Pular para o conteúdo principal

Atila Iamarino: Brasil reabre sem fazer lição de casa

A Europa reabre. Espanhóis e italianos voltam a circular. Ingleses voltam a dirigir. Em comum, os países têm algumas coisas: o sol e o interesse no movimento econômico do verão, mas também a diminuição do número de casos, escreve Atila Iamarino em artigo publicado dia 29/5 na Folha de S. Paulo. Continua a seguir, vale muito a leitura!

Adotaram isolamento social efetivo e seus líderes comunicaram claramente a importância da população seguir essas medidas. Reduziram o número de pessoas que alguém com o coronavírus infecta para menos de 1 na média (o famoso R0). Com menos de uma pessoa infectada por outra, o número de casos entra em declínio e o surto local entra em controle.
Um controle bem tênue. Coreia do Sul, Singapura e China que o digam, enquanto afinam o balanço entre retomar a economia e conter o aumento de casos acompanhados na base de muito, muito teste.
Já o Brasil ensaia a reabertura como europeus fazem. Alguns certamente já se preparam para vestir calça social pela primeira vez em meses. Só estamos ignorando uma etapa, um detalhe, que calha de ser o principal: o controle da pandemia.
Claro, algumas cidades –alguns estados até– gozam de leitos de UTI vazios e poucos casos de Covid-19. Mas, ao contrário de países como Portugal, que na falta de leitos e de estrutura como seus vizinhos, faz uma das maiores quantidades de testes por habitantes da Europa, nós não fizemos a lição de casa. Mesmo testando miseravelmente pouco, não reduzimos o número de novos casos. O oposto. Nos tornamos o segundo país em casos e o primeiro em mortes por dia, em um regime ascendente.
Parecemos competir por um escândalo que chame mais atenção do que esses números. Enquanto isso, vamos escolhendo índices menos piores. Se considerarmos mortes por milhão de habitantes, ainda estamos bem abaixo dos países europeus. Como se só a perda de muito mais vidas justificasse ação.
A cidade do Rio resolveu parar de contar mortos com diagnóstico positivo para coronavírus após o óbito. O equivalente a colar uma fita preta cobrindo o alerta de avião caindo para ele não incomodar.
Já no Amazonas, o índice de controle da situação foi a queda do número de enterros. Sem testes para saber quem tem o coronavírus ou simplesmente quem morreu de Covid-19, usam o sinal de perda de controle como medida. O equivalente a usar a luz de alerta para iluminar a cabine e tentar enxergar um caminho.
Reabrimos como lá, enquanto cá os números só aumentam. Richard Feynman, físico nobelista marcante, conta em sua autobiografia sobre a ciência culto à carga, quando se segue um ritual sem mudar causas. O termo vem da simplificação de um fenômeno real. Quando nativos de ilhas ocupadas no Pacífico viram aviões pousando e desembarcando comida e manufaturados, começaram a construir pistas de pouso e até torres de controle de madeira e bambu, na esperança de atrair a carga vinda dos céus. Como nós fizemos por aqui, ao tratar de abertura sem queda consistente de casos diários. Repetimos gráficos, projetamos possíveis picos que só se manifestariam se estivéssemos restringindo mais as pessoas e não fazendo o oposto. Tomamos curas milagrosas que o mundo abandona, enquanto somos o novo polo mundial de Covid-19, antes de relaxar medidas. Que dirá depois.
Sem resolver o contágio, essa retomada é um voo de galinha até precisarmos fechar de vez pois hospitais colapsaram, funcionários ficaram doentes e perderam parentes, sem pensar que um fechamento nesse tipo de condição precisa ser mais sério e durar mais tempo. Até agora, a medida mais efetiva para reduzir o número de casos que o país tomou vem sendo fazer poucos testes. Que a próxima medida não seja sumir com os números de vez, para tentar trazer o avião do PIB.
Atila Iamarino é doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...