O presidente Bolsonaro inaugurou dois pactos diferentes com o Legislativo em comparação ao que ocorrera desde o fim do regime militar. Nos primeiros dois anos de governo ele se recusou a montar uma coalizão estável com os partidos no Congresso Nacional. Tratava-se de um estilo de governar mais autocrata, contra o que chamava de “velha política”. Agora, no início da segunda parte do mandato, faz uma aliança exatamente com aqueles que dizia mais desprezar, o “centrão”. Que tipo de política resultará dessa aliança do bolsonarismo com o grupo mais fisiológico do sistema político? É possível pensar em alguns cenários, mas a incerteza derivada dessa novidade é muito grande. Antes de analisar o novo cenário político é importante discutir o primeiro modelo de relação entre Executivo e Legislativo escolhido por Bolsonaro. Em primeiro lugar, as derrotas legislativas foram maiores do que a dos demais presidentes no início do governo. Bolsonaro teve o maior número de medidas provisórias que caducaram, a maior quantidade de vetos presidenciais derrubados. Mais do que isso: algumas de suas bandeiras de campanha, como as temáticas morais e seu plano para a segurança pública, foram negligenciadas ou desfiguradas, escreve Fernando Luiz Abrucio no Valor, em coluna publicada dia 5/1. Vale a leitura, continua a seguir.
Sua maior vitória, a reforma da Previdência, ocorreu menos por seus esforços como liderança presidencial e mais porque tratava-se de uma agenda com um apoio congressual construído ao longo de anos, especialmente pelo grupo liderado pelo ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Outras reformas, como o novo marco legal do saneamento ou a renovação do Fundeb, também derivaram da ação de senadores e deputados com uma agenda própria e independente do Executivo. É interessante notar como Bolsonaro gosta mais de comemorar a aprovação de legislações, digamos, exóticas, como o Código Nacional de Trânsito, do que enfrentar a batalha árida e repleta de negociações que caracterizam decisões vinculadas à reformulação do sistema tributário ou da administração pública.
Esse modelo com pouco sucesso legislativo já foi ironicamente intitulado de “presidencialismo do desleixo” pelo cientista político Fernando Limongi, um dos maiores estudiosos do presidencialismo de coalizão. Nesta linha, Bolsonaro comportava-se como um Macunaíma político, com grande preguiça para o trabalho duro da construção de políticas públicas em ambientes democráticos.
Mas além dessa incompetência atávica, derivada dos 30 anos de baixo desempenho parlamentar encoberto pelo discurso radical, há um outro ponto que explica a opção pelo “presidencialismo de desleixo”: Bolsonaro tem uma visão política profundamente antidemocrática. Seus conflitos com as lideranças congressuais e com o Supremo Tribunal Federal foram constantes, e em determinados momentos, sua reação foi a de pedir que seus seguidores se mobilizassem pelo fechamento dessas instituições. O bolsonarismo já tinha expressado esse sentimento autoritário durante a campanha eleitoral de 2018, propondo metralhar os petistas, fechar o STF com um cabo e um soldado, além de definir o “centrão” com o velho samba: “Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”.
Bolsonaro esticou a corda da democracia no seu primeiro ano e meio de governo, tendo como ápice desse movimento seu descontentamento com decisões do STF sobre o inquérito das “fake news”, em maio de 2020. Neste momento, gritou aos correligionários em frente do Palácio do Planalto: “Chega! Acabou!” O problema é que no mês seguinte, em 18 de junho, foi preso seu amigo Fabrício Queiroz, antigo assessor do filho Flávio Bolsonaro, sob a acusação de crime pela prática da “rachadinha”. O presidente continuou, de tempos em tempos, a expressar visões de mundo autoritárias, porém, para salvar a família, iniciou o namoro com o “centrão”.
O relacionamento não se tornou logo de cara um casamento. Bolsonaro queria a proteção legislativa de seu mandato e de seus filhos, e em troca também prometia proteger parcela do “centrão” contra antigos fantasmas de denúncias de corrupção. Havia outras afinidades também, vinculadas a uma visão conservadora de mundo, mas entre o noivado e a coalizão muitas conversas ocorreram sem que o presidente entregasse presentes e anéis caros à sua noiva.
Algo mudou nos últimos meses, levando a um casamento de papel passado, sacramentado com as eleições de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) ao comando do Senado e, sobretudo, de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara. Primeiro, o fracasso no combate à covid-19 começou a pesar na popularidade do presidente. É certo que ele tem fracassado em várias políticas públicas, arranhando cada vez mais sua imagem pública. Todavia, a situação de Manaus, com centenas de pessoas morrendo por falta de oxigênio, criou uma simbologia pesada contra sua desastrosa gestão da crise sanitária. A palavra impeachment voltou ao vocabulário das ruas e, por enquanto em menor proporção, dos políticos. A instância que pode desencadear o processo não poderia ser entregue a um líder descolado de um governismo visceral.
Somada a este temor em perder o mandato, outra coisa acelerou os planos de casamento com o “centrão”: a figura de Rodrigo Maia. O então presidente da Câmara, além de ser mais independente do que Bolsonaro desejava, começava a conversar com vários atores políticos para construir uma alternativa de centro contra o bolsonarismo em 2022. Vale recordar o nome dos interlocutores: João Doria, Ciro Gomes, Luciano Huck, e provavelmente o mais radical dos bolsonaristas já deve ter espalhado a “fake news” de que Maia teria jantado com Lula em São Bernardo. De aliado incômodo, ele se transformara em inimigo - e a estes, na lógica de Bolsonaro, só cabe a destruição política.
Com este desenrolar dos acontecimentos, o Palácio do Planalto alimentou, com grande sucesso, a candidatura de Arthur Lira, despejando bilhões do Orçamento público e distribuindo centenas de cargos para agradar aos parlamentares. Era uma batalha de vida ou morte e Bolsonaro levou muito a sério essa guerra, porque presenciara os ocasos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. O nome escolhido foi perfeito, porque Lira é um político extremamente habilidoso nos corredores da Câmara, além de ser a cara do deputado típico, sabendo qual é a lógica que orienta a carreira política padrão. Foi a vitória do “centrão-raiz”, sem as veleidades intelectuais e ideológicas que Rodrigo Maia tentou dar ao seu grupo.
É possível retrucar que todos os presidentes, desde Sarney, precisaram do apoio do “centrão”. Logo, Bolsonaro não estaria inventando a roda. Mas há duas grandes novidades nesta nova versão do presidencialismo de coalizão. A primeira é que todos os governos contaram com aquilo que o cientista político Cláudio Couto chama de “partidos de adesão”, mas quem mandava nas alianças eram os partidos líderes, representados principalmente pelo PSDB e PT, com suporte de parte do (P)MDB e do DEM (antigo PFL). A agora é o inverso: o núcleo do poder político congressual está nas mãos do “centrão”, conhecido pela lógica fragmentada e distributivista de atuação de seus membros, e ele que definirá agora a agenda maior do país.
Em poucas palavras, os governos tucanos e petistas procuravam governar com o apoio do “atraso”, mas imaginavam liderar esse processo, inclusive propondo políticas universalistas - como o Plano Real e o Bolsa Família - que atacavam em cheio o modelo clientelista tradicional. Com a inversão completa do modelo, fica a pergunta: que tipo de modernização vai ser proposta pelo “centrão”?
Há uma segunda novidade: a junção do fisiologismo desbragado com um presidente que tem uma visão autoritária da política. Quem vai definir o padrão hegemônico do jogo? Claro que talvez cada um ceda um pouco, mas, mesmo assim, o que significa essa troca? Para o Congresso, fechar os olhos para práticas autocráticas do Executivo. E para o Palácio do Planalto, fechar os olhos para as práticas clientelistas que vão invadir a Esplanada dos Ministérios.
Muitos estão apostando que o custo desse casamento será muito alto para o bolsonarismo, porque nunca o “centrão” teve tanto poder de barganha como agora. Trata-se de um cenário com boas chances de acontecer e isso pode se intensificar se a popularidade de Bolsonaro piorar. Entretanto, o bolsonarismo não é uma força política como as anteriores. É um movimento de massa liderado por político messiânico de extrema-direita capaz de mobilizar seu séquito, geralmente violento, contra quem o descontenta. Além disso, o presidente está num cenário em que a oposição, tanto a de centro quanto a de esquerda, está muito dividida e sem um projeto claro de poder.
Desse modo, se os “partidos de adesão” quiserem aumentar seu preço, o outro lado do balcão não vê, por ora, concorrentes e está disposto a usar suas armas de dissuasão. O mais provável é que, nos próximos seis meses, a crise aumente de intensidade, mas não será fácil para o “centrão” separar-se marotamente do bolsonarismo. Haverá muita tensão neste casamento do autoritarismo com o fisiologismo do “centrão”. Qual agenda legislativa sairá dessa relação e como será o comportamento dos parlamentares na tramitação e votação dos projetos? Essa é a pergunta que definirá a política brasileira neste ano.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
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