Países emergentes na Ásia e na América Latina têm tido resultados diferentes em suas experiências de confinamento, escreve Ana Rosa Alves em matéria publicada na edição desta semana na revista. Na íntegra, abaixo.
“Existe alguém na Índia que não admire a China?” A pergunta foi feita por Yi Jing, um chinês que foi estudar medicina na região nordeste da Índia no século VII, uma prova da milenar admiração mútua e também da rivalidade entre os vizinhos asiáticos. Nos últimos anos, a disputa entre os dois países rendeu debates acalorados e dezenas de livros sobre qual seria o melhor sistema político e a estratégia de crescimento econômico mais eficaz. O mais recente capítulo nessa história é a comparação das respostas dos dois países no combate à pandemia do novo coronavírus — uma discussão que pode ser útil ao Brasil no momento em que cidades e estados por aqui começam a adotar medidas como o lockdown.
A China é alvo de críticas por não ter combatido de forma eficaz a existência de feiras de alimentos em que se vendem animais vivos, onde se acredita que tenha surgido o novo coronavírus, e por ter acobertado os primeiros casos da doença que apareceram na cidade de Wuhan, na província de Hubei. Mas numa coisa os chineses parecem ter acertado. As medidas adotadas pelas autoridades chinesas a partir de meados de janeiro acabaram sendo uma prévia do que se veria mais tarde em outras partes do mundo. Entre o final de janeiro e o começo de abril, milhões de chineses das áreas mais afetadas foram mantidos em casa, o que permitiu uma brutal queda no número de casos. Enquanto partes da China reabriam no mês passado, 58% da população mundial — mais de 4,5 bilhões de pessoas, segundo a contabilização feita pela agência de notícias AFP — estavam orientadas a permanecer em casa. Para 2,9 bilhões dessas pessoas, havia ordens expressas de lockdown, com descumprimento passível de punição. Sair para a rua, apenas para comprar remédios, mantimentos ou buscar atendimento médico.
Na Índia, onde cerca de 1,3 bilhão de pessoas estão no maior lockdown do planeta desde 25 de março, os resultados têm sido mais problemáticos. Desigualdade, pobreza e incapacidade do governo de fazer o apoio necessário chegar aos mais vulneráveis têm sido imensos obstáculos. Na economia indiana, o trabalho registrado formalmente representa apenas cerca de 10% do total — o que localmente é chamado de “setor organizado”. Os 90% restantes são trabalhadores informais, gente que precisa sair de casa para garantir a comida do dia e o dinheiro do aluguel. Quando demitidos, saem sem nenhum tipo de compensação. Um sinal de que o desemprego dos mais pobres está subindo rapidamente é uma nova onda de migração interna.
Sem fonte de renda e com a circulação de trens e ônibus interrompida, milhares de pessoas são vistas pelas estradas a pé. Andam centenas de quilômetros e dormem ao relento na tentativa de chegar em casa. Até agora, quase 200 já morreram em acidentes. No Twitter, circulam vídeos capturados no estado de Uttar Pradesh que mostram policiais humilhando migrantes, obrigando-os a caminhar como sapos. Outras imagens mostram pessoas que foram forçadas a segurar cartazes tachando-as de “inimigas da sociedade”, por supostamente estarem levando o vírus para novos lugares.
Assim que a China iniciou as quarentenas e lockdowns, vários analistas no Ocidente não tardaram a declarar que aquilo só era possível numa ditadura, o que logo se comprovou incorreto. Esse erro de leitura da realidade, no entanto, não encerrou o debate sobre que sistema político seria capaz de dar as melhores respostas. Foi preciso o cientista político Francis Fukuyama, professor na Universidade Stanford, escrever um artigo na imprensa americana para esclarecer que não se trata de um concurso de beleza entre democracias e ditaduras. “A boa performance não depende do tipo de regime político, mas da capacidade de entrega do Estado e, acima de tudo, na confiança no governo”, escreveu Fukuyama. Em resumo, alguns países autocráticos estão fazendo a coisa certa, outros não — exatamente como está acontecendo entre as democracias.
A Índia, até o momento, aparece no grupo das democracias que estão indo mal. “Se medidas de segurança alimentar tivessem sido implementadas, se esquemas de proteção de salários tivessem sido anunciados, a Índia não teria visto esta crise com migrantes, que marcham para suas casas na ordem dos milhares”, disse Meenakshi Ganguly, diretora da organização de direitos humanos Human Rights Watch no Sul da Ásia. Problemas de planejamento e de execução das medidas de socorro estão entre os principais erros. Fora isso, relatos de excesso de força policial para impor o lockdown também são usuais. Em Bengala Ocidental, estado no oeste, há notícia de um homem que teria sido espancado até a morte ao sair para comprar comida.
Em democracias latino-americanas também foram registrados incidentes com a polícia. Moradores de bairros pobres de Santiago, no Chile, e Bogotá, na Colômbia, entraram em confronto com a tropa de choque durante protestos contra a falta de alimentos, demandando mais ajuda governamental. Na Colômbia, bandeiras e pedaços de pano vermelhos são pendurados em janelas, sinal de que ali há pessoas passando fome. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 53% da população economicamente ativa da América Latina atua na informalidade. O percentual é inferior ao indiano, mas, ainda assim, exige uma forte rede de proteção estatal aos mais pobres. No Brasil, os programas de apoio às micro e pequenas empresas têm recebido críticas por seguirem o velho modelo “grandes anúncios, pequena entrega”. Atrasos na ajuda de R$ 600 aos mais vulneráveis também são registrados diariamente.
Mesmo na Europa, a implementação do confinamento total não foi livre de problemas. Na Itália, cujo lockdown se prorrogou por quase dois meses, mais de 100 mil multas de até € 5 mil foram aplicadas a quem descumpriu as regras. Nas redes sociais, viralizaram vídeos de prefeitos irritados com cidadãos que continuavam a sair às ruas. “Veja, isto não é um filme. Você não é o Will Smith em Eu sou a lenda. Vá para casa”, disse em um deles Giuseppe Falcomatà, prefeito de Reggio Calabria, no sul do país.
Ironicamente, foi na Itália, país que chegou a ser um dos epicentros da Covid-19, que o isolamento se consolidou como uma tática de combate à peste, entre os séculos XV a XVII. Na época uma das regiões mais ricas e urbanizadas do planeta, as grandes cidades italianas se viram forçadas a aplicar medidas de contenção, mitigação e quarentena para se proteger. “Nesse período, os sistemas de saúde das principais cidades italianas se comunicavam por cartas, informando uns aos outros sobre as situações de seus territórios”, afirmou John Henderson, autor do livro Florence under siege — Surviving plague in an early modern city (Florença sitiada — Sobrevivendo à peste numa das primeiras cidades modernas, numa tradução livre). “Com isso, sabiam quando a peste chegaria. Florença, por exemplo, soube com seis meses de antecedência”, disse Henderson, professor na Universidade de Londres. Para forçar as pessoas a respeitar o lockdown, as autoridades em Milão chegaram a ameaçar os infratores com pena de morte.
“Existe alguém na Índia que não admire a China?” A pergunta foi feita por Yi Jing, um chinês que foi estudar medicina na região nordeste da Índia no século VII, uma prova da milenar admiração mútua e também da rivalidade entre os vizinhos asiáticos. Nos últimos anos, a disputa entre os dois países rendeu debates acalorados e dezenas de livros sobre qual seria o melhor sistema político e a estratégia de crescimento econômico mais eficaz. O mais recente capítulo nessa história é a comparação das respostas dos dois países no combate à pandemia do novo coronavírus — uma discussão que pode ser útil ao Brasil no momento em que cidades e estados por aqui começam a adotar medidas como o lockdown.
A China é alvo de críticas por não ter combatido de forma eficaz a existência de feiras de alimentos em que se vendem animais vivos, onde se acredita que tenha surgido o novo coronavírus, e por ter acobertado os primeiros casos da doença que apareceram na cidade de Wuhan, na província de Hubei. Mas numa coisa os chineses parecem ter acertado. As medidas adotadas pelas autoridades chinesas a partir de meados de janeiro acabaram sendo uma prévia do que se veria mais tarde em outras partes do mundo. Entre o final de janeiro e o começo de abril, milhões de chineses das áreas mais afetadas foram mantidos em casa, o que permitiu uma brutal queda no número de casos. Enquanto partes da China reabriam no mês passado, 58% da população mundial — mais de 4,5 bilhões de pessoas, segundo a contabilização feita pela agência de notícias AFP — estavam orientadas a permanecer em casa. Para 2,9 bilhões dessas pessoas, havia ordens expressas de lockdown, com descumprimento passível de punição. Sair para a rua, apenas para comprar remédios, mantimentos ou buscar atendimento médico.
Na Índia, onde cerca de 1,3 bilhão de pessoas estão no maior lockdown do planeta desde 25 de março, os resultados têm sido mais problemáticos. Desigualdade, pobreza e incapacidade do governo de fazer o apoio necessário chegar aos mais vulneráveis têm sido imensos obstáculos. Na economia indiana, o trabalho registrado formalmente representa apenas cerca de 10% do total — o que localmente é chamado de “setor organizado”. Os 90% restantes são trabalhadores informais, gente que precisa sair de casa para garantir a comida do dia e o dinheiro do aluguel. Quando demitidos, saem sem nenhum tipo de compensação. Um sinal de que o desemprego dos mais pobres está subindo rapidamente é uma nova onda de migração interna.
Sem fonte de renda e com a circulação de trens e ônibus interrompida, milhares de pessoas são vistas pelas estradas a pé. Andam centenas de quilômetros e dormem ao relento na tentativa de chegar em casa. Até agora, quase 200 já morreram em acidentes. No Twitter, circulam vídeos capturados no estado de Uttar Pradesh que mostram policiais humilhando migrantes, obrigando-os a caminhar como sapos. Outras imagens mostram pessoas que foram forçadas a segurar cartazes tachando-as de “inimigas da sociedade”, por supostamente estarem levando o vírus para novos lugares.
Assim que a China iniciou as quarentenas e lockdowns, vários analistas no Ocidente não tardaram a declarar que aquilo só era possível numa ditadura, o que logo se comprovou incorreto. Esse erro de leitura da realidade, no entanto, não encerrou o debate sobre que sistema político seria capaz de dar as melhores respostas. Foi preciso o cientista político Francis Fukuyama, professor na Universidade Stanford, escrever um artigo na imprensa americana para esclarecer que não se trata de um concurso de beleza entre democracias e ditaduras. “A boa performance não depende do tipo de regime político, mas da capacidade de entrega do Estado e, acima de tudo, na confiança no governo”, escreveu Fukuyama. Em resumo, alguns países autocráticos estão fazendo a coisa certa, outros não — exatamente como está acontecendo entre as democracias.
A Índia, até o momento, aparece no grupo das democracias que estão indo mal. “Se medidas de segurança alimentar tivessem sido implementadas, se esquemas de proteção de salários tivessem sido anunciados, a Índia não teria visto esta crise com migrantes, que marcham para suas casas na ordem dos milhares”, disse Meenakshi Ganguly, diretora da organização de direitos humanos Human Rights Watch no Sul da Ásia. Problemas de planejamento e de execução das medidas de socorro estão entre os principais erros. Fora isso, relatos de excesso de força policial para impor o lockdown também são usuais. Em Bengala Ocidental, estado no oeste, há notícia de um homem que teria sido espancado até a morte ao sair para comprar comida.
Em democracias latino-americanas também foram registrados incidentes com a polícia. Moradores de bairros pobres de Santiago, no Chile, e Bogotá, na Colômbia, entraram em confronto com a tropa de choque durante protestos contra a falta de alimentos, demandando mais ajuda governamental. Na Colômbia, bandeiras e pedaços de pano vermelhos são pendurados em janelas, sinal de que ali há pessoas passando fome. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 53% da população economicamente ativa da América Latina atua na informalidade. O percentual é inferior ao indiano, mas, ainda assim, exige uma forte rede de proteção estatal aos mais pobres. No Brasil, os programas de apoio às micro e pequenas empresas têm recebido críticas por seguirem o velho modelo “grandes anúncios, pequena entrega”. Atrasos na ajuda de R$ 600 aos mais vulneráveis também são registrados diariamente.
Mesmo na Europa, a implementação do confinamento total não foi livre de problemas. Na Itália, cujo lockdown se prorrogou por quase dois meses, mais de 100 mil multas de até € 5 mil foram aplicadas a quem descumpriu as regras. Nas redes sociais, viralizaram vídeos de prefeitos irritados com cidadãos que continuavam a sair às ruas. “Veja, isto não é um filme. Você não é o Will Smith em Eu sou a lenda. Vá para casa”, disse em um deles Giuseppe Falcomatà, prefeito de Reggio Calabria, no sul do país.
Ironicamente, foi na Itália, país que chegou a ser um dos epicentros da Covid-19, que o isolamento se consolidou como uma tática de combate à peste, entre os séculos XV a XVII. Na época uma das regiões mais ricas e urbanizadas do planeta, as grandes cidades italianas se viram forçadas a aplicar medidas de contenção, mitigação e quarentena para se proteger. “Nesse período, os sistemas de saúde das principais cidades italianas se comunicavam por cartas, informando uns aos outros sobre as situações de seus territórios”, afirmou John Henderson, autor do livro Florence under siege — Surviving plague in an early modern city (Florença sitiada — Sobrevivendo à peste numa das primeiras cidades modernas, numa tradução livre). “Com isso, sabiam quando a peste chegaria. Florença, por exemplo, soube com seis meses de antecedência”, disse Henderson, professor na Universidade de Londres. Para forçar as pessoas a respeitar o lockdown, as autoridades em Milão chegaram a ameaçar os infratores com pena de morte.
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