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Gilberto Dimenstein: Adeus, irmão.

Não espere imparcialidade, não espere distanciamento crítico: aqui não escreve o jornalista, mas o irmão que conviveu com ele nos últimos 40 anos. Ou não conviveu: houve época em que trabalhamos juntos, em que, mesmo trabalhando longe, morando longe, buscávamos contato diário; houve época em que ficamos afastados, não por brigas, mas por circunstâncias diversas – como ele morar em outro país quando não havia telefone por Internet. Mas, quando nos falávamos, é como se a última conversa tivesse sido ontem, escreve Carlos Brickmann em seu blog Chumbo Gordo. Uma bela homenagem a um dos grandes jornalistas que o Brasil perdeu nesta semana, mais um que vai fazer falta nestes tempos estranhos que estamos vivendo.

O Gil soube se reinventar algumas vezes. Começou como repórter, repórter dos bons, foi um tormento para o Palácio da Alvorada enquanto morou em Brasília, movia-se com espantosa facilidade entre fontes das mais variadas tendências. Aí, seguindo uma sugestão do mestre Ewaldo Dantas Ferreira, que considerava o jornalismo brasileiro muito atrelado às agendas governamentais, o Gil se reinventou pela primeira vez: criou pautas que nada tinham a ver com as prioridades dos diversos governos, e fez para a Folha grandes reportagens sobre temas como a exploração sexual infantil – que acabou virando um livro, Meninas da Noite, e um documentário da ABC News americana.
Reinventou-se novamente: ele, que passara pela faculdade sem grandes preocupações com o estudo, conseguiu bolsa para a Columbia University (e, mais tarde, para Harvard). Nos Estados Unidos, decidiu que apenas reportar era pouco: era necessário que a reportagem tivesse objetivos sociais. Não se assustem: nada de esquerda, direita, essas mãos de direção que idiotizam tanta gente inteligente. Mas por que não usar a comunicação para chegar a objetivos como, por exemplo, ajudar a reurbanizar São Paulo? Ou para estimular o ensino, ou para facilitar o acesso à cultura?
Eu dirigia a Folha da Tarde, ele insistia: criem uma seção, “O que é de graça”. É importante! E era – mas não conseguimos nada além de uma ou outra publicação, nada que marcasse o jornal. O Gilberto criou então duas entidades: uma, o Cidade Aprendiz, em que garotos recebiam formação profissionalizante (e foi no café do local que, já assessor de comunicação, organizei com Marli Gonçalves a festa de lançamento da novela Marisol, do SBT, em que Bárbara Paz ganhava a vida vendendo flores de papel). Os aprendizes fizeram os salgadinhos, serviram a mesa, as bebidas, fizeram as flores de papel distribuídas aos convidados.
Já faz mais de oito anos – e a Cidade Aprendiz continua funcionando. O Gil mostrou então uma outra face: ele, que sempre dera pouca importância a dinheiro, conseguiu interessar empresários no projeto educacional, e encontrou voluntários que cuidassem da contabilidade e administração. Ele era a alma do grupo – e a alma do grupo foi até seus últimos dias, quando ainda obteve quantias substanciais para a orquestra de Paraisópolis, a enorme favela paulistana.
Morre aos 63 anos o jornalista Gilberto Dimenstein…Conversamos muito logo que soube que ele estava com câncer. Tinha total consciência da letalidade do câncer de pâncreas. Ele acompanhava seu tratamento como repórter: sabia que em seu caso já não serviam os métodos habituais, e que sua vida estava chegando ao fim.
Organizou também a Catraca Livre, site especializado em garimpar eventos culturais gratuitos e divulgá-los. E sua face, digamos, empresarial, se mostrou novamente: foi capaz de dotar o site de estrutura que o mantém de pé até hoje – agora dirigido por seu filho.
Quem diria! Em outras épocas, descasado, o Gil foi morar com um casal amigo. Nunca se acanhou de bater na porta do casal, fosse à hora que fosse, para bater um papo. E ainda perguntava, para não incomodar tanto: “Vocês estão trepando?” Foi quando se cristalizou o apelido “Shonda” – algo como “vergonha”, em yiddish, nome tirado do esplêndido livro Gold Vale Ouro (Good as Gold), de Joseph Heller. Em Brasília, por várias vezes chamou o professor Cristóvam Buarque, que foi reitor da UnB, governador do Distrito Federal, senador e ministro da Educação, para tomar conta de seus filhos. E sempre foi atendido!
Aquele rapaz inconveniente, que só não causava problemas porque era muito simpático e amigo, acabou virando um organizador sério, de enorme capacidade.
Conversamos muito logo que soube que ele estava com câncer. Tinha total consciência da letalidade do câncer de pâncreas. Ele acompanhava seu tratamento como repórter: sabia que em seu caso já não serviam os métodos habituais, e que sua vida estava chegando ao fim.
Reinventou-se mais uma vez: redescobriu o prazer de um ritmo mais lento, de maior contato com a natureza, procurou pessoas com quem tinha se desentendido para desculpar-se dos exageros e fazer as pazes, não se entregou à lamentação. Sentia-se, de certa forma, feliz: tinha tido uma boa vida, uma vida produtiva, e tranquilo aguardava o fim. Disse-me que não esperava chegar ao Natal de 2019. Deus lhe deu mais cinco meses.
Carlos Brickmann é jornalista e diretor do Chumbo Gordo.



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