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Candido Bracher: A aposentadoria do banqueiro

São 16h em ponto quando a câmera do notebook se acende para este “À Mesa com o Valor” virtual. Não faz muito tempo que Candido Bracher chegou à sua casa depois de mais um dia de trabalho. Mas este é um dia atípico em tempos atípicos. Foi sua primeira jornada em meses na sede do Itaú Unibanco, motivada pela divulgação dos resultados do ano pandêmico de 2020. E foi sua última como presidente do maior banco da América Latina. “Foi tudo bem, muito simpático. Voltei para casa, e meu primeiro compromisso depois de aposentado é esta entrevista”, diz, ainda se acostumando com a nova roupagem. Candido Bracher assumiu o comando do Itaú em maio de 2017 com a missão de substituir Roberto Setubal, que foi a face pública do banco por mais de duas décadas. Deixou o leme na terça-feira, cumprindo o rito imposto pelo aniversário de 62 anos, data-limite prevista no estatuto para os ocupantes do cargo, e o passou às mãos de Milton Maluhy Filho, 18 anos mais jovem. De agora em diante, será membro do conselho de administração. Talita Moreira faz um excelente perfil de um dos mais importantes homens de negócio do Brasil, vale muito a leitura. Continua a seguir.


“Você fica imaginando que um dia vai chegar - e chega. Meu script era relativamente bem desenhado. Eu faria a apresentação do resultado de 2020 [nas teleconferências com analistas] e passaria a palavra para o Milton, que faria as projeções para 2021 e abriria para perguntas e respostas. Imaginava que todas as perguntas seriam para o Milton e eu estava correto. Todo mundo quer saber do futuro”, afirma.

 O futuro bateu à porta de Bracher pela primeira vez há 40 anos, quando o jovem recém-formado em administração na Fundação Getulio Vargas embarcou para Zurique rumo a um estágio no Swiss Bank Corporation. Ficaram no Brasil o desejo de ser professor primário e Teresa, namorada da vida toda - com quem é casado e tem três filhos. Foi, para ele, uma escolha difícil, e o banqueiro-executivo vê esse como um dos momentos definidores de sua trajetória. Ali, abraçou de vez o mercado financeiro.

Tempos mais tarde, ao comentar com o pai como foi bom ter tomado a decisão de ir para a Suíça, o pai gracejou: “Sua decisão, meu filho? Eu praticamente tive que te empurrar para dentro daquele avião!”, recorda Candido Bracher, aos risos. “É interessante ver como duas pessoas podem ter visões diferentes sobre o mesmo momento.”

Bracher é um dos cinco filhos de Sonia e Fernão Bracher. O pai, que foi presidente do Banco Central (BC) e fundador do BBA no fim dos anos 1980, é sua grande referência. Juntos, os dois desenvolveram uma relação de parceria e cumplicidade que se estendeu da família para os negócios até a morte do banqueiro, em 2019.

O futuro bate à porta de Candido Bracher novamente agora, e desta vez acena com a boa promessa de livros para ler, mais tempo em família e o “compromisso de não assumir nenhum outro compromisso nos próximos 12 meses”. Mas ele admite que já começou a falhar nesse item da lista. Além de atuar no conselho do Itaú, algo que já estava previsto, aceitou um convite para se tornar conselheiro da Fundação Itaú para Educação e Cultura, temas que lhe interessam.

Mesmo assim, Bracher quer pensar com calma nos próximos passos. Diz que está “trocando as penas”, pegando emprestada uma expressão usada pelo pai quando se aposentou. “É verdade que a contrapartida dessa liberdade é uma certa angústia do espaço vazio. Mas, uma vez a cada 40 anos, refletir sobre que tipo de atividade quer ter é uma coisa que você pode fazer. A última vez em que eu refleti foi antes de ir para a Suíça, em 1980. Então, agora posso novamente tomar um tempo para pensar”, afirma, sentado à frente de uma estante de livros - espaço que se tornou local de trabalho e cenário de reuniões e vídeos que gravava para a equipe durante a pandemia.

O coronavírus impôs uma nova rotina ao executivo, que foi para o “home office” logo no início da crise junto com outros 55 mil funcionários do banco. Todos eles continuam remotos. A situação inesperada, afirma, serviu como uma “avant-première” da aposentadoria. “Já estou há um ano almoçando em casa”, diz.

Defensor do isolamento social, Bracher sai de casa raramente, em geral nos fins de semana, para pedalar pela cidade. Ele diz que o distanciamento é um preço necessário a se pagar para salvar vidas e vê “uma certa imprevidência” do governo na demora para comprar vacinas e na aposta em apenas dois imunizantes. “Pelo know-how enorme que o Brasil tem nisso, não faz muito sentido a gente ter vacinado até agora 1% da população quando podia ter vacinado 5%, 10%”, avalia.

Apesar do tom negativo, Bracher evita críticas diretas ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e acha que é mais produtivo agora unir esforços pela vacina do que cerrar fileiras pelo impeachment - um traquejo que a vida de banqueiro lhe deu para dizer o que pensa sem bater de frente com políticos.

Essa habilidade foi talhada sob influência do pai, mas também nos bancos de atacado por onde Bracher passou nos anos 1980, antes de sua família fundar um deles. Após a temporada europeia e distante do plano de dar aulas, Bracher começou a trabalhar em 1981 no Banco da Bahia Investimentos, dos Mariani, próximos de sua família. De lá, foi para o Banco de Desenvolvimento de São Paulo (Badesp) e depois para o Itamarati, do então “rei da soja” Olacyr de Moraes (1931-2015).

Era diretor da instituição quando Fernão Bracher o chamou para trabalhar no banco que estava montando com Antônio Beltran Martinez e Pérsio Arida, o BBA. Inicialmente, rechaçou a ideia. “Me dava muito bem com meu pai, almoçávamos juntos nos fins de semana, e não queria ter que ficar falando de negócios com ele”, afirma. “E também estava muito bem no Itamarati, e ele estava me convidando para ganhar menos.”

Alguns meses mais tarde, Beltran voltou à carga. Arida havia desistido da empreitada, e os sócios achavam importante ter alguém mais jovem no negócio. Dessa vez, foi diferente. “Docemente constrangido, aceitei.”

O BBA começou a operar em 1º de agosto de 1988 com apenas 20 pessoas e patrimônio líquido de US$ 20 milhões. Bracher define aquela época como sua experiência numa startup, embora a palavra ainda não estivesse na moda. Nos meses que antecederam o lançamento, a equipe diminuta fazia de tudo um pouco - da elaboração do plano de negócios à compra dos móveis para a sala alugada na rua Líbero Badaró, então o centro financeiro de São Paulo. “Foi quando alguém percebeu que a mesa de operações não tinha relógio. Meus pais correram ao Mappin para comprar dois relógios de parede”, lembra.

Bracher teve papel relevante na definição do modelo de negócios do BBA. Propôs que o banco se concentrasse no atacado e não cedesse à tentação de disputar espaço no mercado de varejo - para decepção de Beltran, que não estava achando muita graça em ser dono de banco se não podia ter seu próprio talão de cheque. “Eu disse para ele: ‘Nós vamos ser clientes do Bradesco’.”

Fernão Bracher e Beltran mantinham laços históricos com o banco da Cidade de Deus, mas foi com seu maior concorrente privado, o Itaú, que acabaram se associando 15 anos mais tarde. Àquela altura, o BBA havia se tornado BBA Creditanstalt e o alemão HVB Group tinha 48% do capital. Os negócios iam bem, e o patrimônio de US$ 20 milhões havia se transformado em US$ 500 milhões. Mas havia um problema. Bancos de atacado por natureza captam de um número restrito de clientes, e a sucessão de crises que se estendeu pela década de 1990 os tornava particularmente vulneráveis. Bracher temia que, a qualquer momento, os sócios estrangeiros batessem em retirada. “Era um momento de muita volatilidade. Aquilo me tirava o sono”, diz.

Foi quando Alberto Barreto, então vice-presidente do Itaú, transmitiu o recado a Eduardo Vassimon, que integrava o núcleo duro do BBA: se os alemães quisessem sair do negócio, o banco brasileiro teria interesse em conversar. Era a senha para a aproximação que desembocaria na formação do Itaú BBA - com a venda, inicialmente, de 95% do capital total para o Itaú em novembro de 2002, e a integração total dos dois bancos tempos depois. A gestão ficou nas mãos dos executivos vindos do pequeno banco de atacado, e Bracher assumiu a presidência da nova estrutura em 2005, quando o pai se retirou.

O Itaú BBA estava sob seu comando em um dos capítulos mais controversos para a instituição, quando a crise de 2008 expôs grandes empresas a perdas bilionárias com “derivativos tóxicos” vendidos pelo banco. Roberto Setubal saiu em defesa da operação, dizendo que as companhias sabiam o que estavam fazendo ao comprar os instrumentos financeiros com exposição cambial. Porém, Bracher não titubeia ao apontar esse como o episódio mais ingrato de sua carreira. “Eram clientes do atacado, maiores, vacinados, sabiam do risco, mas nem eles nem nós imaginávamos a proporção que aquilo podia tomar. Foi um erro. Houve muitos aprendizados”, afirma.

Habitualmente discreto, o executivo havia sido um dos artífices do desenho do Itaú BBA e, à frente da operação, aproximou-se muito de Setubal, então presidente do Itaú. O estilo meticuloso e discreto fez com que Bracher ganhasse a estrita confiança do banqueiro. Amigo de longa data de Pedro Moreira Salles, ajudou a construir pontes entre ele e o chefe nas conversas iniciais a respeito da união entre Itaú e Unibanco em 2008 - uma atuação que o executivo considera “marginal” para a fusão.

Quando o conselho de administração do Itaú começou a preparar a sucessão de Setubal, o nome de Bracher estava longe de ser o mais citado nas rodas de apostas do mercado. Mas acabou levando, já sabendo que teria um mandato de apenas quatro anos pela frente. “Por isso, sabia há muito tempo que este seria meu último dia. É uma das coisas boas de se ter uma governança clara”, diz.

Bracher chegou à presidência do Itaú com a incumbência clara de fazer uma transição suave da gestão de Setubal (que em todo caso continuaria muito presente) e, ao mesmo tempo, preparar o banco para uma guinada gigantesca, imposta pelas inovações tecnológicas no setor financeiro. A missão era - ainda é - transformar a instituição de dentro para fora, o que implicava rever processos, mudar a cultura de trabalho e trocar sistemas. Não era uma tarefa muito glamourosa, mas foi um dos desafios que mais gostou de encarar na carreira. “É um trabalho meio subterrâneo, de enterrar cano, de lidar com sistemas legados. Vai levar um tempo, mas acertamos no desenho e temos evoluído muito.”

Para o executivo, os grandes bancos têm perspectivas “muito boas” se conseguirem lidar com os desafios tecnológicos. A pressão competitiva das fintechs, diz, força as instituições financeiras tradicionais a aprimorar suas competências. “A XP ajudou muito o Itaú a ser melhor em investimentos, e agora temos o lançamento do íon [aplicativo de investimentos], que vai nos ajudar muito”, avalia.

O casamento da XP com o Itaú durou tanto quanto o mandato de Bracher. O investimento na corretora foi selado nos primeiros dias da gestão do executivo, embora as negociações tenham sido entabuladas por Setubal. Agora, o arranjo está prestes a ser desfeito - o banco fará uma cisão e transferirá a participação de 41,05% que tem na XP diretamente a seus acionistas.

Há quem questione se investir na XP, apesar de exitosa do ponto de vista financeiro, não tenha sido um erro do Itaú por dar munição a um rival. “Se colocado de novo diante da mesma decisão, da qual participei, eu faria exatamente igual”, diz Bracher, com uma pausa antes da resposta. “Essa história de dar asa a cobra... É uma ilusão achar que você faz o mercado. A cobra ia voar de outro jeito, eventualmente ia demorar um pouco mais, mas ia.”

O que precisa haver, segundo Bracher, é igualdade regulatória entre concorrentes que prestam o mesmo serviço. Essa é uma demanda que vem surgindo entre os bancos, aqui e ali, à medida que as fintechs ganham relevância em determinados segmentos ou em número de clientes, mas são submetidas a exigências mais brandas pelo BC. Pela manhã, Maluhy havia levantado essa bola numa das teleconferências com analistas e, questionado agora, seu antecessor afirma concordar com a ideia. “É importante ter ‘level playing field’, não importa se chama banco ou não chama banco”, afirma.

Bracher deixa para Maluhy uma carteira de crédito de R$ 870 bilhões, 48% maior que no início de sua gestão. A inadimplência está aparentemente sob controle, embora continuem incertezas relacionadas à pandemia e ao crescimento econômico. O executivo diz que a condução do banco no tratamento da crise entre funcionários, com o trabalho remoto, e clientes, com a flexibilização de pagamentos de contratos de crédito, é motivo de orgulho para ele. “O Itaú esteve à altura do desafio que a covid colocou para a sociedade brasileira”, avalia.

Também considera uma vitória que Itaú, Bradesco e Santander tenham se unido em torno do Plano Amazônia, voltado a combater o desmatamento na região. A iniciativa surgiu diante da piora nos indicadores ambientais e da pressão de investidores internacionais, incomodados com a postura do governo brasileiro. Bracher novamente evita bater de frente com Bolsonaro, mas observa que os “fatos dizem enfaticamente que a gente está deixando a desejar” tanto na questão ambiental quanto na vacinação.

Daqui para a frente, caberá a Maluhy representar o Itaú no Plano Amazônia, ao lado de Octavio de Lazari Jr. (Bradesco) e Sergio Rial (Santander). “Nessas coisas, você não pode dizer ‘pede para minha área de sustentabilidade’. O banco tem que ter sua área de sustentabilidade. Não é uma atividade terceirizável, então o CEO tem de assumir e levar isso em frente”, diz. “Fico contente em ver o quanto Milton já se envolveu.” Bracher, no entanto, pretende continuar acompanhando a evolução do tema como conselheiro do banco e também em casa - Teresa, sua mulher, é ambientalista e conduz um projeto de preservação no Pantanal.

Passar mais tempo na fazenda é uma das coisas que pretende fazer daqui para a frente. Dedicar mais tempo à leitura é outro dos pequenos prazeres cotidianos que espera da aposentadoria. Leitor voraz, Bracher acabou “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior - “achei muito bom, um belo livro -, e está lendo “Tempos Ásperos”, de Mario Vargas Llosa. Os dias livres também lhe permitirão, vez ou outra, buscar o neto de quase dois anos que acabou de entrar na escolinha. “Não tenho nenhum grande desejo reprimido”, diz.

Já são 17h30, e Bracher precisa ir para seu segundo compromisso pós-aposentadoria: um corte de cabelo o espera dali a pouco. Antes de se despedir, fala sobre as fotos pessoais que enviou para ilustrar este perfil. Algumas imagens mostram ele e a família em jogos do Santos e no Pantanal - “duas paixões”. Na outra, aparece com o pai - “minha grande referência”.

Ao olhar para trás, afirma que não poderia desejar mais do que a carreira em bancos lhe proporcionou em 40 anos. “Do ponto de vista de aprendizado, de pessoas que conheci, dos meus chefes, tive uma sorte enorme. Sempre trabalhei para pessoas que admiro, e isso não tem preço.”



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