Bolsonaro tentou jogar no colo do tribunal a responsabilidade pela crise econômica do coronavírus, escreve o jornalista em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, publicada nesta sexta, 8/5. Na íntegra, abaixo.
O que o presidente Jair Bolsonaro e empresários foram fazer no STF? Tentar jogar no colo do tribunal a responsabilidade pela crise econômica provocada pelo coronavírus. Tese de fundo, vocalizada por Paulo Guedes: é o distanciamento social a origem dos males.
A marcha dos insensatos ocorre no momento em que a curva de mortos dá um pinote e em que capitais se veem obrigadas a impor o “lockdown” para tentar ao menos ordenar o caos. Mas por que ir ao Supremo, não ao Congresso? Porque saiu da corte a leitura evidente do texto constitucional: o presidente não pode impor disciplina na base do decreto. E ele exige ser o Napoleão de hospício do coronavírus.
Não se viu nada parecido em nenhuma democracia. A receita que Bolsonaro e Guedes levaram a Dias Toffoli é também inédita. O capitalismo mundial vive a maior crise de sua história porque não seguiu a opinião do nosso ministro da Economia.
Que coisa! O discurso homicida do presidente, do ministro e da patota de mascarados reúne mais adeptos, especialmente entre as elites, do que nosso senso de decência gosta de admitir. Há no ar miasmas de uma República de Salò (pesquisem) continental, não a de Mussolini, mas a revisitada em filme por Pasolini. Assiste-se a uma assombrosa banalização da morte, mormente agora que o vírus chegou a pobres e pretos.
Não é por acaso que mais da metade dos brasileiros, segundo estudo, pode ter de se pendurar no auxílio oficial. Essa condição miserável não foi fabricada pelo distanciamento social. Já existia antes do vírus. A utopia de Guedes já é uma realidade! O ministro não é melhor que Bolsonaro. A perversidade social do presidente é inata, espontânea. A de Guedes é cultivada, fruto da reflexão.
Há gato na tuba. O STF não é a casa da Noca. Bolsonaro teve a delicadeza de telefonar para Toffoli? “Fala aí, meu chapa! Como vai essa força? Tou indo aí!”? Ou tudo foi feito na base da blitz dos poderosos, entrando no tribunal como quem ocupa um boteco? Em tempos pré-vírus, só se conseguia ir a certos botecos reservando-se mesa.
De toda sorte, está liberado o caminho da romaria dos inconformados. Quando os sem-qualquer-coisa-que-os-faça-felizes quiserem tomar o Supremo, basta chegar e ir entrando. Afinal, na Casa que representa, por excelência, a República dos iguais, não pode haver distinção de classe. É ali o “locus” da vivência prática do artigo 5º da Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção etc.”
É evidente que Dias Toffoli não deveria ter recebido ninguém. Até porque Bolsonaro fazia uma transmissão ao vivo da invasão consentida para as suas milícias digitais. A marcha dos mascarados ocorre no dia seguinte à declaração do ministro da Saúde, Nelson Teich, segundo quem o governo estuda a possibilidade de recorrer ao “lockdown” em algumas áreas. Ele deveria ter apresentado nesta semana um plano de saída do isolamento. Não há plano nenhum. O governo federal entregou aos estados 11% das UTIs prometidas.
Leio na Folha que Toffoli aproveitou a oportunidade para ressuscitar a antiga tese do pacto entre os Poderes: “Essa coordenação, que eu penso que o Executivo, o presidente da República, junto com seus ministros, chamando os outros Poderes, chamando os estados, representantes de municípios, penso que é fundamental. Talvez um comitê de crise para, envolvendo a federação e os Poderes, exatamente junto com o empresariado e trabalhadores, a necessidade que temos de traduzir em realidade esse anseio, que é o anseio de trabalhar, produzir, manter a sociedade estruturada”.
Tudo indica que ninguém falou da curva dos mortos, da falta de leitos ou do colapso do sistema de saúde. Ou por outra: discutiu-se, na base de uma blitz consentida, a feitiçaria de um pacto, mas nada se falou sobre ciência. Não se produz o segundo país mais desigual da Terra da noite para o dia. Parafraseando, acho, Nelson Rodrigues, cumpre constatar: atraso moral como o nosso não é coisa de blitz. Trata-se de uma obra de séculos.
Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.
O que o presidente Jair Bolsonaro e empresários foram fazer no STF? Tentar jogar no colo do tribunal a responsabilidade pela crise econômica provocada pelo coronavírus. Tese de fundo, vocalizada por Paulo Guedes: é o distanciamento social a origem dos males.
A marcha dos insensatos ocorre no momento em que a curva de mortos dá um pinote e em que capitais se veem obrigadas a impor o “lockdown” para tentar ao menos ordenar o caos. Mas por que ir ao Supremo, não ao Congresso? Porque saiu da corte a leitura evidente do texto constitucional: o presidente não pode impor disciplina na base do decreto. E ele exige ser o Napoleão de hospício do coronavírus.
Não se viu nada parecido em nenhuma democracia. A receita que Bolsonaro e Guedes levaram a Dias Toffoli é também inédita. O capitalismo mundial vive a maior crise de sua história porque não seguiu a opinião do nosso ministro da Economia.
Que coisa! O discurso homicida do presidente, do ministro e da patota de mascarados reúne mais adeptos, especialmente entre as elites, do que nosso senso de decência gosta de admitir. Há no ar miasmas de uma República de Salò (pesquisem) continental, não a de Mussolini, mas a revisitada em filme por Pasolini. Assiste-se a uma assombrosa banalização da morte, mormente agora que o vírus chegou a pobres e pretos.
Não é por acaso que mais da metade dos brasileiros, segundo estudo, pode ter de se pendurar no auxílio oficial. Essa condição miserável não foi fabricada pelo distanciamento social. Já existia antes do vírus. A utopia de Guedes já é uma realidade! O ministro não é melhor que Bolsonaro. A perversidade social do presidente é inata, espontânea. A de Guedes é cultivada, fruto da reflexão.
Há gato na tuba. O STF não é a casa da Noca. Bolsonaro teve a delicadeza de telefonar para Toffoli? “Fala aí, meu chapa! Como vai essa força? Tou indo aí!”? Ou tudo foi feito na base da blitz dos poderosos, entrando no tribunal como quem ocupa um boteco? Em tempos pré-vírus, só se conseguia ir a certos botecos reservando-se mesa.
De toda sorte, está liberado o caminho da romaria dos inconformados. Quando os sem-qualquer-coisa-que-os-faça-felizes quiserem tomar o Supremo, basta chegar e ir entrando. Afinal, na Casa que representa, por excelência, a República dos iguais, não pode haver distinção de classe. É ali o “locus” da vivência prática do artigo 5º da Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção etc.”
É evidente que Dias Toffoli não deveria ter recebido ninguém. Até porque Bolsonaro fazia uma transmissão ao vivo da invasão consentida para as suas milícias digitais. A marcha dos mascarados ocorre no dia seguinte à declaração do ministro da Saúde, Nelson Teich, segundo quem o governo estuda a possibilidade de recorrer ao “lockdown” em algumas áreas. Ele deveria ter apresentado nesta semana um plano de saída do isolamento. Não há plano nenhum. O governo federal entregou aos estados 11% das UTIs prometidas.
Leio na Folha que Toffoli aproveitou a oportunidade para ressuscitar a antiga tese do pacto entre os Poderes: “Essa coordenação, que eu penso que o Executivo, o presidente da República, junto com seus ministros, chamando os outros Poderes, chamando os estados, representantes de municípios, penso que é fundamental. Talvez um comitê de crise para, envolvendo a federação e os Poderes, exatamente junto com o empresariado e trabalhadores, a necessidade que temos de traduzir em realidade esse anseio, que é o anseio de trabalhar, produzir, manter a sociedade estruturada”.
Tudo indica que ninguém falou da curva dos mortos, da falta de leitos ou do colapso do sistema de saúde. Ou por outra: discutiu-se, na base de uma blitz consentida, a feitiçaria de um pacto, mas nada se falou sobre ciência. Não se produz o segundo país mais desigual da Terra da noite para o dia. Parafraseando, acho, Nelson Rodrigues, cumpre constatar: atraso moral como o nosso não é coisa de blitz. Trata-se de uma obra de séculos.
Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.
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