Medida provisória que protege agente público é direito criativo de lunáticos, escreve o jornalista Reinaldo Azevedo em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, publicada na sexta, 14/5. “A medida provisória 966 é escandalosamente inconstitucional. No hospício a que, por hábito, chamamos “governo”, resta só loucura. Foi-se o método. Quer a excludente de ilicitude da pandemia ou o AI-5 do coronavírus. Segundo o texto, os agentes públicos só poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem por dolo ou erro grosseiro”, continua. Segue abaixo.
O texto vale para decisões ligadas à Covid-19, afeitas à saúde e à economia. O que é “erro grosseiro”? Jair Bolsonaro e Paulo Guedes explicam: é o “erro manifesto, evidente e inescusável, praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.” O que esse mar de subjetividade quer dizer? Qualquer coisa. Contra o usuário do serviço estatal.
Dispõe o parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
A inconstitucionalidade da MP, pois, é arreganhada. Poderiam objetar: a responsabilização do Estado na relação com o cidadão resta preservada, o que a MP altera é o “direito de regresso”, que é a possibilidade de o ente estatal, então, acionar o servidor.
Errado! Quando se limita uma demanda ao tal “erro grosseiro” e sua absurda imprecisão, o direito de apresentar uma petição ao Estado vai para o ralo. Sob o pretexto de proteger o servidor, querem criar o habeas corpus preventivo para o Estado.
Sem a evidência do “erro grosseiro” e do “dolo”, legitima-se o ato do ente estatal por ser ente estatal. Lembra o artigo 11 do AI-5: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”. Vale dizer: aquilo a que chamavam “revolução” legitimava o ato, e o ato, tudo o que dele derivasse. Era o círculo perfeito da tirania.
De fato, situações como a da pandemia podem gerar tal receio nos servidores que há o risco do apagão administrativo. Já existem os instrumentos para responder a isso. Um deles é a lei 13.655, de abril de 2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Leiam.
Ela é eficaz, nas esferas civil e administrativa, para proteger o servidor e o Estado de eventuais ações ou decisões judiciais fundadas apenas em “valores jurídicos abstratos, sem que que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Na esfera penal, há a nova lei que pune abuso de autoridade.
No texto da trinca desastrada, está escrito que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”. Ora, o tal “nexo de causalidade” entre a conduta e o resultado danoso é o que comumente se chama “prova”. Não dá!
O presidente, com sua militância irresponsável e dolosa em qualquer esfera, vê se agigantar a montanha de cadáveres, mesmo com a brutal subnotificação. O ministro falha de maneira grotesca num diagnóstico minimamente realista da crise e na assistência a pobres e empresas.
Ambos temem uma avalanche de ações por improbidade administrativa e tentam uma vacina para se proteger. Estão perdidos e vituperando contra os mortos.
O tempo passou na janela, e as Carolinas não viram. Bolsonaro e Guedes têm seus fantasmas debaixo da cama. Num caso, o comunismo; no outro, o nacional-desenvolvimentismo. São, com a licença do Caetano Veloso de 1968, dois combatentes que pretendem matar amanhã velhotes inimigos que morreram ontem. Atrasos distintos e combinados. Suas ideias povoam cemitérios de passado e do presente, literal e metaforicamente.
Como não haverá tanques para atuar como “Deus ex machina” na tragédia dos mortos sem sepultura individual, buscam esbulhar direitos dos vivos para se proteger de sua própria incompetência. Ganharam um necessário Orçamento paralelo de guerra. Agora querem uma Constituição paralela. Não terão.
Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.
O texto vale para decisões ligadas à Covid-19, afeitas à saúde e à economia. O que é “erro grosseiro”? Jair Bolsonaro e Paulo Guedes explicam: é o “erro manifesto, evidente e inescusável, praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.” O que esse mar de subjetividade quer dizer? Qualquer coisa. Contra o usuário do serviço estatal.
Dispõe o parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
A inconstitucionalidade da MP, pois, é arreganhada. Poderiam objetar: a responsabilização do Estado na relação com o cidadão resta preservada, o que a MP altera é o “direito de regresso”, que é a possibilidade de o ente estatal, então, acionar o servidor.
Errado! Quando se limita uma demanda ao tal “erro grosseiro” e sua absurda imprecisão, o direito de apresentar uma petição ao Estado vai para o ralo. Sob o pretexto de proteger o servidor, querem criar o habeas corpus preventivo para o Estado.
Sem a evidência do “erro grosseiro” e do “dolo”, legitima-se o ato do ente estatal por ser ente estatal. Lembra o artigo 11 do AI-5: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”. Vale dizer: aquilo a que chamavam “revolução” legitimava o ato, e o ato, tudo o que dele derivasse. Era o círculo perfeito da tirania.
De fato, situações como a da pandemia podem gerar tal receio nos servidores que há o risco do apagão administrativo. Já existem os instrumentos para responder a isso. Um deles é a lei 13.655, de abril de 2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Leiam.
Ela é eficaz, nas esferas civil e administrativa, para proteger o servidor e o Estado de eventuais ações ou decisões judiciais fundadas apenas em “valores jurídicos abstratos, sem que que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Na esfera penal, há a nova lei que pune abuso de autoridade.
No texto da trinca desastrada, está escrito que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”. Ora, o tal “nexo de causalidade” entre a conduta e o resultado danoso é o que comumente se chama “prova”. Não dá!
O presidente, com sua militância irresponsável e dolosa em qualquer esfera, vê se agigantar a montanha de cadáveres, mesmo com a brutal subnotificação. O ministro falha de maneira grotesca num diagnóstico minimamente realista da crise e na assistência a pobres e empresas.
Ambos temem uma avalanche de ações por improbidade administrativa e tentam uma vacina para se proteger. Estão perdidos e vituperando contra os mortos.
O tempo passou na janela, e as Carolinas não viram. Bolsonaro e Guedes têm seus fantasmas debaixo da cama. Num caso, o comunismo; no outro, o nacional-desenvolvimentismo. São, com a licença do Caetano Veloso de 1968, dois combatentes que pretendem matar amanhã velhotes inimigos que morreram ontem. Atrasos distintos e combinados. Suas ideias povoam cemitérios de passado e do presente, literal e metaforicamente.
Como não haverá tanques para atuar como “Deus ex machina” na tragédia dos mortos sem sepultura individual, buscam esbulhar direitos dos vivos para se proteger de sua própria incompetência. Ganharam um necessário Orçamento paralelo de guerra. Agora querem uma Constituição paralela. Não terão.
Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.
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