Pular para o conteúdo principal

Célia de Gouvêa Franco: um repórter contra notícias falsas... em 1933

Em tempos de fake news, o texto da editora do Valor cai como uma luva, saiu no jornal na sexta, 29/5. Saboroso e muito bom o texto.

Qual é o principal papel do jornalista, sua missão primordial? Mais especificamente, quais são os principais deveres e direitos do repórter?
Segundo os dicionários, a palavra “repórter” veio do inglês “to report”, que tem origem, por sua vez, no vocábulo francês medieval “reporteur”, com o sentido de narrador. Mais remotamente, a raiz de “reporteur” é o verbo latino “portare” - trazer do porto, levar ao porto. “Reportare” é uma composição de dois elementos léxicos: “re + portare”. Ou seja, a notícia é “levada” (“portare”) ao repórter que a “leva” ao público novamente (“re-portare”).
Essa é a missão do repórter. Apurar os fatos e relatá-los, mesmo que em condições adversas e enfrentando hostilidade dos governantes de plantão e dos próprios colegas.
Este é também o cerne da história de um jornalista galês, Gareth Jones, que viveu entre 1905 e 1935 (sim, apenas 30 anos). Ele foi o primeiro repórter a publicar relatos em jornais do Ocidente - como “Western Mail”, “The Manchester Guardian” e “New York Evening Post”- sobre a fome na União Soviética no início da década de 1930, contrariando o que alardeava o governo de Joseph Stálin.
É uma história pouco conhecida, mesmo entre jornalistas do Reino Unido, segundo reportagem recente do “The Guardian”, e que foi retratada (com toques de ficção) por outro jornalista do Reino Unido igualmente disposto a enfrentar poderosos de plantão para retratar a realidade.
“The Useful Idiot” foi lançado no início deste ano por John Sweeney, que se destacou como jornalista investigativo, principalmente no jornal “The Observer” e nas séries de programas “Panorama” e “Newsnight”, da BBC, onde trabalhou até outubro de 2019.
O paralelo com a atualidade é óbvio. Em muitos países existem hoje tentativas governamentais de manipular e distorcer informações a favor de quem está no poder. Há também conflitos na forma como jornalistas descrevem os fatos, exacerbados, talvez como nunca na história da imprensa.
Em “The Useful Idiot”, Sweeney reconstrói a vida de Jones, particularmente a temporada que ele passou na então União Soviética. Ele se baseou no que se conhece sobre o jornalista galês, mas escreveu a história como se fosse uma obra de ficção, com alguns personagens inventados por ele e outros que existiram.
Depois de Moscou, Jones foi enviado para China, onde morreu assassinado. Sua família e Sweeney acreditam que foi um crime encomendado pela polícia secreta soviética por ele ter divulgado que havia fome na URSS.
Não foi apenas o governo soviético que garantia não existir problemas de abastecimento no país naquela época. O livro reproduz uma frase de uma matéria publicada em 1933 pelo “New York Times”: “Qualquer informe sobre fome na Rússia é hoje um exagero ou propaganda mal-intencionada”. O autor da reportagem, Walter Duranty, é retratado em “The Useful Idiot” exatamente nesse papel de correspondente do “NYT” na URSS.
A reconstituição da Moscou da década de 1930, os esforços de propaganda do governo de Stálin e a forma como Sweeney adotou na sua narrativa, com a mistura de personagens reais e outros ficcionais, ajudam a tornar atrativa a leitura da obra.
O escritor cria um clima de mistério semelhante a de livros de espionagem. Para isso não há dúvidas de que contribui a descrição de episódios na cidade de Moscou, com um clima opressivo e tenso em vários momentos, e de cenas que se passam em viagens de trem pelo interior do país.
Os jornalistas não são retratados como “mocinhos” contra os “bandidos” dos órgãos governamentais que tentam lubridiá-los com verdadeiras encenações de festas, almoços, jantares com abundância de comida e bebida.
Com sua experiência de décadas sendo correspondente em outros países, Sweeney é hábil em contar situações em que jornalistas se reúnem para falar mal de quem não está por perto, tomar muitas doses de bebidas alcoólicas e pregar peças nos repórteres menos experientes.
Sweeney escreveu 11 livros, entre eles um sobre o período em que passou na Coreia do Norte e outro sobre a igreja da cientologia. Ele contou ao “The Observer” que escreveu “The Useful Idiot” como terapia depois de deixar a BBC.
Um dos muitos episódios que lhe renderam fama e atritos ocorreu em 2013. Ele foi o primeiro jornalista de televisão a confrontar Donald Trump sobre suas ligações com a máfia russa. Assim que ele citou o nome de um ex-sócio de Trump, um mafioso condenado, o futuro presidente americano encerrou a entrevista.
“The Useful Idiot”
John Sweeney. SilverTail Books; 258 págs. Livro eletrônico (em inglês) R$ 12,38 / AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...

Dúvida atroz

A difícil situação em que se encontra hoje o presidente da República, com 51% de avaliação negativa do governo, 54% favoráveis ao impeachment e rejeição eleitoral batendo na casa dos 60%, anima e ao mesmo tempo impõe um dilema aos que articulam candidaturas ditas de centro: bater em quem desde já, Lula ou Bolsonaro?  Há quem já tenha a resposta, como Ciro Gomes (PDT). Há também os que concordam com ele e vejam o ex-presidente como alvo preferencial. Mas há quem prefira investir prioritariamente no derretimento do atual, a ponto de tornar a hipótese de uma desistência — hoje impensável, mas compatível com o apreço presidencial pelo teatro da conturbação — em algo factível. Ao que tudo indica, só o tempo será capaz de construir um consenso. Se for possível chegar a ele, claro. Por ora, cada qual vai seguindo a sua trilha. Os dois personagens posicionados na linha de tiro devido à condição de preferidos nas pesquisas não escondem o desejo de se enfrentar sem os empecilhos de terceira,...