Para Trump, todos nós que não fazemos parte do pequeno grupo que o rodeia podemos ser sacrificados para que ele realize sua ambição de ganhar um segundo mandato, escreve o colunista na edição desta semana da revista Época. Íntegra abaixo.
Quando o coronavírus finalmente chegou à Casa Branca, na semana passada, atingindo um dos mordomos do presidente e a secretária de imprensa do vice-presidente, foi realmente instrutivo observar a reação de Donald Trump. Depois de quatro meses subestimando a seriedade da pandemia, de repente ele ficou assustado, e foram imediatamente postas em prática uma série de medidas para protegê-lo. Agora ele será testado diariamente, todo mundo que se reúne com ele será testado também, e o uso de máscaras na Casa Branca virou obrigatório.
E nós, o povo? Enquanto o presidente parece, por fim, reconhecer a necessidade de medidas protetivas, ao menos para ele mesmo, o povo ainda está enfrentando estoques inadequados de máscaras, é quase impossível encontrar desinfetantes nas lojas, o papel higiênico continua em falta e, nos supermercados, há uma escassez crescente de carne e enlatados. Pior ainda, Trump já declarou a vitória sobre o coronavírus, alegando que o povo nem precisa de testes e exigindo que os governadores dos 50 estados reativem a economia.
Ou seja, estamos vivendo uma situação de dois pesos e duas medidas. Em 2016, Hillary Clinton foi duramente criticada quando disse que metade dos seguidores de Trump são racistas e xenófobos, “uma cesta de deploráveis”. Mas Trump foi muito além disso: para ele, todos nós que não fazemos parte do pequeno grupo que o rodeia podemos ser sacrificados para que ele realize sua ambição de ganhar um segundo mandato. Somos simplesmente descartáveis.
É claro que existem vários graus de descartabilidade, que refletem as desigualdades e hierarquias da sociedade americana. Para combater a escassez de carne, por exemplo, Trump decretou que matadouros e frigoríficos são essenciais à segurança nacional e não podem fechar; muitos estavam paralisados porque os empregados, trabalhando ombro a ombro, pegaram o vírus. (Vale a pena notar que uma das quatro empresas principais do ramo é a brasileira JBS, e que houve surtos do vírus em seis de suas fábricas americanas.)
E quem são os operários processando a carne que Trump consome em seu Big Mac? A grande maioria são imigrantes mexicanos e centro-americanos, “estupradores” e “gente ruim”, segundo Trump, ou refugiados africanos de lugares que Trump chama de “países de merda”. Para ele, as empresas frigoríficas são “essenciais”, mas seus trabalhadores estrangeiros não. O decreto reativando a indústria de carnes inclui uma cláusula isentando as empresas de responsabilidade legal caso seus operários peguem o vírus ou morram por causa dele e devido às condições insalubres de trabalho.
Os Estados Unidos têm toda uma propaganda oficial ao redor dos veteranos de guerra, e, quando chegam à terceira idade, eles têm direito a moradia especial e acesso a hospitais para ex-soldados. Só que na pandemia esses locais ficaram muito inseguros e até perigosos: em uma dessas casas de repouso para militares, com pouco mais de 300 residentes, já morreram 72 e outros 111 pegaram o vírus. Apesar de toda a retórica sobre “nossos heróis”, o governo não está tomando as providências devidas para protegê-los. Falar é fácil, não é?
Então imagine a situação dos milhões de idosos e idosas que não fizeram o serviço militar. A grande maioria das famílias não tem orçamento para contratar cuidadoras, e surgiu toda uma indústria de lares de idosos, não de caridade, mas com fins de lucro. A primeira morte em massa da pandemia aconteceu justamente num desses recintos, em Seattle, e foi seguida por outras chacinas em casas de repouso em Massachusetts, Texas, Illinois e Nova Jersey. Mas tudo bem, dizem seguidores fervorosos de Trump como Dan Patrick, vice-governador do Texas. Segundo ele, os avós precisam aceitar o sacrifício de sua vida para “preservar para seus filhos e netos a América que todos amamos”, com economia pujante. Em outras palavras, são descartáveis.
Descartáveis também são as enfermeiras, os trabalhadores do Samu, os técnicos e até os médicos. Mais uma vez, a retórica triunfa sobre a realidade: são aplaudidos como operários “da linha de frente”, mas não têm um estoque suficiente de equipamento pessoal de proteção. Muitos deles são de minorias raciais: negros, hispânicos, asiáticos. Mas, quando reclamam da falta de equipamento e testes, Trump, em vez de socorrê-los, os acusa de vender máscaras no mercado negro.
Na verdade, existe apenas um descartável neste desastre que os Estados Unidos estão vivendo, com mais de 80 mil mortos. Como diz o ditado: “É sempre pela cabeça que o peixe começa a ficar podre”, e um fedor está emanando da Casa Branca.
Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”
Quando o coronavírus finalmente chegou à Casa Branca, na semana passada, atingindo um dos mordomos do presidente e a secretária de imprensa do vice-presidente, foi realmente instrutivo observar a reação de Donald Trump. Depois de quatro meses subestimando a seriedade da pandemia, de repente ele ficou assustado, e foram imediatamente postas em prática uma série de medidas para protegê-lo. Agora ele será testado diariamente, todo mundo que se reúne com ele será testado também, e o uso de máscaras na Casa Branca virou obrigatório.
E nós, o povo? Enquanto o presidente parece, por fim, reconhecer a necessidade de medidas protetivas, ao menos para ele mesmo, o povo ainda está enfrentando estoques inadequados de máscaras, é quase impossível encontrar desinfetantes nas lojas, o papel higiênico continua em falta e, nos supermercados, há uma escassez crescente de carne e enlatados. Pior ainda, Trump já declarou a vitória sobre o coronavírus, alegando que o povo nem precisa de testes e exigindo que os governadores dos 50 estados reativem a economia.
Ou seja, estamos vivendo uma situação de dois pesos e duas medidas. Em 2016, Hillary Clinton foi duramente criticada quando disse que metade dos seguidores de Trump são racistas e xenófobos, “uma cesta de deploráveis”. Mas Trump foi muito além disso: para ele, todos nós que não fazemos parte do pequeno grupo que o rodeia podemos ser sacrificados para que ele realize sua ambição de ganhar um segundo mandato. Somos simplesmente descartáveis.
É claro que existem vários graus de descartabilidade, que refletem as desigualdades e hierarquias da sociedade americana. Para combater a escassez de carne, por exemplo, Trump decretou que matadouros e frigoríficos são essenciais à segurança nacional e não podem fechar; muitos estavam paralisados porque os empregados, trabalhando ombro a ombro, pegaram o vírus. (Vale a pena notar que uma das quatro empresas principais do ramo é a brasileira JBS, e que houve surtos do vírus em seis de suas fábricas americanas.)
E quem são os operários processando a carne que Trump consome em seu Big Mac? A grande maioria são imigrantes mexicanos e centro-americanos, “estupradores” e “gente ruim”, segundo Trump, ou refugiados africanos de lugares que Trump chama de “países de merda”. Para ele, as empresas frigoríficas são “essenciais”, mas seus trabalhadores estrangeiros não. O decreto reativando a indústria de carnes inclui uma cláusula isentando as empresas de responsabilidade legal caso seus operários peguem o vírus ou morram por causa dele e devido às condições insalubres de trabalho.
Os Estados Unidos têm toda uma propaganda oficial ao redor dos veteranos de guerra, e, quando chegam à terceira idade, eles têm direito a moradia especial e acesso a hospitais para ex-soldados. Só que na pandemia esses locais ficaram muito inseguros e até perigosos: em uma dessas casas de repouso para militares, com pouco mais de 300 residentes, já morreram 72 e outros 111 pegaram o vírus. Apesar de toda a retórica sobre “nossos heróis”, o governo não está tomando as providências devidas para protegê-los. Falar é fácil, não é?
Então imagine a situação dos milhões de idosos e idosas que não fizeram o serviço militar. A grande maioria das famílias não tem orçamento para contratar cuidadoras, e surgiu toda uma indústria de lares de idosos, não de caridade, mas com fins de lucro. A primeira morte em massa da pandemia aconteceu justamente num desses recintos, em Seattle, e foi seguida por outras chacinas em casas de repouso em Massachusetts, Texas, Illinois e Nova Jersey. Mas tudo bem, dizem seguidores fervorosos de Trump como Dan Patrick, vice-governador do Texas. Segundo ele, os avós precisam aceitar o sacrifício de sua vida para “preservar para seus filhos e netos a América que todos amamos”, com economia pujante. Em outras palavras, são descartáveis.
Descartáveis também são as enfermeiras, os trabalhadores do Samu, os técnicos e até os médicos. Mais uma vez, a retórica triunfa sobre a realidade: são aplaudidos como operários “da linha de frente”, mas não têm um estoque suficiente de equipamento pessoal de proteção. Muitos deles são de minorias raciais: negros, hispânicos, asiáticos. Mas, quando reclamam da falta de equipamento e testes, Trump, em vez de socorrê-los, os acusa de vender máscaras no mercado negro.
Na verdade, existe apenas um descartável neste desastre que os Estados Unidos estão vivendo, com mais de 80 mil mortos. Como diz o ditado: “É sempre pela cabeça que o peixe começa a ficar podre”, e um fedor está emanando da Casa Branca.
Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”
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