Neguinho da Beija-Flor, um dos ícones das Escolas de Samba do Rio, produziu a melhor frase sobre o estado de espírito melancólico que tomou conta do Brasil: “Estou de pleno acordo que não tenha Carnaval, porque seria desfilar por cima de cadáveres.” Esse luto vai além dos quase 250 mil mortos pela covid-19. Ele representa o fracasso completo do país no último ano em várias áreas: meio ambiente, educação, segurança pública, relações exteriores, direitos humanos e economia. Neste momento de pura tristeza, o presidente Bolsonaro ampliou o acesso às armas e disse que o povo vibrou com a medida. Há um contraste evidente entre o luto que perpassa todo este período pandêmico e a visão de mundo do bolsonarismo. De um lado, o crescimento dos casos e mortes pela covid-19, a ansiedade pela vacina como única forma de sair desta crise sem fim, a esperança e o temor que marcam a tentativa de reabrir as escolas, as cenas na TV mostrando o fogo e o desmatamento na natureza mais bela do país, a precarização da vida da maior parte da população. De outro, a descrença na ciência, a falta de empatia com os mortos pela doença, o conflito contínuo com prefeitos, governadores, STF e opositores, vistos como inimigos políticos a se destruir, o desmonte da maioria das políticas públicas e a crença na redenção do país pelo maior alimento do ódio: as armas, escreve Fernando Abrucio em sua coluna no Valor, publicada dia 19/2.
Não será fácil o país sair dessa encruzilhada. Primeiro porque o presidente usou o Poder do Executivo federal, com muitas verbas e promessas de cargos, para ganhar as eleições na Câmara e no Senado. Ambos os eleitos se dizem independentes, mas, como venceram com uma boa ajuda do governo, terão dificuldades para exercer a autonomia plena. Poderão calar a boca dos críticos e provar nos próximos dias que têm legitimidade suficiente para comandarem soberanamente o Legislativo.
Rodrigo Pacheco poderá instalar logo a CPI da pandemia, antes que os números piorem mais e situações semelhantes à de Manaus se repitam noutros lugares - na verdade, alguns Estados e municípios estão caminhando celeremente para o colapso. Arthur Lira precisa mostrar que a Câmara federal não é um puxadinho do Executivo e definir que, independentemente do conteúdo da questão, há limites claros do poder de decreto do presidente. Os dois terão estatura política para tomar tais decisões? A única coisa certa é que se não controlarem os arroubos autoritários do Palácio do Planalto, corremos o risco de passarmos por um luto democrático daqui a dois anos.
Os órgãos de controle também foram colocados contra a parede pelas jogadas políticas do bolsonarismo. As interferências no Ministério Público Federal, na Polícia Federal, na Abin e na Receita Federal, bem como a simbiose criada com as Forças Armadas, são sem precedentes no período democrático recente. Alguém poderia retrucar que o procurador-geral da República, Augusto Aras, está agora investigando o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. O estranho é que o MPF não tenha atuado antes, porque o governo tem receitado cloroquina há meses, o presidente não cumpre minimamente as regras de distanciamento social desde o início da pandemia e o descaso com as vacinas, pelas milhares de mortes que poderiam ser evitadas, é muito mais relevante do que qualquer outro pecado cometido por governantes anteriores.
Mais um fator dificulta sair dessa longa “quarta-feira de cinzas” na qual vivemos desde 2020: a oposição está muito dividida, em todos os espectros ideológicos, e não tem ainda a noção do que significa ter um presidente que se regozija quando aumenta o poder de os cidadãos atirarem e se matarem. E aqui não se trata simplesmente de montar uma frente ampla contra Bolsonaro. O que chama mais a atenção é como as legendas estão brigando freneticamente tanto no âmbito interno como no externo. PSDB e DEM estão se despedaçando em praça pública, bem como Ciro e PT se escolheram como inimigos. Enquanto isso, o verdadeiro adversário sorri do amadorismo político de todos os grupos que comandaram o país desde 1985.
O longo luto no qual estamos inseridos tem como motor principal as políticas públicas bolsonaristas. O país não terá uma vacinação relevante, em termos numéricos, provavelmente até o fim do primeiro semestre, numa perspectiva otimista. Isso significa mais e mais cadáveres, colapso do sistema de saúde e inviabilização de uma série de esferas da vida social, especialmente as atividades econômicas.
A pandemia foi desgraçada para além do campo da saúde. Seus resultados na educação foram terríveis, porque milhões de crianças pobres tiveram acesso precário ao ensino durante 2020. Desse modo, semeamos uma enorme desigualdade para o futuro, que se somará ao nosso pesado legado histórico. O retorno às aulas é fundamental, porém, isso não gera um “happy end” imediato. Muitas escolas e redes terão, num primeiro momento, enormes dificuldades de garantir as condições sanitárias mínimas. O desafio no campo pedagógico é ainda maior, uma vez que não será em 2021 que os alunos mais carentes recuperarão o que perderam no ano passado. Trata-se de uma tarefa de dois ou três anos letivos, que depende de muito investimento na formação dos professores, acolhimento das famílias, melhorias didáticas e, particularmente, colaboração federativa entre os níveis de governo.
Num contexto tão desafiador, o MEC, representante da visão educacional do bolsonarismo, não está olhando para os verdadeiros problemas do setor. O ministério teve no ano passado o pior nível de investimento desde 2015. O ministro disse que o problema da volta às aulas é dos Estados e municípios. E a agenda congressual do governo para a área prioriza o tema da educação domiciliar (“homeschooling”). Tente contar agora para as famílias que o melhor é que elas sejam as responsáveis pela educação de seus filhos, depois de terem visto as dificuldades da educação a distância na pandemia. Ouvindo isso, pais, mães, crianças e educadores só podem ficar desanimados com este projeto sem pé nem cabeça.
No fundo, o governo segue na educação a mesma estratégia da maioria de suas políticas: a criação de um modelo de desresponsabilização do Estado de seus deveres e tarefas. Assim também ocorre na área ambiental, que desaparelhou seus principais órgãos e agora vai retirar, em abril, as Forças Armadas da proteção da Amazônia. Alguém tem dúvida sobre o que vai acontecer? Desmatamentos e queimadas, especialmente a partir de junho, vão crescer fortemente, e sentiremos mais um luto ao longo de 2021, o de perder a natureza que deveríamos legar para nossos filhos e netos. Pior: isso terá efeito imediato em nossas relações com a União Europeia e os Estados Unidos, gerando mais problemas para a economia, que ficará cada vez mais longe da recuperação em V sonhada por Paulo Guedes - no curto prazo, o único V que veremos é o do crescimento dos casos e mortes pela covid-19.
Em meio a tantas mortes, o pior projeto do presidente Bolsonaro é a ampliação do acesso aos armamentos pela população. Desde 2018 houve um aumento em 65% no acervo de armas nas mãos da população brasileira. Os defensores diriam que isso protegerá os “cidadãos de bem”. Por enquanto, o resultado tem sido outro: o número de mortes violentas cresceu mais de 70% e, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 os crimes contra vida elevaram-se em 5%, exatamente num ano com mais gente dentro de casa e menos atividades econômicas e sociais.
A ideologia armamentista do bolsonarismo é um perigo para os cidadãos e para a democracia brasileira. Afinal, quem de fato será armado neste processo? Os mais pobres que precisam “se defender dos bandidos” ou grupos milicianos e indivíduos mais privilegiados com tendência maior à violência? Melhor não seria ter uma polícia mais bem treinada, equipada, com melhores condições de trabalho, vinculada às comunidades e controlada pela sociedade?
O que mais chama a atenção aqui é o silêncio da maior parte dos líderes religiosos do país, pois a religião cristã tem como principal discurso a defesa da vida. Mas lideranças evangélicas fundamentais, por exemplo, não só estão caladas agora frente a esta escalada armamentista, como também falaram pouco ou quase nada sobre o fracasso da política sanitária do país que favoreceu a multiplicação das mortes na pandemia. Quantos fiéis pobres morreram de covid-19? Esse luto ficará por anos e a história contará no futuro quem fechou os olhos para a “necropolítica” do presidente Bolsonaro.
Para que o país saía desse longo luto e volte a desfrutar da alegria do Carnaval em 2022, é preciso ter muita vacina, políticas efetivas de saúde pública e melhoria em várias outras políticas públicas. Isto porque há vários tipos de “cadáveres” em nosso caminho: além dos mortos, há vários tipos de perdas que dificultam o Brasil virar a página. Um deles é a falta de uma visão civilizada de como podemos favorecer mais a vida e incitarmos menos a morte. Afinal, no dia em que Bolsonaro comemorava o decreto das armas em São Francisco do Sul (SC), do outro lado do território catarinense, em Chapecó, o sistema de Saúde entrava em colapso por causa da covid-19. Em vez de ficar sorrindo com seu séquito armamentista, Bolsonaro poderia ter ido ajudar quem estava entrando neste luto sem fim.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
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