A tarde do domingo, 21 de fevereiro, foi frenética entre os operadores, economistas e gestores do mercado financeiro brasileiro. Em ligações sucessivas, consultavam-se uns aos outros sobre o tamanho da queda que abriria a negociação das ações da Petrobras no dia seguinte. Por fim, ficou claro a todos que o valor da empresa cairia num precipício. Na segunda-feira 22, as ações da companhia despencaram 20%, um mergulho ainda maior do que aquele ocorrido na sexta-feira anterior, de 7,9%. Houve recuperação parcial nos pregões seguintes, é verdade, mas a última semana de fevereiro ficará marcada como a da ruptura. Uma crise de confiança se instalou em relação à economia brasileira. Os comportamentos de dólar, juros futuros e risco país não deixaram dúvidas. Todos apontando para cima. O mais doloroso é que se trata de uma crise autoinfligida. O atual momento poderia estar sendo favorável ao país. No mundo, o dólar está fraco, as commodities que exportamos estão em alta e há muito dinheiro estrangeiro procurando investimento em países emergentes. Em meio às muitas incertezas de um período de pandemia, seria difícil esperar um cenário mais propício. Só que o presidente Jair Bolsonaro teima em ser 100% do tempo o criador de crises, escrevem Míriam Leitão e Alvaro Gribel em artigo fundamental, publicado na Época desta semana. Continua a seguir.
O maior terremoto nos preços dos ativos financeiros neste governo foi provocado pelo presidente. Ele passou por cima do ministro da Economia, Paulo Guedes, da Lei das S.A, da Lei das Estatais, das normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), do estatuto da Petrobras para instalar o general Joaquim Silva e Luna, sim, mais um militar, no comando da maior empresa do país. Bolsonaro não apenas quis tirar Roberto Castello Branco da presidência da maior empresa do país. Ele fez isso com estardalhaço via rede social, em disparos contra Castello Branco em suas conversas com apoiadores e em promessas como a de “meter o dedo no preço da energia” e tirar outros “tubarões”.
Com esse tom e essas mensagens, espalhou uma onda de incertezas que sacudiu os mercados e distribuiu perdas entre investidores grandes e pequenos. As manifestações do populismo econômico de Bolsonaro emudeceram Guedes e levarão o Brasil a responder a processos de acionistas minoritários. Além disso, fizeram os últimos fiéis do “liberalismo bolsonarista” darem adeus às ilusões.
A sucessão dos fatos que marcaram a ruptura começa com uma reunião, no dia 5 de fevereiro, para discutir a razão da alta do diesel. Castello Branco chegou destoando no Palácio do Planalto. Ele sempre evitara ao máximo ir a Brasília, mas a convocação era do presidente. Quando chegou, usava máscara N95 e óculos EPI, como deve ser em tempos de pandemia. Mas, no governo, isso é considerado ornamento de adversário. Ninguém usa. para não irritar o presidente. Castello Branco não tirou sua proteção, sentou-se na ponta da mesa na entrevista à imprensa e, quando falou, disse que os preços do diesel seguiriam cotações internacionais.
O ornamento anti-Covid, a atitude na mesa, a decisão que tomou logo no começo da pandemia de pôr o máximo de funcionários, e ele mesmo, em home office foram decisivos para o desfecho. Tudo aquilo deu nos nervos de Bolsonaro e ele deixou isso transparecer. Mas o que realmente incomodou foi a insistência com que a empresa exerceu a autonomia para definir os preços dos combustíveis. Quando eles caíram, em 2020, Bolsonaro achou natural. Quando subiram, criou uma crise.
Na campanha presidencial de 2018, o discurso “liberal” de Bolsonaro não enganou todo mundo. Quem acompanhou a trajetória do deputado capitão reformado, quem ouviu o que ele disse antes que decorasse as falas do “Posto Ipiranga” Paulo Guedes, quem notou as contradições entre as palavras e os atos sempre soube que nunca houve aderência à proposta de modernização liberal na economia. Um pouco mais de dois anos depois da posse, o episódio Petrobras escancara, de forma incontestável, todo o seu caráter intervencionista.
Para piorar a situação, Bolsonaro caprichou na execução da mão pesada na economia. “Ele poderia ter feito a mudança de forma amigável. Pode-se até defender a ideia de que no meio de uma pandemia seja necessário suavizar o repasse dos preços internacionais aos preços internos com uma fórmula previsível. Mas a maneira de agir de Bolsonaro feriu todas as leis e regras do mercado de capitais. Agora, o ônus da prova se inverteu. O governo terá de provar que não fará manipulação de preços”, disse o economista-chefe de um grande banco brasileiro que prefere se manter no anonimato.
Bolsonaro, primeiro, fomentou a especulação, ao dizer que “alguma coisa vai acontecer na Petrobras nos próximos dias, tem de mudar alguma coisa, vai acontecer”, referindo-se aos preços dos combustíveis. Fez isso na quinta-feira dia 18, numa rede social. Na sexta-feira, as ações já tiveram forte queda. No fim daquele dia, o presidente anunciou o nome do general Joaquim Silva e Luna, de novo numa rede social. Dessa forma, ele quebrou a primeira regra de ouro da comunicação de uma empresa de capital aberto. A de informar sobre mudanças que podem afetar os preços das ações de maneira clara e por meio de um fato relevante. Isso é norma da CVM, da Securities Exchange Comission e está na Lei das Sociedades Anônimas. A CVM abriu duas investigações. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União pediu avaliação do tribunal. O conselho de administração da Petrobras quer explicações ao presidente. A Eletrobras, na manhã da terça-feira 23, mandou carta ao Ministério das Minas e Energia perguntando o que o presidente queria dizer com “meter o dedo no preço da energia”.
Um ex-dirigente da Petrobras que já viu a empresa enfrentando uma “class action”, ação movida por vários acionistas, teme o que possa acontecer. Na class action provocada pela descoberta de corrupção na empresa, a Petrobras teve de pagar US$ 2,95 bilhões. Um advogado que trabalha exatamente com clientes que enfrentam processos de acionistas disse que está aberto o campo para que haja uma sucessão de ações contra o Brasil, dos perdedores com essa forma atabalhoada de comunicar os fatos. “O mandato do Castello Branco ia acabar, o presidente tem o direito de sugerir a substituição, mas pelas boas práticas de governança ele teria de mandar uma mensagem ao conselho, uma carta da União à Petrobras. E a Petrobras comunicaria ao mercado num fato relevante.”
Algumas vezes é difícil, à primeira vista, entender de onde vem tanta agressividade do presidente. Desta vez, tudo estava claro desde o começo. Bolsonaro provocou toda essa confusão porque quer intervir nos preços dos combustíveis. Ele acredita que isso pode elevar sua popularidade e acalmar os caminhoneiros. Bolsonaro estimulou a greve da categoria em 2018, e muita gente agora se diz traída por ele com esses reajustes. Outro motivo para o estardalhaço, segundo um arguto observador da cena, é que o começo do tiroteio foi exatamente no dia em que seu radical apoiador, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), teve a prisão confirmada pela Câmara por ter ameaçado os ministros do Supremo Tribunal Federal. As bases extremistas de Bolsonaro postavam nas redes que ele nada fazia em defesa de Silveira e que, na verdade, não mandava em nada. Segundo esse observador, Bolsonaro quis mostrar poder. Para o país, a crise na Petrobras foi uma tragédia evitável. Para quem quer governar tendo a base radical como bússola, o plano deu certo. A máquina do ódio reorientou seus disparos nas redes e no WhatsApp contra Castello Branco.
Agora alvo da fúria bolsonarista, Castello Branco foi um dos primeiros economistas a atenderem ao chamado de Guedes para formular um programa para o então candidato Bolsonaro, quando poucos queriam entrar na aventura. Depois da eleição, ouviu que podia ser o que quisesse. Escolheu ficar no Rio, na Petrobras. Seria parte do projeto liberal com o qual ele, Guedes e vários outros que já saíram do atual governo sonhavam desde a Universidade de Chicago. Privatização era o primeiro ponto. Exatamente o que não ocorreu até agora.
Já no comando da Petrobras, Castello Branco mostrou ser controverso. Fez declarações polêmicas, os funcionários da estatal discordam de seus modos e muitos até do projeto de reduzir o tamanho da empresa vendendo campos e refinarias. Dizem que os ex-presidentes Pedro Parente e Ivan Monteiro, do governo Temer, eram tão liberais quanto ele, mas sabiam dialogar. Há críticas entre ambientalistas e ex-dirigentes da empresa, pelo fato de ele estar concentrando a atuação da Petrobras em ativos fósseis, saindo de fontes alternativas, que serão a energia do futuro. Mas nada disso influiu em sua saída.
O economista português Alberto Ramos, do banco Goldman Sachs, passou os primeiros dias da semana em “calls” com investidores em Nova York. “O mercado vai descobrindo passo a passo que o presidente é um político, que as credenciais liberais dele não passam no teste de fogo. O ministro Paulo Guedes é um liberal, um filósofo, tem grandes ideias, mas tem entregado muito pouco. Me perguntam se as reformas morreram. Bom, algo para morrer tem de estar vivo”, disse.
Roberto Attuch, da Ohmresearch, empresa de análises para o mercado financeiro, acha que existe uma questão de fundo embutida em toda essa confusão. “Como Bolsonaro não quer que o consumidor pague, e a Petrobras não pode pagar, então isso virou uma questão fiscal que contamina todos os outros prêmios de risco. Isso é o que realmente importa para o mercado”, argumentou.
A elevação da percepção de risco foi transmitida na reunião trimestral que os economistas do mercado financeiro têm com o Banco Central (BC). Esse é um encontro em que a autoridade monetária apenas ouve e colhe depoimento dos economistas. O recado no encontro pós-confusão na Petrobras foi claro: se houver aumento da intervenção do governo na economia, as taxas de juros ficarão pressionadas, e se houver um descrédito generalizado por parte do mercado, o Banco Central será obrigado a subir rapidamente a Selic para conter o dólar e seus efeitos sobre a inflação. “Hoje, o consenso é juros em torno de 4% no final do ano, com elevação gradual por parte do BC, chegando a 6% ou 6,5% no ano que vem. Em um cenário de quebra de confiança, teria de chegar a 6,5% já em dezembro deste ano”, previu Alexandre Ázara, economista-chefe da Mauá Capital.
No setor elétrico, o clima também foi de apreensão. As declarações do presidente trouxeram à memória os piores momentos do governo Dilma, com a edição da Medida Provisória 579, de 2012, que reduziu tarifas na marra e provocou prejuízos, batalhas judiciais e uma desorganização ainda não superada no setor. Segundo o presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), Paulo Pedrosa, o fim de semana também foi de conversas entre executivos, todos querendo entender quais eram as intenções do presidente. “Conheço o general Silva e Luna, é um homem sério, dedicado. O problema é que teremos mais um militar no setor. Será que o presidente de uma multinacional vai se sentir em condições de igualdade de competir, sabendo que o presidente da Petrobras é um general, o ministro das Minas e Energia é um almirante e o diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo também é um almirante? Esse risco será precificado, porque ele estará em desvantagem”, pontuou.
A Lei das Estatais de 2016 estabelece que, se alguma empresa tiver prejuízo por causa de uma política pública, o Tesouro tem de compensá-la. Na época de Parente na Petrobras, o estatuto passou a incluir também essa obrigatoriedade de o Tesouro cobrir qualquer prejuízo causado por política pública. Isso significa que, dependendo do grau de intervenção nos preços, pode-se criar outra fonte de pressão fiscal, o subsídio dos combustíveis. A agência de classificação de risco Moody’s comunicou aos clientes que as preocupações com o Brasil aumentaram depois do episódio da troca de comando da Petrobras. Ele deu um sinal de maior intervencionismo na economia e enfraqueceu as possibilidades de privatização. “O maior risco do crédito soberano do Brasil é um choque de confiança que leve ao aumento rápido do prêmio de risco”, disse a agência.
O mundo navega num mar de liquidez. Os principais bancos centrais das maiores economias baixaram os juros e liberaram dinheiro para socorrer as atividades que afundaram com a pandemia. Com tanto dinheiro assim circulando, o ambiente fica mais favorável para um país emergente, mesmo quando seus governantes cometem erros, como o do Brasil. “O balanço do Fed (banco central americano) saltou de 20% para 35% do PIB dos Estados Unidos. Para efeito de comparação, na crise de 2008 saiu de 5% para 15%. O banco central japonês já vinha dando muito estímulo monetário e agora está perto de 130% do PIB. O banco central europeu saltou de 40% para quase 60% do PIB”, disse Ázara.
Nesse ambiente, o investidor estrangeiro não tenderá a ficar complacente com o Brasil? Algo na linha “Vamos fechar os olhos para as loucuras de Bolsonaro e, ainda assim, investir na economia brasileira”? Ramos, do Goldman Sachs, acha que é melhor não confiar nisso. “Há alguma complacência, mas tem limite, eu não testaria esse limite”. O economista argumentou que seria a hora certa de o país fazer reformas que permitissem um novo ciclo de crescimento. Em vez disso, a economia brasileira está envolta em crises desnecessárias como essa criada na Petrobras. O que protege o Brasil é que o Banco Central tem um alto volume de reservas cambiais, acumuladas, a propósito, no período do PT no governo.
Na terça-feira 23, Bolsonaro e os ministros Guedes e Bento Albuquerque foram ao Congresso levar uma medida provisória da privatização da Eletrobras, numa tentativa de apagar o mau sinal dado pelo atropelamento da governança da Petrobras. No dia seguinte, foi enviado um projeto para abrir o capital dos Correios. Era encenação, e isso esteve claro em todos os detalhes. Na terça-feira, na hora de falar o nome da empresa, Bolsonaro teve um lapso. Foi socorrido por Albuquerque. Entregou a MP ao senador Rodrigo Pacheco, que já fez parte da frente parlamentar contra a privatização da Eletrobras. Tanto assim que o ex-presidente da estatal de energia Wilson Ferreira deixou o cargo exatamente quando o governo passou a fazer campanha para a vitória de Pacheco no Senado, no início deste ano.
O fator mais decisivo, no entanto, é o próprio presidente. Seu ideal econômico jamais foi liberal. O ideário que o domina formou-se nos anos do regime militar, em que se acreditava que o governo tinha de controlar áreas estratégicas por meio de estatais e, de preferência, comandadas por militares. Oficiais vindos das Forças Armadas administram um terço das estatais, Bolsonaro criou uma estatal militar e capitalizou outra com R$ 8 bilhões. O Ministério das Minas e Energia está todo dominado por militares. Ele gosta de ministros que se curvam a ele e os que vieram da disciplina castrense estão mais dispostos a fazer isso. Os civis que não demonstram essa capacidade não duram ao lado dele. A surpresa do mercado é a capacidade de Guedes resistir aos desaforos seguidos.
A jornada da Petrobras em busca de sua recuperação é longa. Quando estourou o caso da Lava Jato, o governo Dilma foi forçado a fazer mudanças na administração da empresa. Uma providência foi montar um conselho de administração de pessoas independentes. O primeiro presidente foi Murilo Ferreira, em 2015, que presidia a Vale. Quando ele saiu, os conselheiros se impuseram e elegeram Nelson Carvalho, que era na época presidente do conselho de auditoria da empresa. Esse conselho começou a acabar com o que um ex-dirigente chama de “os silos da empresa”. Cada diretoria tinha toda uma estrutura em diversas áreas, do departamento pessoal ao jurídico. Isso é que permitia um caso como o do diretor Paulo Roberto Costa, de Abastecimento, cuja prisão foi o início da Operação Lava Jato. Um fato como aquele não é mais possível dentro da Petrobras. Hoje há comitê para tudo e decisões colegiadas.
As gestões seguintes, de Parente, Monteiro e Castello Branco, aprofundaram essa transformação. Foram passos seguidos na conquista da credibilidade, na recuperação de valor e na construção da governança. Houve diferenças de estilo, mas a empresa foi sendo tocada na mesma direção. Tem dado lucro e reduzido a dívida total. Já foi de US$ 100 bilhões, fechou 2020 com US$ 75,5 bilhões. Na quarta-feira 24, divulgou que, mesmo no ano passado, em que houve um momento de mergulho das cotações, a empresa ficou no azul. A ideia de preços seguindo a paridade internacional é parte desse projeto de uma companhia global, com acionistas no mundo inteiro, rentável e com regras de administração previsíveis e estáveis. O petróleo é uma commodity, tem preço cotado em dólar. Quando a Petrobras eleva muito o preço, ela estimula a importação de derivados por outras empresas; se o preço fica muito abaixo do mercado, ela tem prejuízo, cria barreira à entrada de outras companhias no negócio de óleo e gás. Foi esse processo de modernização da empresa e do mercado de petróleo no Brasil que o presidente Bolsonaro fulminou com uma transmissão no Facebook e algumas frases soltas para animar sua torcida. O custo para a empresa será alto. Para o país, será muito maior.
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