A pandemia não ressuscitou Camus porque ele nunca foi enterrado. Na França, é adotado no secundário e os críticos o pintam com a auréola neoclássica, a que coroa o estilo elevado e convencional —e que na hora do vamos ver disfarça com palavras sonoras a substância pálida.
Precisamente por ser vistoso e contido como um cavalo de parada, Sarkozy, ponta de lança da direita arrivista, tentou levar Camus ao altar dos grandes homens da pátria, o Panthéon. Como a ideia foi recebida com ânimo glacial por todas as correntes literárias, Sarkô logo a abandonou, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna na Folha de São Paulo, publicada aos sábados no jornal. Continua abaixo, vale a leitura porque Camus realmente marcou uma época.
Já o atento Chirac, líder da direita pijamão, alçou o popular —e mestiço— Dumas ao Panthéon. E Macron, janotinha da direita sapatênis, pôs uma mulher na roda dos machos: Simone Weil, deportada para Auschwitz, ministra da Saúde e patrona da lei que autoriza o aborto.
Só agora o sossegado Camus tremeluziu na lista dos mais vendidos da Amazon.
Como se o crescimento das vendas de “A Peste” espelhasse o dos mortos na peste atual, Jacqueline Rose teve o mau gosto de compará-los, para então afirmar que uma peste explicava a outra.
Mas as semelhanças são tênues. “A Peste” não trata de uma moléstia física, ainda que romanceada. Escrito na Segunda Guerra e publicado em 1947, o livro é tido desde então por uma alegoria da ocupação da França. Os ratos que provocam a mortandade são os nazis e seus “colabôs”.
A alegoria de um trauma recentíssimo explica o sucesso do romance no pós-Guerra, bem como as restrições de críticos diversos. Breton e Barthes, por exemplo, encrencaram com a redução de um evento histórico e político a uma doença natural, a um pretexto para uma fábula moralizante.
O narrador de “A Peste” é durão, silencioso, taciturno. Alter ego do escritor, que usava a capa de chuva e até fumava como Humphrey Bogart, Rieux encarna a solitária revolta moral, que Camus contrapõe ao engajamento político e coletivo.
O romance, pois, pertence ao universo intelectual da transição da guerra quente para a fria, da oscilação entre a denúncia da União Soviética stalinista e o alinhamento ao império americano. Camus pertence ao clã do George Orwell de “1984” e do Arthur Koestler de “O Zero e o Infinito”.
Viera da miséria argelina —o pai morrera na Primeira Guerra e a mãe era analfabeta. Militara no PCF e fora expulso por trotskismo. Publicara a obra-prima “O Estrangeiro”. No final da ocupação, editara Combat, jornal da resistência.
Era um artista vivido e maduro.
E jovem: tinha 33 anos quando “A Peste” foi best-seller. Recusou a Legião de Honra e a Academia, tornou-se um sedutor que tinha Saint-Germain-de-Près a seus pés. Daí a má vontade com a melosa filosofia do romance: “Há no homem mais coisas a admirar do que a desprezar”.
Com o passar dos anos, o acomodamento de Camus conviveu com o anárquico impulso artístico. “O Homem Revoltado”, ensaio de 1951, é uma defesa da resistência individual contra ameaças à liberdade escolhidas a dedo: Robespierre, Marx, a revolução bolchevique.
Sartre o criticou com precisão. Disse que Camus escrevia com pompa desconcertante, manipulava sua indignação e exaltava a própria “beleza moral”. Concluía: “A República das Belas Almas deveria nomeá-lo Promotor-Mor”. Camus caiu numa depressão abissal.
Só saiu da fossa com “A Queda”, romance de 1956. Nele, Jean-Baptiste Clamence clama pela liberdade no deserto de um bar. E ela lhe surge na forma do negro remorso pelo passado de superficialidade, de retórica caprichosa, de revolta fingida que visava à glória do revoltado.
Camus ataca em “A Queda” seus ex-companheiros socialistas. Mas critica primeiro a si mesmo, seu conformismo em escrever bem, seu recurso à moral, sua incapacidade político-imaginativa. Dialético, ataca sua própria eloquência com eloquência inatacável.
A queda para valer veio no ano seguinte, numa de suas configurações mais torpes: a glória. Tinha 37 anos quando ganhou o Nobel e foi à Suécia recebê-lo. Tudo ia bem até que foi confrontado por um estudante argelino na Universidade de Estocolmo.
O jovem cobrou sua posição na luta pela independência da Argélia, liderada pela Frente de Libertação Nacional, que fazia atentados terroristas e era massacrada —com assassinatos e tortura— pelo Exército francês.
Camus respondeu: “Em Argel, agora põem bombas em bondes. Minha mãe pode estar num desses bondes. Se isso é a justiça, fico com minha mãe”. Bolsonaro não faria defesa melhor da superioridade de si, e dos seus, sobre os outros.
Mario Sergio Conti é jornalista e autor de "Notícias do Planalto".
Precisamente por ser vistoso e contido como um cavalo de parada, Sarkozy, ponta de lança da direita arrivista, tentou levar Camus ao altar dos grandes homens da pátria, o Panthéon. Como a ideia foi recebida com ânimo glacial por todas as correntes literárias, Sarkô logo a abandonou, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna na Folha de São Paulo, publicada aos sábados no jornal. Continua abaixo, vale a leitura porque Camus realmente marcou uma época.
Já o atento Chirac, líder da direita pijamão, alçou o popular —e mestiço— Dumas ao Panthéon. E Macron, janotinha da direita sapatênis, pôs uma mulher na roda dos machos: Simone Weil, deportada para Auschwitz, ministra da Saúde e patrona da lei que autoriza o aborto.
Só agora o sossegado Camus tremeluziu na lista dos mais vendidos da Amazon.
Como se o crescimento das vendas de “A Peste” espelhasse o dos mortos na peste atual, Jacqueline Rose teve o mau gosto de compará-los, para então afirmar que uma peste explicava a outra.
Mas as semelhanças são tênues. “A Peste” não trata de uma moléstia física, ainda que romanceada. Escrito na Segunda Guerra e publicado em 1947, o livro é tido desde então por uma alegoria da ocupação da França. Os ratos que provocam a mortandade são os nazis e seus “colabôs”.
A alegoria de um trauma recentíssimo explica o sucesso do romance no pós-Guerra, bem como as restrições de críticos diversos. Breton e Barthes, por exemplo, encrencaram com a redução de um evento histórico e político a uma doença natural, a um pretexto para uma fábula moralizante.
O narrador de “A Peste” é durão, silencioso, taciturno. Alter ego do escritor, que usava a capa de chuva e até fumava como Humphrey Bogart, Rieux encarna a solitária revolta moral, que Camus contrapõe ao engajamento político e coletivo.
O romance, pois, pertence ao universo intelectual da transição da guerra quente para a fria, da oscilação entre a denúncia da União Soviética stalinista e o alinhamento ao império americano. Camus pertence ao clã do George Orwell de “1984” e do Arthur Koestler de “O Zero e o Infinito”.
Viera da miséria argelina —o pai morrera na Primeira Guerra e a mãe era analfabeta. Militara no PCF e fora expulso por trotskismo. Publicara a obra-prima “O Estrangeiro”. No final da ocupação, editara Combat, jornal da resistência.
Era um artista vivido e maduro.
E jovem: tinha 33 anos quando “A Peste” foi best-seller. Recusou a Legião de Honra e a Academia, tornou-se um sedutor que tinha Saint-Germain-de-Près a seus pés. Daí a má vontade com a melosa filosofia do romance: “Há no homem mais coisas a admirar do que a desprezar”.
Com o passar dos anos, o acomodamento de Camus conviveu com o anárquico impulso artístico. “O Homem Revoltado”, ensaio de 1951, é uma defesa da resistência individual contra ameaças à liberdade escolhidas a dedo: Robespierre, Marx, a revolução bolchevique.
Sartre o criticou com precisão. Disse que Camus escrevia com pompa desconcertante, manipulava sua indignação e exaltava a própria “beleza moral”. Concluía: “A República das Belas Almas deveria nomeá-lo Promotor-Mor”. Camus caiu numa depressão abissal.
Só saiu da fossa com “A Queda”, romance de 1956. Nele, Jean-Baptiste Clamence clama pela liberdade no deserto de um bar. E ela lhe surge na forma do negro remorso pelo passado de superficialidade, de retórica caprichosa, de revolta fingida que visava à glória do revoltado.
Camus ataca em “A Queda” seus ex-companheiros socialistas. Mas critica primeiro a si mesmo, seu conformismo em escrever bem, seu recurso à moral, sua incapacidade político-imaginativa. Dialético, ataca sua própria eloquência com eloquência inatacável.
A queda para valer veio no ano seguinte, numa de suas configurações mais torpes: a glória. Tinha 37 anos quando ganhou o Nobel e foi à Suécia recebê-lo. Tudo ia bem até que foi confrontado por um estudante argelino na Universidade de Estocolmo.
O jovem cobrou sua posição na luta pela independência da Argélia, liderada pela Frente de Libertação Nacional, que fazia atentados terroristas e era massacrada —com assassinatos e tortura— pelo Exército francês.
Camus respondeu: “Em Argel, agora põem bombas em bondes. Minha mãe pode estar num desses bondes. Se isso é a justiça, fico com minha mãe”. Bolsonaro não faria defesa melhor da superioridade de si, e dos seus, sobre os outros.
Mario Sergio Conti é jornalista e autor de "Notícias do Planalto".
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