Pular para o conteúdo principal

Luciano Buarque de Holanda: o futuro absurdo de “Upload”

O ano é 2033 e o conceito de morte mudou. Qualquer um, com dinheiro na conta para pagar um plano de pós-vida virtual, pode desfrutar a eternidade em “resorts” (literalmente) paradisíacos, “reencarnado” na forma de avatar. Para isso, basta assinar um termo de compromisso e fazer seu “upload” cerebral, escreve o jornalista em resenha para o Valor Econômico, publicada na sexta, 15/5. Continua abaixo.

A premissa não é exatamente nova. “Years and Years”, minissérie do HBO, trouxe uma subtrama similar. Já o episódio “Volto Logo”, de “Black Mirror”, antecipou o conceito ainda em 2013. “Upload”, porém, leva a ideia muito mais adiante.
Para começar, é preciso escolher uma boa prestadora de serviços, caso você não queira passar a eternidade aturando “bugs” de sistema. As melhores empresas oferecem um “afterlife” tão vívido quanto a própria existência. Todos os seus sentidos são preservados, e você ainda conta com comodidades intangíveis em vida.
Com um simples clique, você pode escolher a estação do ano de seu agrado. Os bufês são verdadeiras orgias gastronômicas. Saudades dos amigos e parentes vivos? Você pode falar com eles em “video chat” sempre que quiser. Lá, no além virtual, ninguém adoece, engorda ou acorda com olheiras. Na verdade, você pode optar pela aparência que bem desejar.
Mas a propaganda engana, como logo irá descobrir o jovem desenvolvedor de aplicativos Nathan Brown (Robbie Amell), morto num acidente de carro - algo raríssimo, uma vez que os automóveis tornaram-se autônomos, controlados por inteligência artificial. Sim, o pós-vida tem suas vantagens, mas, para cada uma delas, muitos inconvenientes.
Regra número um: não chegue atrasado aos bufês, pois no horário determinado, a comida irá desaparecer da ponta de seu garfo. Transitar pelos saguões do “resort” requer paciência. A todo instante, Nathan é parado pelo merchandising de sorridentes hologramas, que imploram por “likes”. É um pós-vida capitalista, onde todos os internos estão submetidos a um sistema de créditos.
Nathan não teve tempo de ler o termo de compromisso, mas agora todos os seus gastos são controlados pela namorada em vida, Ingrid (Allegra Edwards), uma garota fútil, interesseira, que só pensa em seu próprio bem-estar.
Logo no primeiro dia de eternidade, o protagonista cogita mergulhar na “torrente”, algo como um campo magnético que serve de fluxo de dados entre o pós-vida e o mundo real, também uma fonte de suicídio para internos em crise.
De última hora, ele é desencorajado por Nora (Andy Allo), sua assistente “afterlife”, que se projeta em forma de avatar para falar diretamente com Nathan. No processo, ela quebra alguns protocolos, sobretudo ao revelar sua verdadeira identidade. Daí surge o interesse romântico que guiará o resto da série.
O futurismo de “Upload” é tão absurdo quanto aquele de “De Volta Para o Futuro 2” (1989), no que toca às evoluções mirabolantes de um futuro tão próximo. Tudo bem que carros autônomos e drones patrulheiros já são uma realidade, mas eles não estarão no nosso dia a dia em míseros 13 anos. Já a ideia de “upload” cerebral ainda não saiu da ficção científica.
Mas “Upload” não é para ser levada tão a sério. O criador é Greg Daniels, “showrunner” da adaptação americana de “The Office”, também responsável por “Parks and Recreation” e diversos episódios de “Os Simpsons” e “O Rei do Pedaço”. Ainda que o surrealismo da série muitas vezes encontre parentesco com as obras de Spike Jonze e Michel Gondry, “Upload” não é mais que uma comédia despretensiosa.
“Upload” (1ª temporada)
EUA - 2020. Criador: Greg Daniels. Onde: Amazon Prime Video / BBB
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...