Pular para o conteúdo principal

Uma vida sabática

Achei estranho quando me falaram: “Xiiiii, não vai sair nada daí”. Perguntei se a mulher não tinha grana pra bancar o projeto e responderam: “Não, o problema é justamente o contrário”. Foi em maio do ano passado, e pelo Zoom, a nossa primeira reunião. Deu pra ver que ela tinha mais livros amarelados e plantas exóticas do que vasos e bolas de murano, e respirei aliviada. Se era rica, não fazia o tipo perua sem personalidade. Usava uma roupa meio guerreira asteca com pinta de caríssima e um brinco azul-claro gigante com pinta de baratinho. Fiquei fascinada por sua figura única e topei a empreitada. Combinamos o próximo encontro para a semana seguinte, mas ela não podia cedo: “De manhã eu descanso porque não tá fácil, né?”. Intrigada, perguntei: “Você tem filhos? Tá sofrendo aí sem funcionários pra te ajudar com a casa? Tá cheia de trabalho? Mestrado?”. Ela respondeu “não” a tudo, e ficamos sem assunto, escreve Tati Bernardi em sua coluna na Folha de S. Paulo, como sempre, texto que vale muito a leitura. Continua abaixo.


Na quinta à tarde, quando faríamos a tal reunião, ela desapareceu. Horas depois, mandou uma mensagem avisando que tinha ido velejar porque precisava “esfriar a cabeça”. Daí veio junho e julho, e nada da mulher. Em seu Instagram, descobri que ela passou um mês relaxando numa fazenda da família “pra aguentar esse ano” e, na sequência, 15 dias desestressando em uma casa que a família construiu perto da praia do Espelho, na Bahia: “Um tempo pra mim”. Na volta, ela tirou uns dias pra descansar em Paraty, em uma das propriedades da família: “Me reconectando com minha infância”. E então, após essas férias, ela acabou de saco cheio de “tanta mala pra fazer e desfazer” e precisou sumir “pra valer”.

Só que ela já tinha depositado metade do valor do trabalho na minha conta, e comecei a ficar incomodada. Primeiro porque detesto dever qualquer quantia pra qualquer pessoa, segundo porque se tem uma coisa de que eu gosto mais do que de dinheiro é de trabalhar pra merecê-lo (ou pura e simplesmente de trabalhar).

Tentei ligar, mandar email, mensagem, falar com o sócio da mulher. “E aí, vai rolar ou não?”. Até que em novembro a extenuada jovem senhora de 34 anos, sem filhos e sem trabalhar havia muitos meses (ou anos?), apareceu se dizendo renovada e cheia de gás. Marcamos uma videochamada na qual discutimos as mesmas coisas já ditas e anotadas seis meses antes e combinamos outra reunião para a semana seguinte. Ela disse que tinha que ser depois do almoço, porque de manhã preferia ouvir música e meditar (eu sei que ela dorme de babar até 3 da tarde), mas antes do pôr do sol, porque “segundo a medicina ayurvédica, é preciso não pensar em mais nada assim que escurece”. Eu ia falar um palavrão, porém estava tão corrida e sem agenda que mandei apenas um “ok”.

No dia do encontro, quando eu apresentaria alguns caminhos e pararia de me contorcer com a ideia de ter recebido um pagamento à toa, ela desapareceu não apenas do WhatsApp e do email, como também se desconectou do Instagram e do Facebook. Seu sócio disse que não tinha certeza, mas parecia que a nossa super-heroína contra a fadiga tinha viajado, meio urgente, pra uma casa que a família tem no litoral norte, porque “o caos de São Paulo fazia muito mal para sua criatividade”. Devolvi o dinheiro (que não dava nem pra pagar o armário que estou fazendo para o lavabo —mas o que é certo é certo) e resolvi não pensar mais nisso.

Então ontem, nossa gladiadora urbana contra o esgotamento, reapareceu e postou que “estava com bloqueio criativo depois de semanas isolada para ser criativa e tiraria uns dias para recuperar sua criatividade”. E ela escreveu assim mesmo, não sendo criativa nem pra pensar sinônimos. Daí, claro, meteu uns “odoyá oxalá cachoeira”, porque é o que eles sempre fazem, ainda que não façam nada. Eu dei like.

Tati Bernardi é escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.



Comentários

Postar um comentário

O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...