Pular para o conteúdo principal

Como as redes sociais sacudiram mais uma vez o establishment

Wall Street não estava preparada para isso, os reguladores não estavam, a imprensa não estava. Ninguém imaginava que o poder das redes sociais fosse tão grande a ponto de pôr de joelhos uma gestora de investimentos de primeira linha. Mas os sinais estavam aí. Ou não vimos, na política, esse poder de aglutinação sem precedentes transformar candidatos improváveis em ganhadores contra todas as previsões dos analistas antes respeitados? Podemos reclamar de fake news, pedir a intervenção das autoridades, dizer que o povo não está preparado para votar ou investir em ações. Ao que parece, a “democracia radical” das redes está instalada, e não é aquela sonhada por teóricos de esquerda. Pelo que vimos nas últimas semanas, quem ocupou de fato Wall Street, por dentro, foram nerds em um fórum de discussões da internet dando ordens de compra, e não militantes com barraquinhas e discursos contra a desigualdade. Não que os “moleques” do fórum WallStreetBets, no site Reddit, não tenham essa disposição, digamos, revolucionária. Têm. Provavelmente mais a revolução americana, com pitadas de Davi contra Golias e da tradição folclórica inglesa do fora-da-lei que rouba dos ricos para dar aos pobres, Robin Hood. Talvez tenha sido mais sinal ignorado pelo establishment o fato de o aplicativo usado pelos membros do fórum para investir, sem taxas, chama-se Robinhood, escreve Nelson Niero no Valor, em matéria publicada dia 5/1. Continua a seguir.


Depois de duas semanas surreais, em que ações de empresas ultrapassadas operacionalmente estiveram entre as mais negociadas, a normalidade parecia de volta às torres de vidro ao sul de Manhattan. A ação da GameStop, a loja de videogames que virou o símbolo da luta do pequeno investidor contra grandes fundos, despencou das alturas, depois de valorizar inacreditáveis 1.600% em janeiro. No pico, a empresa chegou a valer US$ 24,2 bilhões, o que pelo dólar da casa de R$ 5 daria para comprar o Banco do Brasil e sobraria troco. Com a queda de 30% ontem - 90% em relação ao pico -, parece que a montanha-russa chegou naquela parte que testa nossa coragem. “Comprei cinco ações [da GameStop] por US$ 99 em apoio ao WSB [WallStreetBets]”, escreveu na segunda no fórum um investidor. “Eu posso perder US$ 500 por uma causa.”

Isso não tem nada a ver com o que os analistas de investimentos chamam de “fundamentos” das empresas, os requisitos básicos para se saber se ela é um negócio sólido, mas principalmente se tem potencial para ser maior e melhor do que é agora. Não se trata de Warren Buffett, mas de apostadores com apelidos como DeepF--ingValue, o “líder” da rebelião contra o sistema financeiro que eles consideram “rigged” (manipulado), um termo que também foi muito usado durante as eleições presidenciais de novembro.

Com essa narrativa, esses amadores entrincheirados no Reddit começaram um movimento contra os chamados fundos de hedge que apostavam contra empresas que consideram ruins. Ao contrário do que é o óbvio, comprar a ação de uma companhia boa para ser sócio do negócio, é possível também lucrar com as supostamente ruins. Faz-se um contrato de aluguel das ações pelo preço de hoje, na expectativa que elas caiam para comprar mais barato, devolver ao dono e embolsar a diferença. Essa estratégia, conhecida como “short selling”, ou venda a descoberto, faz parte do jogo, mas muitos acham que ela é a síntese do sistema “manipulado”. A GameStop, um negócio dependente de vendas em lojas físicas, seria uma vítima dessa artimanha montada pelos lobos de Wall Street. E assim seriam também redes de cinemas atingidas pela pandemia, fabricantes de celulares tecnologicamente defasados e outros negócios em dificuldades.

Os justiceiros que invadiram Wall Street vieram com uma estratégia que poderia ser classificada de “buy and hold”, mas numa versão “meme investing”, que consiste em comprar essas ações maciçamente e ficar com elas - pelo menos o tempo suficiente para forçar os fundos a ter que pagar um preço alto para honrar seus contratos e amargar o prejuízo. Essa manobra inesperada, fruto desse novo ativismo societário, pegou desprevinidos gestores experientes e muito bem pagos. A Melvin Capital, que estava fortemente vendida em GameStop e outras ações, teve que ser socorrida com injeções de recursos bilionários e desmontou a maior parte de suas posições. Animados com o sucesso, os traders do Reddit tentaram uma cartada ainda mais ousada no mercado de prata, “o mais manipulado do mundo”, segundo se comentava no fórum. A ideia era comprar um fundo negociado em bolsa (ETF) atrelado ao metal, o iShares Silver Trust, e forçar a entrega física pelos bancos que atuam no mercado futuro de prata, num momento que os estoques estão baixos. Deu certo, no primeiro dia, quando o preço chegou a subir 11%, mas morreu no dia seguinte com uma intervenção da bolsa de commodities de Nova York, a Comex. Era hora de voltar para as ações.

O mercado acionário americano sempre esteve mais perto da realidade da “main street” do que o de outros países, mas a onda de juros ao redor de zero e dinheiro fácil saindo dos bancos centrais levou a um aumento do interesse pelos ativos de risco. Pandemia e lockdowns vieram engrossar o caldo: pessoas em casa, interagindo como nunca pelas redes sociais e com mais tempo e facilidade para investir seu dinheiro. O fórum WallStreetBets mais que dobrou de tamanho em 2020, para 1,8 milhão de pessoas. Neste ano, até ontem, segundo o site FrontpageMetrics, já eram quase 8,5 milhões de “degenerados”, como se autodenominam. Tanta gente assim costuma fazer muito barulho.

O estrondo foi ouvido muito além de Wall Street e operações semelhantes foram tentadas na Europa e no Brasil, com acionistas reunidos no aplicativo de mensagens Telegram para defender a resseguradora IRB, cujo balanço teve pontos contestados no ano passado por uma gestora, que se declarou vendida no papel. A versão brasileira dos “gamestoppers” conseguiu fazer o papel - que acumula queda de 80% em doze meses - subir quase 18%. No dia seguinte, a bolsa resolveu segurar com leilões a volatilidade, intervenção que não ficou livre de polêmicas.

Nos Estados Unidos, a Robinhood também foi criticada por investidores, celebridades e políticos - Alexandria Ocasio-Cortez e Ted Cruz, num caso raro de unidade esquerda-direita - por ter suspendido as negociações das ações mais frenéticas. O que se soube depois é que a corretora não estava tentando prejudicar o pequeno investidor com um Robin Hood às avessas, mas enfrentou dificuldades para lidar com aquele volume nunca visto de ordens de compra.

Os reguladores, agora nesse papel incômodo de xerifes de Nottingham da fábula revivida, vieram a público demonstrar sua preocupação. A secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, convocou uma reunião com as principais autoridades para discutir o assunto, o que pode resultar em regras mais duras para fundos de hedge, pequenos investidores e corretoras. Questões de difícil solução sobre como caracterizar manipulação do mercado voltam ao debate, os pequenos acusam os grandes “que nunca são punidos” (o que não é verdade) e, o mais terrível dos dilemas, a grande questão moral da venda a descoberto.

Milhões de sardinhas usaram o “short selling” como justificativa para sua revolta contra os tubarões, mas políticos e, principalmente, executivos também costumam censurar a estratégia. Em um de seus tuítes peculiares, Elon Musk, fundador e chefe da Tesla, resume: “Você não pode vender uma casa ou um carro que não é seu, mas você ‘pode’ vender um ação que não é sua? Isso é conversa fiada - ‘shorting’ é um golpe”.

O jornalista James Surowiecki, que escreveu um livro chamado “A Sabedoria das Multidões”, rebateu o comentário dizendo que “as evidências são esmagadoras de que mercados com operações a descoberto em pleno funcionamento são mais eficientes e são menos propensos a bolhas e distorções maciças de preços”. De fato, há inúmeros estudos acadêmicos sobre o assunto, um deles do economista brasileiro José Scheinkman, que vai nesse sentido da prevenção de bolhas, como lembrou o perfil Strauss (@strauss_real) no debate intenso e cheio de “blocks” que o tema provocou no Fintwit. Em defesa desse anti-herói dos mercados, pode-se dizer que ele não derruba empresas, ele simplesmente identifica as que estão prestes a cair. (Um parêntesis: existe uma versão tóxica, chamada “naked short selling”, em que a operação é feita sem empréstimo da ação. Essa venda a descoberto “pelada” está proibida desde a crise de 2008, mas continua sendo usada entre as brechas da lei.) Num caso que ficou para história, Jim Chanos, da Kynikos Associates, sugeriu à repórter da “Fortune” Bethany McLean que olhasse com cuidado o balanço da Enron, uma empresa que o mercado achava que valia US$ 100 bilhões. Como se soube logo depois, o valor real era zero.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe