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Pelé encara seus dilemas com a ditadura na Netflix

A Netflix e os diretores britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas toparam uma missão ambiciosa: trazer à luz uma versão ainda não contada da história do maior jogador de futebol de todos os tempos, celebridade mundial há mais de 50 anos e personagem de incontáveis livros, filmes, documentários e peças publicitárias. Nesta terça-feira (23), a plataforma lança o documentário Pelé, que narra a história do ex-jogador durante seu auge esportivo enquanto aposta nos conflitos pessoais e políticos do ex-craque, em especial sua relação ditadura brasileira, para se diferenciar das produções anteriores ―tudo comentado pelo próprio Rei do Futebol. A primeira cena do documentário, a abertura da Copa do Mundo de 70, no México, palco da coroação de Pelé como tricampeão mundial, deixa claro que o sucesso esportivo do brasileiro é o fio condutor do filme, mas não sem uma camada de tensão e as análises do ex-atleta sobre sua trajetória, agora com 80 anos. Na produção, não são abordadas apenas os quatro Mundiais que jogou (58, 62, 66 e 70), mas Pelé diante das mudanças pelas quais o Brasil passou, da industrialização e desenvolvimento cultural ao golpe e anos de chumbo da ditadura, escreve Diogo Magri no site do El País, em texto publicado dia 19/10. Continua a seguir.


Pelé fala às câmeras em uma cadeira na qual chega com a ajuda de um andador ―na hora da entrevista, faz questão de empurrar a ajuda para fora do enquadramento. É uma rara visão de seus últimos anos de reclusão e problemas de saúde. Emociona-se duas vezes. A primeira ao falar de seu surgimento como ídolo na Copa de 58, a segunda, ao comentar sua coroação com o tricampeonato em 70. Confessa ter traído sua primeira mulher, Rosemeri Reis, com quem se casou aos 26 anos, e se deixa filmar na cadeira de rodas enquanto almoça com colegas da época de Santos, todos na casa dos 80 anos.

“O grande presente da vitória é o alívio”, diz ele sobre o medo e nervosismo que sentia antes das grandes decisões, especialmente antes do torneio do México, cercado de simbolismo e controvérsias políticas. “Naquele momento, não queria ser Pelé”, revela também, enquanto são passadas imagens do Mundial de 1970.

O tom das declarações dá uma ideia da pressão sob a qual Pelé e a seleção jogaram aquela Copa. O Brasil chegara desacreditado em 1970, com uma desconfiança fruto da campanha ruim no Mundial de 66, mas ainda era grande esperança do Governo militar que, seis anos após o golpe e dois após o repressivo AI-5, via no trunfo da seleção a chance de exaltar o nacionalismo e manter a população contente. E o 10, desmoralizado pela idade e baleado pelas pancadas de defensores, concentrava essa pressão como referência do selecionado. Não tinha a missão apenas de jogar bem e marcar gols, mas de fazer “mais pelo país do que muitos políticos”, como afirma o próprio. “Não morri, não!”, gritou três vezes Pelé após a vitória na final ―segundo conta o colega Rivellino.

Com a seleção brasileira, Pelé ganhou três das quatro Copas que jogou.

Pelé foi pivô de uma discussão que acabou na demissão do treinador João Saldanha ―militante do Partido Comunista― dois meses antes do Mundial, com evidente interferência dos militares que tomavam conta da comissão técnica brasileira. Mário Jorge Lobo Zagallo assumiu e comandou o time que venceu todos os jogos no México e coroou o tri com atuações históricas contra Inglaterra, Uruguai e Itália. Nas palavras do jornalista José Trajano, uma das vozes do documentário, “fui à Copa torcer contra a seleção por causa da ditadura. Mas quando cheguei lá, não tinha como”. A seleção brasileira de 70 é lembrada até hoje como um dos melhores times da história do futebol. E seu craque correspondeu, sendo eleito o melhor jogador do Mundial.

A Copa do México marca o início e o fim do documentário, além de ser o único Mundial do qual são exibidas imagens de todos os jogos do Brasil durante a narrativa. E o evento é protagonista no filme não só pela grandiosidade dos feitos esportivos de Pelé, mas porque é central no debate em torno do astro fora das quatro linhas. A produção da Netflix fez o jogador falar, pela primeira vez de forma tão longa, sobre ditadura, tortura e o uso do futebol ―e dele próprio ―como propaganda do regime militar. “Se eu disser que não sabia [que existiam torturas], estaria mentindo. Mas não tínhamos certeza das coisas. No futebol não fez diferença nenhuma”, afirma ele.

Se, após a Copa de 58, Pelé foi alçado ao símbolo de um país que evoluía culturalmente e se industrializava, resolvendo o complexo do vira-lata brasileiro também como ícone da representatividade negra, a imagem do craque entregando a taça do mundo para o então ditador Emílio Garrastazu Médici marca as críticas à falta de posicionamento político e à submissão do tricampeão frente a ditadura. No documentário, no entanto, até seus críticos ponderam que o ídolo encontraria dificuldades para bater de frente com a repressão dos anos de chumbo e evitam qualquer condenação moral. “O tricampeonato não foi a vitória do Médici, foi a vitória do Pelé”, resume o jornalista Juca Kfouri.

“Sempre abri as portas pros Governos e sempre me procuraram”, segue o Rei. De fato, além de fotos junto com os presidentes militares, após a redemocratização ele ainda se reuniu com presidentes de todas as cores políticas: José Sarney (1985-1990), Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002, de quem foi ministro dos Esportes), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Dilma Rousseff (2011-2016) e Michel Temer (2016-2018). Neste ano, mandou uma camisa do Santos autografada para Jair Bolsonaro.

Para além do Pelé político, o jogador de vigor ímpar é exaltado ao longo do documentário― a parte da história que todos conhecem e não se cansam de ver. Apesar das lesões nas Copas quando estava no auge, em 1962 e 1966, o camisa 10 foi recordista de gols e títulos pelo seu clube, o Santos, além de ser até hoje o maior artilheiro da seleção. No mesmo lance, Pelé era capaz de ganhar do zagueiro pelo alto, dar um chapéu no segundo defensor e finalizar, de primeira, no canto do goleiro ― numa final de Copa do Mundo. Arrancava, driblava e concluía, sendo sinônimo de potência física, técnica e decisiva. Para quem o viu em campo, é uma lembrança da majestade. Para quem o conhece somente por registros em vídeo, é a reafirmação de que Pelé não era apenas um jogador à frente do seu tempo, mas a soma de qualidades que o tornavam um esportista completo. A união de Messi com Cristiano Ronaldo, 50 anos antes das estrelas argentina e portuguesa. Pelé não dribla os dilemas políticos e pessoais do ídolo, mas também mostra porque ele ainda não tem rival à altura.



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