Pular para o conteúdo principal

Numa fábula de Kafka, a letargia que a pandemia provocou no Brasil

É parca a literatura acerca da peste iniciada há um ano. Era de se esperar. A catástrofe só piora, seu pico parece se afastar, não chegar nunca. Será preciso tempo, reflexão e fantasia para se obter relatos que revolvam a tragédia, que avaliem o peso de milhares e milhares de mortes, de milhões de vidas viradas de cabeça para baixo —como a sua. A literatura dá forma a sentimentos difusos, a pensamentos sem nome, e faz assim com que se perceba o que os indivíduos e a espécie são. Por isso a pandemia reavivou o interesse por “Decameron”, de Boccaccio, “Um Diário do Ano da Peste”, de Defoe, “A Peste”, de Camus.  Mas há um autor que, sem abordar expressamente calamidades bombásticas, diz muito dos dias que correm —dias de enclausuramento individual e anomia social. Talvez porque tenha escrito entre duas carnificinas, a Primeira e a Segunda Guerra. Ou porque, no interregno da grande guerra civil de 1914 a 1945, viu o que viríamos a ser: Kafka, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna na FSP, publicada sábado, 27/02.


Numa prosa de tabelião, ele anteviu o sem sentido, o mal-estar permanente e sem escape no qual nos precipitamos. A ladeira impele a pessoa rumo ao muro no qual baterá a cara e cairá —e a bota do ogro lhe pisará para sempre o rosto. Não obstante, vamos em frente.

“Pequena Fábula” é um microconto de três frases que Kafka escreveu ao redor de 1920. Às vésperas da morte, pediu ao amigo Max Brod que o destruísse, assim como todos os seus inéditos. Publicado postumamente, foi traduzido por Modesto Carone e está no livro “Narrativas do Espólio”. Ei-lo, na íntegra.

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via a distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.”

“Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e o devorou.

É uma fábula porque nela os bichos falam. Mas não tem nada de Esopo ou La Fontaine, não se encerra com uma lição de moral. Os contos e romances de Kafka nunca chegam a conclusões. E estão cheios de animais, vários inexistentes —e que aos poucos se descobre não serem humanos.

O mais ilustre deles é o “inseto monstruoso” de “A Metamorfose”, no qual Gregor Samsa se vê transformado ao acordar. Sem porquê nem quando, virou um bicho marrom e cheio de pernas, desprezado pela própria família. Desumanizado, morrerá desentendido de si mesmo.

Os personagens da “Pequena Fábula” são híbridos que falam como humanos e agem como animais. O “ah” inicial combina surpresa e constatação. Ele inaugura e sintetiza as oposições binárias que percorrem o curto diálogo de uma ponta à outra: estreito/vasto, paredes/canto, direita/esquerda, princípio/último, rato/gato.

Amálgama de felicidade e medo, a correria do rato serve de figura para os dias de hoje, nos quais a peste nos empareda progressivamente. O que era vasto se estreita até desembocar no canto onde duas alternativas aguardam o rato, a ratoeira ou o gato. Elas são na verdade uma —mutilação e morte.

Há ironia na terceira alternativa, oferecida pelo gato ao rato: é só mudar de direção, e em seguida o devora. O final surpreende, mas não chega a ser engraçado porque Kafka, realista, faz com que o mais forte triunfe inapelavelmente. Seu gato e seu rato são o oposto de Tom e Jerry.

O desenho animado é uma repetição obsessiva de agressões. Tom e Jerry normalizam a violência subjacente à vida real. Educam as crianças para o exercício e a submissão à violência. Ensinam a mesclar força e esperteza. Festejam o frenesi de um mundo movido a tiros e socos sem fim.

Kafka, não. Sem ilusões, incorpora tal mundo à arte. É por isso que sua literatura retrata tão bem a crise provocada pela peste. Sobretudo no Brasil. É como ratos que corremos entre paredes que convergem e nos conduzem ao canto onde o golpe nos aguarda. Um golpe político, coletivo e existencial —que nos animalizará de vez.

Nossa única chance é mudar de rumo. Mas como, se a letargia é geral? Em “Uma Mensagem Imperial”, a resposta imaginada por Kafka não chega nunca a seu destinatário, que “sonha com ela quando a noite chega”.

Em “Na Galeria”, o espectador, inerte diante das desgraças à sua volta, afunda “num sonho pesado, chora sem o saber”. A um amigo, Gustav Janouch, Kafka disse: “Existe muita esperança, mas não para nós”.

Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...