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A fuga da classe A para o interior

Nos primeiros dez dias de 2021, Eduardo Xambre Henrique Filho, de 10 anos, não tocou em seu videogame ou tablet. Preferiu andar de bicicleta e curtir o bosque da nova residência da família, que trocou um confortável apartamento no Brooklin, bairro nobre da Zona Sul paulistana, por uma casa em um condomínio fechado na região de Valinhos, a 90 quilômetros da capital paulista. A mudança de comportamento do filho foi um dos elementos que fizeram seu pai, o diretor comercial Eduardo Xambre Henrique, de 41 anos, aproveitar as vantagens do home office para buscar qualidade de vida longe da metrópole, movimento que tem se intensificado — sobretudo quando se trata da população com maior poder aquisitivo. Após um 2020 de “test drive” no campo ou na praia, durante a quarentena, a mudança definitiva de CEP já provoca transformações no mercado imobiliário e na dinâmica das cidades menores. As razões para a mudança são variadas. Além da qualidade de vida, há a busca por mais segurança, mais espaço e conforto diante da possibilidade de novos períodos de confinamento e até mesmo a economia de gastos em razão do menor custo de vida no interior, escrevem Henrique Gomes Batista e Sérgio Matsuura na edição da revista Época desta semana. Continua a seguir. 


O movimento, mais pronunciado em São Paulo e no Rio de Janeiro, também ocorre em capitais menores, como Porto Alegre, Natal e Fortaleza. Todos os motivos da retirada, no entanto, só puderam ser viabilizados devido a uma mudança maior: a do mercado de trabalho, que agora deve adotar, na maioria dos setores, o padrão híbrido, aliando os modelos presencial e remoto. “Eu tinha essa vontade de morar no interior há alguns anos, mas a questão de home office ajudou a impulsionar a decisão”, afirmou Henrique, que trabalha em uma multinacional europeia e adquiriu uma casa que tem mais que o dobro da área útil de seu apartamento, além de uma vasta área verde. “São Paulo agora é para fazer turismo, visitar amigos e familiares.”

A infraestrutura de serviços da região foi determinante para Henrique optar por Valinhos, assim como a facilidade de acesso à rodovia e a oferta de internet banda larga de qualidade. Ele e sua mulher, Mayra Minsoni, sabem que, terminado o período de vacinação, terão de se deslocar mais, apesar do home office. Em 2020, mesmo ja vivendo provisoriamente no interior, Mayra precisou participar de algumas reuniões presenciais na empresa em que trabalha, uma companhia de papel e celulose com escritório na Faria Lima, a avenida que é o coração empresarial do Brasil. “Antes eu estava a 15 minutos do escritório, agora vou demorar mais. Mas só de ver a felicidade dos meus filhos, sabendo que teremos qualidade de vida, compensa”, afirmou ela, que além de Eduardo Filho é mãe de Gabriel, de 5 anos.

Mas o casal reconhece que nenhum dos fatores que impulsionaram a mudança faria sentido se não houvesse, na área da nova residência, uma educação que julgassem equivalente àquela recebida pelos filhos na capital. “O que me fez vir para cá foi a unidade do Colégio Porto Seguro na cidade. Meus filhos já estudam na unidade do Morumbi (há outra também na região do Panamby), e isso foi totalmente decisivo para nós”, afirmou Mayra. Eles não foram os únicos a fazer esse movimento. Num período de crise econômica e aumento do desemprego, a unidade Valinhos do Colégio Porto Seguro começará o ano letivo de 2021 com cerca de 20% mais alunos que em 2020, um crescimento recorde da unidade, que nunca via o número de estudantes crescer anualmente mais de 5%, nos períodos mais prósperos.

Assim como Eduardo e Gabriel, muitos dos novos alunos da unidade do interior são oriundos dos dois colégios da capital paulista, onde a mensalidade gira em torno de R$ 4 mil e há a possibilidade de ensino em alemão. “No segundo semestre de 2020 já começamos a perceber um movimento atípico de famílias, que primeiro vieram passar a quarentena, mas decidiram que a vida pode ser melhor no interior e começaram a ver a opção de morar por aqui e colocar seus filhos na escola”, afirmou Mauritius Reisky von Dubnitz, diretor de Relações Institucionais do Porto Seguro. Ele prevê um novo crescimento de cerca de 20% no número de alunos de Valinhos em 2022, campus criado pela escola nos anos 1980, antevendo a busca por qualidade de ensino em uma das regiões mais industrializadas do país, com grandes multinacionais e empresas de tecnologia. “Valinhos é segura, tem qualidade de vida, uma boa rede de rodovias com rápida conexão com São Paulo ou Campinas e muito perto do aeroporto de Viracopos, que tem conexão com 120 cidades do Brasil e do mundo”, disse Dubnitz.

Outras famílias decidiram mudar-se, mas sem abrir mão da educação paulistana, aproveitando os programas de educação à distância das escolas, que deverão continuar neste ano, por causa da lentidão no processo de imunização. Esse é o caso de Juan José García Gomez e de Adriana Maria Cucalon Bojero, que vão manter as filhas Simone, de 7 anos, e Rafaella, de 4, estudando remotamente no Colégio Dante Alighieri, na região paulistana dos Jardins, mesmo com a família, a partir de agora, morando em Campos do Jordão. “Já visitamos três escolas da cidade e vamos colocá-las em um colégio aqui caso volte o estudo presencial, mas queremos manter algum tipo de educação à distância”, disse o empresário do setor de construção. “Talvez as escolas aqui não tenham o mesmo nível de São Paulo, mas há escolas boas. E a qualidade de vida compensa”, disse ele, lembrando que, na nova casa, as meninas enfim realizaram o sonho de ter um cachorro, o Sowe. Mexicano radicado no Brasil há dez anos, García nunca teve uma experiência no campo: trocou a gigantesca Cidade do México por São Paulo. “Agora, todos os dias eu e minha esposa conseguimos tomar café e almoçar com as meninas. Lá a gente trabalhava tanto que quem fazia isso com elas era a babá.”

O advogado Leonardo Camacho também tinha preocupação com a escola dos filhos quando decidiu ampliar a estada de 60 dias em Petrópolis para uma experiência permanente. Casado, pai de um menino de 7 anos e de uma menina de 1 ano e meio, ele sonhava há tempos em se mudar para a cidade, mas o plano era sempre protelado: “Não era viável subir e descer a serra todos os dias”, disse. Com o home office, os planos mudaram, mas Camacho considerou um fator de sorte estar justamente em Petrópolis a escola que foi a primeira colocada do Enem de 2019 no estado do Rio de Janeiro. “E a mensalidade custa a metade do que eu pagava no Rio”, contou. “Nós também tínhamos dúvidas se iríamos nos adaptar com a restrição de horário dos serviços. O que percebemos é que agora temos uma rotina mais tranquila. Não precisamos da correria, de tudo aberto 24 horas por dia. A vida não precisa ser assim.”

O economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Fabio Bentes, avalia que, embora o movimento esteja concentrado nas faixas de renda mais altas, já é possível notar uma desconcentração e uma pulverização populacional dos grandes centros. “E um dos primeiros sinais está no mercado imobiliário”, ponderou. Em Petrópolis, cidade escolhida por Leonardo Camacho como nova morada, os reflexos da chegada de novos moradores já são percebidos no aumento das vendas de imóveis. Dados da prefeitura mostram que até outubro do ano passado, o último balanço disponível, num período de crise econômica, o recolhimento do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis — pago após a compra de um imóvel — havia chegado a R$ 17,3 milhões no ano, acima da meta do município para 2020, de R$ 16 milhões. Imobiliárias e corretores de imóveis da cidade confirmam o bom momento e relatam uma mudança no perfil dos compradores após a pandemia. Se antes a busca era por uma casa de veraneio, agora eles procuram um novo endereço para morar.

Marcos Labanca, sócio da Labanca Imóveis, contou que os resultados de 2020 estão entre os melhores da empresa, com mais de 70 vendas, o dobro de um ano normal. E a expectativa é que o mercado continue aquecido em 2021, com mais famílias se mudando para a cidade em busca de qualidade de vida. “Acho que as pessoas concluíram que ficar em isolamento dentro de um apartamento é complicado, é monótono. Então, passaram a procurar lugares para morar com um gramado, onde dá para ver o céu, com menos gente”, disse Labanca. “E, claro, os juros baixos ajudaram muito. Já está difícil encontrar uma casa boa para comprar.” Segundo Fabricio Junqueira, delegado do Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Rio de Janeiro para a região, entre maio e agosto a procura em sites de imobiliárias por imóveis na cidade aumentou, em média, 300% em relação ao mesmo período de 2019. “Quando começou a pandemia, nós ficamos muito preocupados, mas em abril houve uma explosão na locação por temporada, e logo depois a conversão em vendas de imóveis”, lembrou o corretor.

Essa dinâmica também é percebida em outros estados. Ricardo Castello Branco, diretor comercial da empresa imobiliária Alphaville Urbanismo, que possui mais de 130 empreendimentos à venda pelo país, contou que, durante a pandemia, viu os lotes que sobraram do Alphaville Brasília, localizado a 40 quilômetros do Plano Piloto, já no estado de Goiás, serem integralmente vendidos no ano passado. “Agora, com o home office, não existe mais distância”, disse ele. Mas o que mais chamou sua atenção foi o lançamento do Alphaville Guarajuba, condomínio para 150 casas à beira-mar, em Camaçari, na Bahia. “Lançamentos como estes, de lazer e de alto custo, com lotes a partir de R$ 1 milhão, em geral levam um ano para serem vendidos. Conseguimos liquidá-lo, no meio da pandemia, em duas semanas”, disse. E a razão da compra, segundo ele, é moradia, não lazer.

No empreendimento baiano, o lote que estava previsto a R$ 1.200 o metro quadrado em seu lançamento foi vendido a R$ 1.500 e hoje já está perto dos R$ 2 mil. “Há uma valorização de espaço e da área de lazer. Vemos que hoje os condomínios precisam estar muito mais equipados, as casas das pessoas não são mais locais onde você praticamente apenas dorme de segunda a sexta para viajar aos fins de semana”, contou o executivo, que viu uma grande procura também pelo empreendimento Litoral Norte, também em Camaçari.

Em Gramado, cidade da serra gaúcha que desde o início da pandemia tem recebido moradores da capital, Porto Alegre, o movimento é similar. “Em Gramado e Canela, a pandemia trouxe um cliente que se assustou com o movimento do mercado financeiro e preferiu investir em algo sólido”, contou Débora Campos, da Gramado Prime Imóveis, ao explicar a valorização dos sítios e das casas mais espaçosas na região. Um dos que aproveitaram essa onda foi o empresário Alcindo A. Schenkel Júnior, que alegou, sobretudo, razões de segurança, aliadas ao advento do home office. “O estopim foi o assalto do qual minha cunhada foi vítima. Aqui temos segurança, qualidade de vida, natureza”, disse ele, que comprou um terreno de 1.200 metros quadrados em um condomínio fechado e está terminando o projeto de sua casa, onde viverá com a mulher, Claudia, e as filhas, Beatrice e Marina, de 9 e 10 anos.


Em Campos do Jordão, refúgio dos paulistanos na Serra da Mantiqueira, Marco Muratori, proprietário da imobiliária que leva seu nome, explicou que nunca viu um ano como 2020. “Vendemos imóveis que estavam na prateleira havia dois, três anos. Superei a minha meta de vendas em 65%”, disse o empresário. Ele contou que o perfil de cliente foi mudando com a pandemia: se antes do coronavírus o que movimentava o mercado imobiliário de Campos do Jordão eram imóveis de fim de semana, no primeiro semestre passaram a ser imóveis de segunda residência e, agora, residência definitiva. “Alugamos muitos imóveis no começo, por temporada, as pessoas testaram e agora estão comprando, pois estão vendo que é possível morar aqui e passar só dois ou três dias por semana em São Paulo.”

Novos condomínios já estão sendo construídos na cidade, em que as casas ou chácaras são avaliadas entre R$ 800 mil e R$ 1,2 milhão, sempre com grande área verde, mesmo que seja um pouco mais distante do centro da cidade, como a região da Nova Capivari e de Descansópolis, perto do recém-privatizado Horto Florestal da cidade. “Vemos muita gente aproveitando para quitar a dívida moral que tinha com as famílias, após anos dedicados prioritariamente ao trabalho.” A cidade, famosa pelo Festival de Inverno, está se preparando para o aumento da demanda por serviços decorrente da nova migração. Durante a pandemia, ao menos três clínicas médicas abriram, e restaurantes que só funcionavam aos fins de semana para atender a clientela turística agora abrem o tempo todo.

O movimento migratório, apesar de não ser ainda de “massa”, já provoca efeitos nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Os últimos levantamentos mostram uma recuperação mais rápida do mercado de trabalho em cidades do interior, em comparação com as capitais. No caso específico do Rio de Janeiro, dos 92 municípios do estado, o Rio está na 61ª posição no ranking de geração de empregos formais ente agosto e novembro de 2020, com variação positiva de 1,2%. Petrópolis está em 16º, com taxa de 3,5%.

Marden Campos, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ressaltou que as cidades que começaram a receber o novo fluxo de moradores geralmente já têm infraestrutura em decorrência do turismo, como é o caso de Campos do Jordão, Gramado e Petrópolis. Por isso, conseguem atender às necessidades de serviços de pessoas de fora. “Mas elas acabam ganhando um dinamismo econômico. E isso está acontecendo, principalmente na área de construção.”  Especialista em fluxos migratórios, Campos afirmou, porém, que, apesar de ainda não ser possível mensurar a dimensão do fenômeno, será improvável que ele adquira escala nacional, em razão da limitação de renda, sobretudo num período de crise, durante a pandemia. Além disso, nem todas as áreas podem oferecer sistemas híbridos a seus funcionários, sobretudo as categorias de base do setor de serviços, em que impera, muitas vezes, o trabalho presencial. Mas, nas cidades em que o movimento já ocorre, a tendência é aumentar.

Estudioso dos movimentos migratórios, o historiador Antonio de Ruggiero, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), destacou que o fenômeno atual parece inverter o paradigma clássico da migração, que era do trabalhador que muda das pequenas cidades para os grandes centros em busca de oportunidades.  “Vivemos o processo contrário, não só no Brasil, como no mundo. Em Londres, o coração financeiro se esvaziou quase completamente, o mesmo aconteceu em Nova York. As cidades universitárias sofreram o mesmo processo”, disse o pesquisador.  No caso de Nova York, um levantamento feito pela rede CBS com base nos dados oficiais de mudanças de CEP mostra que mais de 300 mil nova-iorquinos deixaram a cidade entre março e novembro do ano passado. Outro levantamento, feito pelo New York Times, mostra que, como no Brasil, a diáspora também é mais acentuada nos bairros mais valorizados da cidade, em que a saída dos moradores foi 40% maior do que a média municipal. Uma pesquisa do Manhattan Institute mostra ainda que dois em cada cinco moradores gostariam de deixar a metrópole, se pudessem. Nesse estrato da população, a principal razão para sair é a diminuição da renda, impactada pela pandemia, que pode inviabilizar a manutenção do padrão de vida naquela que é uma das cidades mais caras do mundo.

“É um movimento forte, significativo, mas é um movimento ainda das elites. Não acredito que possa gerar mudanças profundas de imediato”, afirmou Ruggiero, ele mesmo um imigrante vindo da Itália. Mas, diante de tantas mudanças provocadas pela pandemia, o historiador é cético sobre a característica definitiva desse êxodo da metrópole. “A pandemia impôs mudanças drásticas nas nossas vidas, mas não foi suficiente para mudar nossa cultura. Depois dos primeiros meses, até com um certo entusiasmo sobre a realidade que nos foi imposta, me parece que existe uma grande vontade de retorno à normalidade do passado”, aposta.





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