Pioneiro do gênero, idolatrado pelos Beatles a David Bowie, inspirou uma geração que sem ele não teria trilhado o caminho da liberdade pregado pelo rock n’roll, escreve Diego A. Manrique em artigo publicado no El País no dia 9/5. Um belo obituário de um gigante. Na íntegra, abaixo.
O rock n’roll, quando se manifestou em meados da década de cinquenta, trazia promessas de libertação. No entanto, Little Richard, que morreu neste sábado aos 87 anos, já tinha sido libertado quando os holofotes se voltaram para ele. Nascido em Macon, no Estado da Geórgia (EUA), em 1932, cresceu em uma família numerosa com fortes crenças religiosas. Exuberante demais para um meio tão pacato, foi expulso de casa quando ainda era adolescente. E não voltou até completar vinte anos, depois do assassinato do pai, quando teve de contribuir com o orçamento familiar, mesmo que fosse lavando pratos na rodoviária de Macon (por outro lado, um bom lugar para paquerar, reconheceu).
Naqueles dias, um homossexual podia se integrar sem problemas ao submundo dos “medicine shows” (espetáculos em que charlatães vendiam “remédios milagrosos”) e das casas noturnas mais libertinas do chamado chitlin’ circuit. Gravou discos avulsos para a RCA e a Peacock quando ainda não tinha um estilo definido: para conseguir essa diferenciação foram essenciais os ensinamentos de Esquerita, um selvagem do piano vindo da Carolina do Sul, que também dominava as artes da maquiagem, dos penteados e da indumentária de fantasia.
Richard Wayne Penniman tinha uma banda própria eficaz, os Upsetters, mas o selo californiano Specialty exigiu que gravasse em Nova Orleans. Lá, no agora mítico estúdio de Cossimo Matassa, sob a direção de Bumps Blackwell, com instrumentistas que trabalhavam regularmente para Fats Domino, aconteceu uma espécie de fusão nuclear: Tutti Frutti (1956), com seu delirante grito de “A-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom”, que mais tarde daria título a um livro memorável de Nik Cohn.
Tutti Frutti foi ofuscada, como era habitual então, pela versão asseptizada de um cantor branco, Pat Boone. Mas entre 1956 e 1957 Little Richard estava incandescente: a cada poucas semanas lançava singles irresistíveis, frequentemente reforçados por lados B ―Slippin’ and Slidin, Ready Teddy― que também alcançaram enorme popularidade. Seus shows eram terremotos e algo disso se nota em Sabes o que Quero, um filme disparatado que misturava Jane Mansfield com algumas das figuras do emergente rock n’roll. Sem explicitá-lo, pregava a possibilidade de ser sexualmente diferente. Do outro lado do Atlântico, um futuro camaleão, David Bowie, entendeu imediatamente a mensagem.
Tudo mudou de rumo em 1957, em uma turnê pela Austrália, quando durante um voo noturno achou que tinha visto uma luz celestial ―segundo seus companheiros, poderia ser o combustível do próprio avião ou inclusive do Sputnik soviético― algo que interpretou como uma mensagem divina que o instava a se arrepender dos pecados e voltar à música de igreja. A verdade é que a gravadora continuou lançando avassaladoras canções profanas, como Good Golly Miss Golly e Oh My Soul. Somente em 1959, depois de se formar pregador batista em uma escola no Alabama e de se casar com Ernestine Harvin, começou a gravar gospel. Sem muita sorte, apesar de ter produtores como Jerry Wexler e Quincy Jones.
Os Beatles o salvaram da irrelevância. Idolatrado especialmente por Paul McCartney, os ingleses interpretaram temas dele (ou que haviam descoberto em sua voz, caso de Kansas City). Pouco a pouco Little Richard entendeu que podia ganhar a vida no nascente circuito da nostalgia, onde só precisava recriar seus sucessos e exagerar seus maneirismos. Não tolerava concorrentes: desistiu dos serviços guitarrísticos de um ainda desconhecido Jimi Hendrix por sua espetacularidade cênica. Anos depois, tampouco teria conexão com Prince, que era visualmente seu descendente.
Mas Little Richard acreditava ser capaz de fazer música do momento, especialmente soul. Embora não tenham ocupado o topo das paradas se sucesso, durante os anos sessenta e início dos setenta, já instalado em Los Angeles, fez grandes canções com Don & Dewey, Johnny Guitar Watson, H. B. Barnum, Don Covay e ―o mais perigoso de todos― Larry Williams. Como contaria em sua fantasiosa biografia, Quasar of Rock, é quase um milagre que Richard e Williams tenham evitado sérios aborrecimentos com policiais, traficantes e amantes despeitados.
Houve recaídas nas drogas e em sua muito flexível religião, até que em meados dos anos oitenta estabeleceu-se em Hollywood. Conseguiu fazer pontas em filmes de sucesso e se transformou em algo como o pastor favorito das celebridades, especializado em unir casais em matrimônio, com ambientação de rock n’roll. Podia entender melhor as extravagâncias dos milionários californianos do que os jogos do glam rock a partir da identidade sexual. De fato, durante temporadas detestou seu papel de ídolo gay: “Fazia isso para que os brancos aceitassem que era capaz de comover suas namoradas”.
Diante da indiferença do mercado, abandonou a gravação de discos, mas não os shows. Pude vê-lo em ação em um festival realizado em Gijón (Espanha) em 2005, quando esgotou a paciência dos organizadores ao exigir as chaves de uma igreja onde pudesse rezar em solidão. Para ir do camarim até o palco pediu um carro de luxo que chacoalhava por um terreno montanhoso, sem estradas. É verdade que, uma vez que encarou o público, parecia entrar em combustão. Como seus espectadores, que sentiram seus corpos renascerem. Esse era o verdadeiro prodígio do reverendo Penniman.
O rock n’roll, quando se manifestou em meados da década de cinquenta, trazia promessas de libertação. No entanto, Little Richard, que morreu neste sábado aos 87 anos, já tinha sido libertado quando os holofotes se voltaram para ele. Nascido em Macon, no Estado da Geórgia (EUA), em 1932, cresceu em uma família numerosa com fortes crenças religiosas. Exuberante demais para um meio tão pacato, foi expulso de casa quando ainda era adolescente. E não voltou até completar vinte anos, depois do assassinato do pai, quando teve de contribuir com o orçamento familiar, mesmo que fosse lavando pratos na rodoviária de Macon (por outro lado, um bom lugar para paquerar, reconheceu).
Naqueles dias, um homossexual podia se integrar sem problemas ao submundo dos “medicine shows” (espetáculos em que charlatães vendiam “remédios milagrosos”) e das casas noturnas mais libertinas do chamado chitlin’ circuit. Gravou discos avulsos para a RCA e a Peacock quando ainda não tinha um estilo definido: para conseguir essa diferenciação foram essenciais os ensinamentos de Esquerita, um selvagem do piano vindo da Carolina do Sul, que também dominava as artes da maquiagem, dos penteados e da indumentária de fantasia.
Richard Wayne Penniman tinha uma banda própria eficaz, os Upsetters, mas o selo californiano Specialty exigiu que gravasse em Nova Orleans. Lá, no agora mítico estúdio de Cossimo Matassa, sob a direção de Bumps Blackwell, com instrumentistas que trabalhavam regularmente para Fats Domino, aconteceu uma espécie de fusão nuclear: Tutti Frutti (1956), com seu delirante grito de “A-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom”, que mais tarde daria título a um livro memorável de Nik Cohn.
Tutti Frutti foi ofuscada, como era habitual então, pela versão asseptizada de um cantor branco, Pat Boone. Mas entre 1956 e 1957 Little Richard estava incandescente: a cada poucas semanas lançava singles irresistíveis, frequentemente reforçados por lados B ―Slippin’ and Slidin, Ready Teddy― que também alcançaram enorme popularidade. Seus shows eram terremotos e algo disso se nota em Sabes o que Quero, um filme disparatado que misturava Jane Mansfield com algumas das figuras do emergente rock n’roll. Sem explicitá-lo, pregava a possibilidade de ser sexualmente diferente. Do outro lado do Atlântico, um futuro camaleão, David Bowie, entendeu imediatamente a mensagem.
Tudo mudou de rumo em 1957, em uma turnê pela Austrália, quando durante um voo noturno achou que tinha visto uma luz celestial ―segundo seus companheiros, poderia ser o combustível do próprio avião ou inclusive do Sputnik soviético― algo que interpretou como uma mensagem divina que o instava a se arrepender dos pecados e voltar à música de igreja. A verdade é que a gravadora continuou lançando avassaladoras canções profanas, como Good Golly Miss Golly e Oh My Soul. Somente em 1959, depois de se formar pregador batista em uma escola no Alabama e de se casar com Ernestine Harvin, começou a gravar gospel. Sem muita sorte, apesar de ter produtores como Jerry Wexler e Quincy Jones.
Os Beatles o salvaram da irrelevância. Idolatrado especialmente por Paul McCartney, os ingleses interpretaram temas dele (ou que haviam descoberto em sua voz, caso de Kansas City). Pouco a pouco Little Richard entendeu que podia ganhar a vida no nascente circuito da nostalgia, onde só precisava recriar seus sucessos e exagerar seus maneirismos. Não tolerava concorrentes: desistiu dos serviços guitarrísticos de um ainda desconhecido Jimi Hendrix por sua espetacularidade cênica. Anos depois, tampouco teria conexão com Prince, que era visualmente seu descendente.
Mas Little Richard acreditava ser capaz de fazer música do momento, especialmente soul. Embora não tenham ocupado o topo das paradas se sucesso, durante os anos sessenta e início dos setenta, já instalado em Los Angeles, fez grandes canções com Don & Dewey, Johnny Guitar Watson, H. B. Barnum, Don Covay e ―o mais perigoso de todos― Larry Williams. Como contaria em sua fantasiosa biografia, Quasar of Rock, é quase um milagre que Richard e Williams tenham evitado sérios aborrecimentos com policiais, traficantes e amantes despeitados.
Houve recaídas nas drogas e em sua muito flexível religião, até que em meados dos anos oitenta estabeleceu-se em Hollywood. Conseguiu fazer pontas em filmes de sucesso e se transformou em algo como o pastor favorito das celebridades, especializado em unir casais em matrimônio, com ambientação de rock n’roll. Podia entender melhor as extravagâncias dos milionários californianos do que os jogos do glam rock a partir da identidade sexual. De fato, durante temporadas detestou seu papel de ídolo gay: “Fazia isso para que os brancos aceitassem que era capaz de comover suas namoradas”.
Diante da indiferença do mercado, abandonou a gravação de discos, mas não os shows. Pude vê-lo em ação em um festival realizado em Gijón (Espanha) em 2005, quando esgotou a paciência dos organizadores ao exigir as chaves de uma igreja onde pudesse rezar em solidão. Para ir do camarim até o palco pediu um carro de luxo que chacoalhava por um terreno montanhoso, sem estradas. É verdade que, uma vez que encarou o público, parecia entrar em combustão. Como seus espectadores, que sentiram seus corpos renascerem. Esse era o verdadeiro prodígio do reverendo Penniman.
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