Pular para o conteúdo principal

Fora da bolha, Folha

Certa vez, escrevi aqui, em resposta ao excelente João Pereira Coutinho, que minhas críticas simétricas ao governo israelense e ao movimento de boicote e desinvestimento contra Israel não me colocavam “em cima do muro”. É que os supostos dois lados são o mesmo: uma frente tácita contra a paz em dois Estados. A Folha completa 100 anos diante de uma encruzilhada. Torço para que escolha o jornalismo —ou seja, a recusa às narrativas fáceis dos “dois lados”. O segredo da moderna Folha, criada por Otavio Frias Filho, encontra-se no ceticismo ativo. No aniversário centenário, Flavia Lima, a ombudsman, sugeriu renunciar “à ideia de ‘polarização’ para equiparar a extrema direita e a esquerda”, pois a segunda “não transpôs os limites democráticos e da civilidade” (Folha, 21.fev). De fato, há diferenças, escreve Demétrio Magnoli em sua coluna na FSP, publicada sábado, 27/2. Continua a seguir.


No plano circunstancial, é incorreto equiparar o Bolsonaro que sonha com o AI-5 com o Lula que rejeitou dobrar a lei para obter um terceiro mandato. Mas, na esfera da filosofia política, o apoio inabalável a ditaduras que torturam e matam aproxima os “dois lados”. É patriotismo de aldeia minimizar o problema sob o pretexto de que diz respeito a países estrangeiros, não a nós. O jornalismo vive da liberdade.

Os “dois lados” não são idênticos. Bolsonaro sempre odeia a imprensa independente; o PT, de vez em quando. Marilena Chaui escreveu sem parar na Folha durante o governo FHC —mas parou de brincar quando o jornal cumpriu sua missão na cobertura do escândalo do “mensalão”. Fernando Haddad tinha ciência do apoio da Folha ao golpe de 1964 quando aceitou escrever colunas na página 2 —mas, indignado com um editorial que registrava seu papel eleitoral de “poste de Lula”, invocou aquele fato, velho de 55 anos, para encerrar a colaboração.

Bolsonaro, se pudesse, fecharia os jornais com “um cabo e um soldado”. O PT preferia o “controle social da mídia”, isto é, a intimidação por meio de movimentos sociais. Depois do impeachment, em resolução oficial, o partido lamentou que seus governos não tivessem levado a cabo a ideia. Franklin Martins, secretário de Comunicação de Lula, tinha um plano mais sofisticado: convencer as teles, concessionárias de serviço público, a adquirir o controle dos principais veículos jornalísticos. Dilma Rousseff interrompeu o projeto, um gesto democrático pelo qual nunca foi elogiada o bastante.

Interpreto a ascensão de Bolsonaro como fruto do somatório da catástrofe econômica dilmista com a ofensiva ilegal do Partido dos Procuradores contra o sistema político. Mario Vitor Santos, ex-ombudsman, opta por ignorar a política econômica que armou a depressão, adotando o cânone interesseiro do PT. Nessa linha, pede autocrítica do jornal pela cobertura da Lava Jato, que teria conduzido ao “golpe judicial-parlamentar contra Dilma Rousseff, à proibição da candidatura Lula e, afinal, à eleição do próprio Bolsonaro”. A “polarização” existe —e dirige o olhar para um ponto fixo.

A ex-ombudsman Renata Lo Prete toca no nervo sensível ao identificar a “bolha digital” na qual vivem os jornalistas. “Somos cada vez mais conduzidos por nossos hábitos online. O algoritmo incentiva a repetição: ir aos mesmos endereços, consultar as mesmas vozes, ouvir os mesmos argumentos.” Há consequências: “Quando se limita a ouvir a bolha, o jornalista tende a produzir para a bolha, esperando o aplauso dela”.

A imprensa que não se vende tem ojeriza ao bolsonarismo. A Folha de hoje, aos 100, não é a de 1964. Descarte a hipótese de que ela venha a procurar o aplauso da “bolha” governista. O perigo real está em ceder aos encantos da “bolha do bem”, para não ficar “em cima do muro”. A saída é reconhecer que, do ponto de vista do jornalismo, esse muro não existe. E, fora da bolha, persistir no ceticismo, único caminho para algo próximo ao ideal da objetividade.

Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...