chama de “gripezinha”, como “homem, não como moleque”. Estava dada a senha para buzinaços em frente a hospitais. Em São Paulo, uma carreata chegou a bloquear a passagem de ambulâncias. A culminação espetacular dessa onda bárbara se deu em Brasília, no feriado de 1º de maio, quando enfermeiros em protesto pacífico por melhores condições de trabalho foram insultados e agredidos por um grupo pequeno, mas estridente, de militantes bolsonaristas. No mundo todo, profissionais da saúde estão sendo aplaudidos por seu esforço no combate à Covid-19. No Brasil, eles foram incluídos na cada vez mais abrangente categoria dos inimigos do povo — na qual já se encontram jornalistas, também vítimas de agressão das hostes bolsonaristas (embora o presidente prefira culpar “infiltrados”), e governadores que reforçam medidas de isolamento social.
O presidente incita antagonismos exatamente quando fala em “povo”, e esse discurso divisivo também guarda pontos de contato com o Lindbergh de Complô contra a América. “O Brasil como um todo reclama a volta ao trabalho”, disse Bolsonaro em live na frente do Planalto, no dia 3, com a manifestação de sua claque ao fundo. A pesquisa então mais recente do Datafolha informava que o apoio às medidas de isolamento, embora declinante, ainda estava em 52%. O “Brasil como um todo” de Bolsonaro exclui, portanto, metade dos brasileiros. A retórica do presidente e de seus associados transformou “povo” em uma categoria não inclusiva, mas excludente. Sempre ficaram de fora gays, ambientalistas, esquerdistas, intelectuais, jornalistas, cientistas, artistas e não cristãos — e a concepção militante que os ideólogos próximos ao presidente têm do cristianismo tende a excluir o fiel mais apegado à caridade e ao amor ensinados nos Evangelhos. Recentemente, também foi cassada a brasilidade de médicos e enfermeiros, de João Doria e Wilson Witzel, e até de Sergio Moro. O Lindbergh histórico, na campanha em que se engajou para que os Estados Unidos não se envolvessem na guerra contra a Alemanha, acusava seus adversários — judeus inclusive — de perseguir interesses “não americanos”. O Lindbergh da literatura de Roth e da série de Simon vai além: seu governo instaura um programa de “assimilação” para adolescentes judeus, levando-os para temporadas em grotões rurais. O pressuposto era que o fazendeiro do Kentucky representaria o americano “autêntico”, ao passo que o judeu urbano seria sempre um corpo estranho ao “país como um todo”. As iniciativas claramente antissemitas do governo Lindbergh contam com o improvável apoio de um rabino, Lionel Bengelsdorf, o que nos dá mais um melancólico termo de comparação com a realidade brasileira: mesmo no ápice de sua virulência, Jair Bolsonaro segue contando com o apoio de autopropalados liberais. Houve baixas nessas fileiras, sim, mas ainda vemos empresários, militantes de institutos liberais, blogueiros, comentaristas de rádio e TV e velhos homens da imprensa fechados em torno de um presidente que incentiva a irresponsabilidade sanitária e hostiliza imprensa, Congresso e STF.
No final não de todo convincente do romance de Roth, Roosevelt afinal retorna à Casa Branca e os Estados Unidos entram, com atraso, na Segunda Guerra Mundial. A minissérie da HBO optou por um final em aberto, e por isso mais incômodo. Complô contra a América oferece, como se buscou demonstrar aqui, certas balizas para melhor dar sentido à mesquinha política do tempo presente. Mas convém não descuidar do aspecto mais íntimo da narrativa: a família que na minissérie foi rebatizada como Levin se chamava Roth no romance. E o caçula leva o nome de Philip. Sim, é a própria família do autor que está transfigurada no livro. O escritor que escandalizou a direita reacionária e melindrou a esquerda identitária com sua abordagem crua da sexualidade masculina em obras como O complexo de Portnoy e O teatro de Sabbath também dedicava um olhar terno à vida doméstica. Dividida quando Sandy, irmão mais velho de Philip, se deixa seduzir pelas promessas de “assimilação” do rabino Bengelsdorf, a família Roth no entanto ainda consegue se amparar em meio ao terror que se instala em seu país (“Perpétuo medo” é o título do capítulo final). É um amparo generoso, mas precário quando do lado de fora da casa estão queimando sinagogas. Ou buzinando em frente a hospitais.
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