Pular para o conteúdo principal

O abacaxi para descascar, por Alon Feuerwerker

“Há algo errado num país onde a taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos é de estonteantes 50%. Mais de dez vezes a da Covid-19 (e ainda tem a subnotificação). Jair Bolsonaro é o quinto presidente saído da urna desde a volta das eleições diretas para o Palácio do Planalto, em 1989, e agora começa a sofrer, como a maioria, o cerco e a tentativa de aniquilamento. Vamos ver como ele se sai”, escreve o colunista de política da revista Veja na edição desta semana. Uma boa análise do jornalista, que continua abaixo:

Não que os substitutos estejam imunizados contra o problema. Viram alvo instantaneamente quando se sentam na cadeira. O vice de Fernando Collor, Itamar Franco, só escapou da liquidação quando finalmente aceitou ser um presidente decorativo e nomeou Fernando Henrique Cardoso para a Fazenda. Ou primeiro-ministro. Saciou ali a sede de poder dos que sempre querem muito mandar, mas só de vez em quando têm os votos para tal.
Para cruzar a correnteza, Michel Temer precisou usar todo o repertório de ás da hoje estigmatizada velha política. Foi ajudado por um fato singular, que Dilma Rousseff não conseguiu manobrar para ela própria: como quase todos estavam meio encrencados com a Lava-Jato, estabeleceu-se no mundo político um certo espírito de corpo e Temer foi usado de boi de piranha. Para dar tempo de pelo menos um punhado de bois atravessar.
Qual é então o problema? Algum deve mesmo haver, porque definitivamente os índices brasileiros de perecimento político presidencial não são normais. Uns dirão que o povo não sabe votar bem. Hipótese não verificável. Outros, que o presidencialismo é um sistema bichado. Contra isso, observem-se as dificuldades mundo afora para formar e manter governos estáveis em parlamentarismos onde o bipartidismo colapsou.
O xis da questão é outro. O sistema aqui está organizado para impedir que o presidente da República escolhido pelo povo consiga governar com quem o elegeu. Isso seria possível apenas se o presidente trouxesse com ele, da mesma urna, uma maioria parlamentar. As regras brasileiras forçam exatamente o contrário: desde a Constituinte, nunca um presidente eleito levou à Câmara dos Deputados e ao Senado maiorias orgânicas.
Notem, caro leitor e cara leitora, que quando a opinião pública encasqueta com um governo essa ingovernabilidade potencial é apresentada como algo bom, e o governante que tenta formar base parlamentar é acusado de “comprar votos”. Já quando o governo é, digamos, bem-visto, lamenta-se a fragmentação e surgem os apelos pelo aperfeiçoamento da articulação política. E a distribuição de cargos e verbas adquire verniz algo republicano.
Jair Bolsonaro está em xeque principalmente porque 1) resolveu surfar na conversa de que haveria uma nova política e subestimou a necessidade de sustentação parlamentar e 2) trouxe para dentro do governo em posições de poder potenciais opositores à reeleição dele em 2022. Ingenuidade. Quer (precisa) corrigir a rota agora em condições mais desfavoráveis, no meio de uma pandemia e com a economia ameaçada de ir a pique.
Um abacaxi não trivial de descascar.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...