Gráficos, curvas e números que passaram a frequentar o cotidiano dos brasileiros durante a pandemia de covid-19 apontam para uma direção: o desastre. As contas nem são tão complexas. Sem atenção básica de saúde voltada para as disparidades sociais do Brasil, a necessidade de ajuda financeira para a população vai se prolongar. Numa economia já combalida, o resultado é previsível. “Vai estourar”, prevê a demógrafa Marcia Castro, primeira e única mulher brasileira a ocupar uma cadeira de professora titular na cobiçada Universidade Harvard, no Departamento de Saúde Global e População. Matéria de Ricardo Lessa para o Valor, publicada sexta, 29/5, no Caderno EU&Fim de Semana, vale a leitura.
“O problema não é injetar dinheiro na economia, que é até recomendável em crises como a que vivemos, mas, sim, o governo não fazer a segunda parte do dever de casa, que seria colocar em ação um programa de controle e isolamento social organizado para a complexidade do Brasil. Isso vai gerar uma dívida imensa com pequeno benefício social”, afirma Marcia.
O mais triste, acrescenta, é que o país desperdiçou a chance de ter sido um exemplo no combate à pandemia, já que é um dos poucos países com uma rede de saúde universal (SUS) e possui uma rede de saúde pública que cobre 75% da população brasileira. O governo federal ignorou, entretanto, toda essa rede.
“Desde o primeiro protocolo de manejo da doença, ainda com o [então] ministro [Luiz Henrique] Mandetta, o foco da ação do governo foi o tratamento clínico, e não a ação preventiva”, comenta a professora, que mantém contato com vários grupos de cientistas brasileiros que estudam e procuram contribuir para o combate ao novo coronavírus no Brasil.
Quando se formou em estatística na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 1986, Marcia não se imaginava como professora de Harvard. “Nunca tive essa meta, as coisas foram acontecendo. Hoje estou mais para a música do Zeca Pagodinho: ‘Deixa a vida me levar’”, diz a carioca de 55 anos, filha de um pequeno empresário, imigrante português, criada na Tijuca.
Embora tenha passado os últimos anos nos EUA - dez anos na Universidade Princeton, outra universidade do primeiro time mundial, onde concluiu com louvor o Ph.D., depois em Harvard -, Marcia não se afastou do Brasil. O foco de seus estudos é a malária e doenças transmitidas por mosquitos na Amazônia, para onde viaja continuamente há 20 anos.
Seu trabalho, que une pesquisa de campo (“imprescindível”, ressalta), dados de satélite e cálculos matemáticos, provou a ligação causal da transmissão das doenças com fatores ecológicos, como desmatamentos e avanço da atividade humana na floresta.
Marcia estava se preparando para mais uma viagem à Amazônia em junho, mas teve de cancelar por causa da pandemia. A Universidade Harvard programou retomar as primeiras atividades (dos laboratórios) em setembro. As aulas continuarão a ser remotas, porque a curva da doença está baixando no Estado onde leciona, Massachusetts.
A retomada das atividades é outro problema para o Brasil. Só pode ser feita se houver controle dos infectados, com rede laboratorial capaz de fazer testes rápidos. Se isso não for realizado, há risco de novas ondas da epidemia, e não se sabe com que força. Por enquanto, o Brasil é um dos países que menos faz testes no mundo. “Não tem plano para retomar a atividade econômica. Cadê o plano?”
Como profissional das ciências exatas, ela não se aventura a fazer prognósticos para o Brasil, que é imenso e complexo como os EUA. Em alguns Estados, a curva está baixando, e em outros, subindo. Mas ela assegura que o Brasil ainda não chegou ao pico da doença: nos manteremos nos primeiros lugares do mundo em número de contaminação e mortes. “A curva da doença deve demorar a baixar - até setembro, por exemplo”, diz Marcia.
Até a terça-feira, o país tinha 363.211 casos (segunda posição mundial) e 22.666 mortos, segundo a Organização Mundial da Saúde, que se baseia em dados enviados por governos locais. Os números de contaminação e óbitos divulgados pelo Ministério da Saúde no Brasil podem estar subestimados: “Não me surpreenderia se fossem 10 ou 15 vezes maiores”. Mas isso não é um problema brasileiro; conforme a pesquisadora, há problemas em todos os países. No entanto, os dados oficiais já mostram uma tendência e seriam suficientes para fundamentar decisões na área da saúde pública.
A pandemia só veio escancarar problemas que já existiam no país, observa. Os menores índices de leitos por população do Brasil eram os de Manaus e Macapá. Não por acaso, são os locais de maior letalidade da doença. “A primeira recomendação do Ministério da Saúde (lavar as mãos por 20 segundos) não está ao alcance de muita gente nas comunidades mais pobres.”
Por causa da desigualdade brasileira, o isolamento da população é desafio adicional. Nas favelas e comunidades carentes, onde a concentração nas habitações é grande, as pessoas precisam sair para trabalhar, para ganhar o sustento do dia. “Os agentes de saúde poderiam ter sido acionados para identificar essas pessoas e isolá-las da comunidade. Em hotéis, por exemplo, que estão com os quartos vazios”, afirma. Se isso não for feito, os mais pobres vão ser as maiores vítimas. Há uma correlação clara entre Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e mortalidade, constata.
A professora considera improvável a descoberta de uma vacina antes de um ano e acha um absurdo o tratamento com cloroquina. Para Marcia, um grande exemplo de combate bem-sucedido da doença foi o de Taiwan, ilha com 28 milhões de habitantes que a China reivindica como parte de seu território. Logo após o primeiro anúncio da doença, um comitê de combate foi montado e os passageiros desembarcados nos aeroportos eram testados e isolados, caso apresentassem algum sinal suspeito.
Um problema que ocorre no Brasil, como nos Estados Unidos, são as versões desencontradas das lideranças, ou mesmo a ausência delas. Para Marcia, os presidentes americano, o republicano Donald Trump, e brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido), ocupam os primeiros lugares de piores líderes mundiais no combate à pandemia.
Quando daqui a algum tempo forem escritos livros sobre a atual pandemia, eles vão ter duas partes, prevê a professora. A primeira dedicada a líderes nacionais que conseguiram vencer a doença. A outra dedicada às lideranças ausentes ou desencontradas, que resultaram em desastres para seus países. O Brasil, infelizmente, estará na segunda parte.
Os sinais confusos enviados para a população, que estão causando um isolamento parcial em várias regiões do país, acabam dando munição para os que são contra a medida, segundo Marcia: “Olha aí, estão isolando e não adianta nada”. É o paradoxo da saúde pública, lembra ela: se funciona e morre menos gente, os opositores vão alegar que não precisava daquilo tudo.
“O problema não é injetar dinheiro na economia, que é até recomendável em crises como a que vivemos, mas, sim, o governo não fazer a segunda parte do dever de casa, que seria colocar em ação um programa de controle e isolamento social organizado para a complexidade do Brasil. Isso vai gerar uma dívida imensa com pequeno benefício social”, afirma Marcia.
O mais triste, acrescenta, é que o país desperdiçou a chance de ter sido um exemplo no combate à pandemia, já que é um dos poucos países com uma rede de saúde universal (SUS) e possui uma rede de saúde pública que cobre 75% da população brasileira. O governo federal ignorou, entretanto, toda essa rede.
“Desde o primeiro protocolo de manejo da doença, ainda com o [então] ministro [Luiz Henrique] Mandetta, o foco da ação do governo foi o tratamento clínico, e não a ação preventiva”, comenta a professora, que mantém contato com vários grupos de cientistas brasileiros que estudam e procuram contribuir para o combate ao novo coronavírus no Brasil.
Quando se formou em estatística na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 1986, Marcia não se imaginava como professora de Harvard. “Nunca tive essa meta, as coisas foram acontecendo. Hoje estou mais para a música do Zeca Pagodinho: ‘Deixa a vida me levar’”, diz a carioca de 55 anos, filha de um pequeno empresário, imigrante português, criada na Tijuca.
Embora tenha passado os últimos anos nos EUA - dez anos na Universidade Princeton, outra universidade do primeiro time mundial, onde concluiu com louvor o Ph.D., depois em Harvard -, Marcia não se afastou do Brasil. O foco de seus estudos é a malária e doenças transmitidas por mosquitos na Amazônia, para onde viaja continuamente há 20 anos.
Seu trabalho, que une pesquisa de campo (“imprescindível”, ressalta), dados de satélite e cálculos matemáticos, provou a ligação causal da transmissão das doenças com fatores ecológicos, como desmatamentos e avanço da atividade humana na floresta.
Marcia estava se preparando para mais uma viagem à Amazônia em junho, mas teve de cancelar por causa da pandemia. A Universidade Harvard programou retomar as primeiras atividades (dos laboratórios) em setembro. As aulas continuarão a ser remotas, porque a curva da doença está baixando no Estado onde leciona, Massachusetts.
A retomada das atividades é outro problema para o Brasil. Só pode ser feita se houver controle dos infectados, com rede laboratorial capaz de fazer testes rápidos. Se isso não for realizado, há risco de novas ondas da epidemia, e não se sabe com que força. Por enquanto, o Brasil é um dos países que menos faz testes no mundo. “Não tem plano para retomar a atividade econômica. Cadê o plano?”
Como profissional das ciências exatas, ela não se aventura a fazer prognósticos para o Brasil, que é imenso e complexo como os EUA. Em alguns Estados, a curva está baixando, e em outros, subindo. Mas ela assegura que o Brasil ainda não chegou ao pico da doença: nos manteremos nos primeiros lugares do mundo em número de contaminação e mortes. “A curva da doença deve demorar a baixar - até setembro, por exemplo”, diz Marcia.
Até a terça-feira, o país tinha 363.211 casos (segunda posição mundial) e 22.666 mortos, segundo a Organização Mundial da Saúde, que se baseia em dados enviados por governos locais. Os números de contaminação e óbitos divulgados pelo Ministério da Saúde no Brasil podem estar subestimados: “Não me surpreenderia se fossem 10 ou 15 vezes maiores”. Mas isso não é um problema brasileiro; conforme a pesquisadora, há problemas em todos os países. No entanto, os dados oficiais já mostram uma tendência e seriam suficientes para fundamentar decisões na área da saúde pública.
A pandemia só veio escancarar problemas que já existiam no país, observa. Os menores índices de leitos por população do Brasil eram os de Manaus e Macapá. Não por acaso, são os locais de maior letalidade da doença. “A primeira recomendação do Ministério da Saúde (lavar as mãos por 20 segundos) não está ao alcance de muita gente nas comunidades mais pobres.”
Por causa da desigualdade brasileira, o isolamento da população é desafio adicional. Nas favelas e comunidades carentes, onde a concentração nas habitações é grande, as pessoas precisam sair para trabalhar, para ganhar o sustento do dia. “Os agentes de saúde poderiam ter sido acionados para identificar essas pessoas e isolá-las da comunidade. Em hotéis, por exemplo, que estão com os quartos vazios”, afirma. Se isso não for feito, os mais pobres vão ser as maiores vítimas. Há uma correlação clara entre Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e mortalidade, constata.
A professora considera improvável a descoberta de uma vacina antes de um ano e acha um absurdo o tratamento com cloroquina. Para Marcia, um grande exemplo de combate bem-sucedido da doença foi o de Taiwan, ilha com 28 milhões de habitantes que a China reivindica como parte de seu território. Logo após o primeiro anúncio da doença, um comitê de combate foi montado e os passageiros desembarcados nos aeroportos eram testados e isolados, caso apresentassem algum sinal suspeito.
Um problema que ocorre no Brasil, como nos Estados Unidos, são as versões desencontradas das lideranças, ou mesmo a ausência delas. Para Marcia, os presidentes americano, o republicano Donald Trump, e brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido), ocupam os primeiros lugares de piores líderes mundiais no combate à pandemia.
Quando daqui a algum tempo forem escritos livros sobre a atual pandemia, eles vão ter duas partes, prevê a professora. A primeira dedicada a líderes nacionais que conseguiram vencer a doença. A outra dedicada às lideranças ausentes ou desencontradas, que resultaram em desastres para seus países. O Brasil, infelizmente, estará na segunda parte.
Os sinais confusos enviados para a população, que estão causando um isolamento parcial em várias regiões do país, acabam dando munição para os que são contra a medida, segundo Marcia: “Olha aí, estão isolando e não adianta nada”. É o paradoxo da saúde pública, lembra ela: se funciona e morre menos gente, os opositores vão alegar que não precisava daquilo tudo.
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