Excelente reflexão do jornalista e professor Eugênio Bucci em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo no dia 21/5. Íntegra abaixo.
Para falar das coisas prementes, vamos começar por um diagnóstico antigo: “Hoje, a maioria dos homens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas crenças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros”. Essas palavras foram mandadas gravar em pedras na cidade de Enoanda, na Capadócia (atual território da Turquia), por um certo Diógenes, no século 2.º desta era. Seguidor dos ensinamentos do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), Diógenes fez essas e outras inscrições em nome de seu mestre, para quem a filosofia teria o poder de nos curar. Epicuro via na ignorância um terrível mal da humanidade e nisso concordava com outros sábios gregos.
A ignorância é um mal que mata. Se alguém ainda duvida, que olhe para o Brasil. Em nosso país ficaram escancarados os nexos entre a estupidez e o fracasso no combate à pandemia da covid-19. Se quisermos olhar o mesmo fato por um ângulo invertido, diremos que estão mais do que patentes os nexos entre o conhecimento e o sucesso contra a pandemia. Países onde as autoridades evitam espalhafatos e ancoram suas decisões na ciência têm se saído melhor. Nesses lugares distantes, os governos agem com o que se pode chamar de bom senso: as decisões são pautadas na razão, nas evidências científicas, e, não menos importante, a sociedade compreende o que as autoridades falam. A comunicação honesta e séria deve ser concebida como uma dimensão integrante da razão. Onde as autoridades alopram, predominam os surtos cloroquínicos, as mortes se avolumam e ninguém entende nada.
Na televisão, os sepultamentos com retroescavadeira conferem aos funerais um aspecto de manobras de terraplanagem. Loucura desgrenhada. Embora o atestado de óbito registre covid-19, não há mais como fingir que a burrice governamental não seja uma assassina pior. A ignorância causa a mortandade – ou o morticínio. As provas estão aí. Se o novo coronavírus não se vê a olho nu, as engrenagens internas da irresponsabilidade estulta do presidente da República estão mais do que expostas. Todo mundo vê, todo mundo sabe, mesmo os que não sabem o que fazem ao apoiá-lo, como “carneiros” celerados, em transes dominicais.
O presidente é um avatar do fascismo digital, com o detalhe de que, em lugar de um comando pensante em outra dimensão de si mesmo, tem as instruções de seus atos vindas de um lugar fora de si. Que ele pareça um ser fora de si é mero detalhe. O que não é detalhe é a lógica irracional (mas, ainda assim, lógica) a que ele obedece, como um personagem desses videogames em que os contendores se engalfinham pelas redes digitais. O presidente é um autômato teleguiado pela dinâmica das redes sociais. Ele e seus aduladores vivem a fantasia tecnológica de uma guerra permanente contra os direitos, a democracia, a modernidade e a civilização. E em tempos de pandemia essa brincadeira de criançonas psicóticas mata gente a uma taxa de mais de mil por dia.
Os brasileiros estão morrendo não só de covid-19, morrem porque lhes foi inoculada a doença da ignorância apatetada do presidente da República. Estamos morrendo de bolsonarite. No inferno das UTIs precárias, das UTIs inexistentes, dos cemitérios revirados do avesso pelas motoniveladoras, a nossa maior tragédia não é que Bolsonaro seja fascista (o que ele é, embora não saiba o que quer dizer esse adjetivo), a tragédia maior é que nele a idiotia militante (e fascista) assume a forma de uma política pública de genocídio a céu aberto.
Diante da vala comum a que este governo nos vai reduzindo, os juristas ajuizados (são poucos) trabalham para localizar elementos probatórios de crime de responsabilidade onde grassa a irresponsabilidade mais desarvorada e mais tanática. Trata-se de dar um jeito de montar um pedido de impeachment com começo, meio e fim que force o sujeito a sair de lá. Não é de descartar a hipótese de que, apavorado, ele renuncie. (O Centrão não será resistência, pois vai com quem dá mais e quando perceber que o governo não tem mais o que dar pulará fora.)
O impeachment ganhou a força de um imperativo moral, um dever cívico, uma questão de sobrevivência, uma agenda de saúde pública e uma mobilização para evitar a morte pública da coisa pública, das vidas brasileiras e, se você quiser, também da economia nacional. Esse é o compromisso inadiável dos que acordaram para a urgência de construir uma unidade antifascista (uma frente) para estancar o genocídio. O remédio de que dispomos contra a epidemia da ignorância responde pelo nome de impeachment.
O antídoto é mais simples do que o tetrafármaco prescrito por Epicuro: “Não há que temer a morte, não há que temer os deuses, a dor se pode suportar, a felicidade se pode alcançar”. O impeachment é mais fácil de usar do que a ataraxia (imperturbabilidade da alma). Impeachment na veia. Aviemos logo a receita.
P.S. – Este artigo foi escrito em memória do filósofo José Américo Motta Pessanha (1932-1993), que tanto ensinou sobre Epicuro e sobre liberdade.
Para falar das coisas prementes, vamos começar por um diagnóstico antigo: “Hoje, a maioria dos homens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas crenças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros”. Essas palavras foram mandadas gravar em pedras na cidade de Enoanda, na Capadócia (atual território da Turquia), por um certo Diógenes, no século 2.º desta era. Seguidor dos ensinamentos do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), Diógenes fez essas e outras inscrições em nome de seu mestre, para quem a filosofia teria o poder de nos curar. Epicuro via na ignorância um terrível mal da humanidade e nisso concordava com outros sábios gregos.
A ignorância é um mal que mata. Se alguém ainda duvida, que olhe para o Brasil. Em nosso país ficaram escancarados os nexos entre a estupidez e o fracasso no combate à pandemia da covid-19. Se quisermos olhar o mesmo fato por um ângulo invertido, diremos que estão mais do que patentes os nexos entre o conhecimento e o sucesso contra a pandemia. Países onde as autoridades evitam espalhafatos e ancoram suas decisões na ciência têm se saído melhor. Nesses lugares distantes, os governos agem com o que se pode chamar de bom senso: as decisões são pautadas na razão, nas evidências científicas, e, não menos importante, a sociedade compreende o que as autoridades falam. A comunicação honesta e séria deve ser concebida como uma dimensão integrante da razão. Onde as autoridades alopram, predominam os surtos cloroquínicos, as mortes se avolumam e ninguém entende nada.
Na televisão, os sepultamentos com retroescavadeira conferem aos funerais um aspecto de manobras de terraplanagem. Loucura desgrenhada. Embora o atestado de óbito registre covid-19, não há mais como fingir que a burrice governamental não seja uma assassina pior. A ignorância causa a mortandade – ou o morticínio. As provas estão aí. Se o novo coronavírus não se vê a olho nu, as engrenagens internas da irresponsabilidade estulta do presidente da República estão mais do que expostas. Todo mundo vê, todo mundo sabe, mesmo os que não sabem o que fazem ao apoiá-lo, como “carneiros” celerados, em transes dominicais.
O presidente é um avatar do fascismo digital, com o detalhe de que, em lugar de um comando pensante em outra dimensão de si mesmo, tem as instruções de seus atos vindas de um lugar fora de si. Que ele pareça um ser fora de si é mero detalhe. O que não é detalhe é a lógica irracional (mas, ainda assim, lógica) a que ele obedece, como um personagem desses videogames em que os contendores se engalfinham pelas redes digitais. O presidente é um autômato teleguiado pela dinâmica das redes sociais. Ele e seus aduladores vivem a fantasia tecnológica de uma guerra permanente contra os direitos, a democracia, a modernidade e a civilização. E em tempos de pandemia essa brincadeira de criançonas psicóticas mata gente a uma taxa de mais de mil por dia.
Os brasileiros estão morrendo não só de covid-19, morrem porque lhes foi inoculada a doença da ignorância apatetada do presidente da República. Estamos morrendo de bolsonarite. No inferno das UTIs precárias, das UTIs inexistentes, dos cemitérios revirados do avesso pelas motoniveladoras, a nossa maior tragédia não é que Bolsonaro seja fascista (o que ele é, embora não saiba o que quer dizer esse adjetivo), a tragédia maior é que nele a idiotia militante (e fascista) assume a forma de uma política pública de genocídio a céu aberto.
Diante da vala comum a que este governo nos vai reduzindo, os juristas ajuizados (são poucos) trabalham para localizar elementos probatórios de crime de responsabilidade onde grassa a irresponsabilidade mais desarvorada e mais tanática. Trata-se de dar um jeito de montar um pedido de impeachment com começo, meio e fim que force o sujeito a sair de lá. Não é de descartar a hipótese de que, apavorado, ele renuncie. (O Centrão não será resistência, pois vai com quem dá mais e quando perceber que o governo não tem mais o que dar pulará fora.)
O impeachment ganhou a força de um imperativo moral, um dever cívico, uma questão de sobrevivência, uma agenda de saúde pública e uma mobilização para evitar a morte pública da coisa pública, das vidas brasileiras e, se você quiser, também da economia nacional. Esse é o compromisso inadiável dos que acordaram para a urgência de construir uma unidade antifascista (uma frente) para estancar o genocídio. O remédio de que dispomos contra a epidemia da ignorância responde pelo nome de impeachment.
O antídoto é mais simples do que o tetrafármaco prescrito por Epicuro: “Não há que temer a morte, não há que temer os deuses, a dor se pode suportar, a felicidade se pode alcançar”. O impeachment é mais fácil de usar do que a ataraxia (imperturbabilidade da alma). Impeachment na veia. Aviemos logo a receita.
P.S. – Este artigo foi escrito em memória do filósofo José Américo Motta Pessanha (1932-1993), que tanto ensinou sobre Epicuro e sobre liberdade.
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