O Big Brother Brasil está bombando. Esse é um fato atestado tanto pelos tradicionais índices de audiência da televisão aberta quanto pelas novas métricas de popularidade da internet. Já na noite de estreia da 21ª edição do reality show da Rede Globo, o ibope em São Paulo foi de 25 pontos, superando em dois pontos a marca do ano anterior. A atração também teve sua melhor audiência dominical — 27 pontos — desde 2010, com o conturbado programa do dia 7 deste mês. Hashtags ligadas ao BBB estão no topo no Twitter, e as buscas sobre o programa no Google são as mais numerosas desde sua primeira edição, em 2002, segundo levantou a coluna de Patrícia Kogut no jornal O GLOBO. Mas há um mal-estar persistente no fundo de todo esse sucesso. As razões da alta audiência no domingo não são bonitas: sob uma pressão psicológica que seus 24 anos não conseguiram aguentar, o ator e rapper Lucas Penteado deixou a casa do BBB, às lágrimas, depois de ser hostilizado porque dera um beijo em outro participante, o economista Gilberto Nogueira, mais conhecido como Gil, escreve Jerônimo Teixeira na edição desta semana da revista Época. Continua a seguir.
O BBB é uma mescla de gincana e concurso de popularidade, disputada por um grupo de participantes — eram 20 no início, reduzidos agora a 17, depois de duas eliminações e da desistência de Lucas — confinados em uma casa, sem contato com o mundo exterior. A mecânica do programa incentiva o conflito, sim. Mas o jogo foi mais pesado neste ano. As tensões atingiram uma intensidade talvez inédita já na primeira semana. A certa altura, Lucas foi convertido em pária por um grupo de participantes da casa, impedido até de conversar à mesa das refeições. “Não quero que você fale enquanto estou na mesa”, disse a cantora Karol Conká ao jovem. Ao lado das divisões naturais entre diferentes “panelas” que sempre se formam na casa, questões raciais e de orientação sexual entraram em disputa. Até o cancelamento tornou-se tema de discussão na casa.
Em um momento em que a pandemia paralisou a produção de novelas e a Globo está reprisando folhetins de outros anos, o reality parece ter tomado o lugar do drama em capítulos como um fórum privilegiado para a discussão nacional de temas morais e comportamentais. Esse processo carrega contradições irônicas. O primeiro beijo gay em uma novela foi em Amor à vida, exibida entre 2013 e 2014. Como era previsível, a cena entre os atores Mateus Solano e Thiago Fragoso suscitou reações inflamadas dos mais conservadores, mas acabou se consagrando como um plácido marco na ficção televisiva nacional. A porta estava aberta para que expressões de amor entre pessoas do mesmo sexo fossem exibidas com tranquilidade.
O primeiro beijo gay entre homens no BBB, entre Gil e Lucas, causou uma celeuma imediata não em meio ao público, mas entre os participantes. A psicóloga Lumena Santos sugeriu que Lucas estaria “usando” Gil para se promover à custa da causa LGBT. A youtuber Viih Tube foi ouvir as impressões de Gil: ele percebeu emoção sincera no beijo ou se sentiu usado? Com bom humor e sem qualquer romantismo, Gil respondeu que sentiu apenas “safadeza”. Antes de considerar como a tal safadeza foi politizada, vale recuar à origem do programa, quando curiosamente se esvaziou a expressão “Big Brother” de suas ressonâncias políticas.
Criado em 1999 pelo holandês John de Mol, dono da produtora Endemol, e desde então exibido em mais de 50 países, o Big Brother tira seu nome de um clássico da ficção distópica do século XX: 1984, de George Orwell. Big Brother é como se chama o ditador do Estado totalitário onde vive o herói do romance, Winston Smith. O personagem é calcado em Josef Stalin — tem até os bastos bigodes do ditador da União Soviética —, mas De Mol não estaria pensando no comunismo quando criou o reality show. O nome Big Brother foi escolhido por causa de um aspecto tecnológico do mundo opressivo criado por Orwell: em todo lugar, há telas de TV que não só transmitem programas oficiais do partido único, mas também vigiam os cidadãos. A casa onde os competidores encontram-se fechados é um mundinho igualmente vigiado por câmeras em todos os cômodos e espaços externos, mas sem os aspectos mais desagradáveis imaginados por Orwell — censura, tortura, manipulação da história etc.
Sob o tacão pesado do Big Brother, Winston Smith não teme apenas as telas: vizinhos e colegas podem sempre denunciar a mais leve falta ideológica à Polícia do Pensamento. Quando se usa o adjetivo “orwelliano” para descrever uma situação do mundo presente — por exemplo, a onipresença das redes sociais em nosso cotidiano e o poder crescente das empresas do Vale do Silício —, em geral está se falando dessa combinação de vigilância tecnológica e ortodoxia do pensamento.
Em certa medida, as redes sociais permitiram que essa dupla infeliz se conjugasse sem precisar da força de um Estado totalitário. Figuras públicas ou anônimos estão hoje sujeitos a constrangimentos na internet — e na vida pessoal e profissional, pois nada hoje se encerra apenas nas redes — por divergências honestas com certo pensamento identitário, ou por deslizes triviais de comportamento e fala. É contra esse estado de coisas que um grupo de cientistas, intelectuais e escritores subscreveu, no ano passado, uma muito discutida e mal compreendida carta em prol da liberdade de debate, publicada na revista Harper’s. Entre os signatários estavam figuras como o psicólogo evolutivo Steven Pinker, a escritora J.K. Rowling e o linguista Noam Chomsky, que não são exatamente bestas-feras do conservadorismo. O presidente americano Barack Obama referia-se ao mesmo problema quando criticou, em 2019, a prática do cancelamento.
A internet é vetada na casa do BBB. Seus hóspedes, portanto, não têm acesso às redes sociais, meio por excelência do cancelamento e dos linchamentos virtuais. Essas práticas, no entanto, se reproduziram de forma direta e bruta em alguns relacionamentos da casa. A forma como alguns participantes tentaram, com Karol Conká à frente, isolar e silenciar Lucas foi um cancelamento em tempo real. O drama de Lucas comoveu os espectadores nas primeiras semanas, e expôs as contradições (ou a hipocrisia) dos integrantes do BBB que teriam mais afinidade com o pensamento identitário. Empatia e acolhimento, valores em tese caros ao novo progressismo, estiveram ausentes no modo como se tratou um jovem negro.
Uma cena do filme “1984”, de Michael Radford, adaptação da obra homônima de George Orwell, em que a figura do Big Brother representa o totalitarismo. No programa de TV, cuja origem é a rede holandesa Endemol, o Big Brother é a personificação da vigilância tecnológica.
Embora se comporte no BBB quase sempre com absoluta seriedade, Lumena tornou-se uma versão paródica da nova “polícia do pensamento”. Já pululam pelas redes memes perguntando se a psicóloga permite essa ou aquela atividade. Ela começou a ganhar notoriedade ao atacar os homens da casa que, maquiados com produtos de uma marca de cosméticos patrocinadora do BBB, desfilaram fazendo trejeitos caricatos. É razoável questionar os preconceitos possivelmente embutidos na brincadeira, mas Lumena, melodramática, apontou a violência da prática, quase como se os bofes farristas estivessem incitando o espancamento de travestis Brasil afora.
E então veio a noite do beijo de Lucas e Gil, na festa do sábado 6. Lumena subiu nas tamancas para acusar Lucas de “deslegitimar” a luta LGBT para ganhar pontos na competição. Ora, o BBB é uma disputa de popularidade. Toda semana, três participantes são submetidos, no “paredão”, ao voto dos espectadores, e aquele que a maioria do público decide eliminar deixa a casa, perdendo a chance de vencer o prêmio final de R$ 1,5 milhão. Por que seria “ilegítimo” tentar conquistar o voto do público gay nesse jogo? Lumena, lésbica assumida e ativista, mostrou que se considera dona da bandeira gay. E como é comum à militância mais intransigente, ela elevou sua causa a um patamar de pureza quase religiosa. Não se admite que um beijo gay sirva para promover Lucas, o rapaz que desejava ganhar a bolada do BBB para comprar uma casa para a mãe. No limite, não se autoriza nem que dois homens se beijem só para curtir uma noite na balada. Ou por safadeza, como disse Gil.
Não se deve supervalorizar os aspectos políticos do BBB. Algumas tretas da casa têm menos a ver com pautas identitárias do que com o inevitável choque de personalidades atiçado pelo confinamento e pela competição. A personalidade de Karol Conká, sempre propensa a “animosidades” (eufemismo com que ela própria se definiu), parece pesar muito na deterioração precoce das relações entre os brothers e sisters. E na mesma festa em que Lucas beijou Gil, houve muito barulho em torno de um conflito quase colegial envolvendo os afetos desatinados de quatro integrantes do elenco: o modelo Arcrebiano de Araújo Silva, vulgo Bil (que seria eliminado na terça-feira 9), o instrutor de crossfit Arthur Picoli, a atriz Carla Diaz, e a indefectível Karol Conká.
Mas a linguagem da política tomou, sim, conta das conversas da casa. O espectador tem visto participantes brancos como o cantor e ator Fiuk fazendo as purgações verbais obrigatórias de seu “privilégio branco”– ele até fez aulas de “militância” antes de ingressar no BBB, segundo a professora Laís Roberta relatou em depoimento nas redes sociais. Divertiu-se (ou irritou-se, a depender de suas inclinações ideológicas) com o jargão empregado por Lumena no elogio superlativo à amiga Karol Conká, uma mulher negra que sabe reivindicar seu “lugar de fala” e influencia “jornadas artísticas de não silenciamento”. Também pode ter se alarmado com o comediante Nego Di questionando as credenciais de afrodescendente de Gil, que por ter pele mais clara não seria negro, só — palavras de Nego Di — “um pouquinho sujinho”. Ou com os episódios em que Projota e Karol Conká zombaram do sotaque paraibano da advogada e maquiadora Juliette Freire, que foi atacada pela maioria dos inquilinos da casa, por nenhum motivo aparente, durante os primeiros dias do programa — nas redes sociais, especula-se que ela foi vítima de preconceito contra nordestinos.
Em 2005, na quinta edição do BBB, a homofobia já havia ocupado o centro da disputa. O futuro deputado federal Jean Wyllys, vencedor daquele ano, acusou de homofobia os homens que o haviam colocado em um paredão da casa. A divisão entre, de um lado, os bofes homofóbicos e, de outro, Jean e seus amigos — incluindo a hoje estrela global Grazi Massafera — seguia uma linha reta e clara. As coisas são bem mais complicadas na edição atual.
A casa felizmente não está dividida entre negros e brancos, ou entre gays e héteros. Mas parece haver uma disputa subterrânea sobre quem teria o “lugar de fala” mais adequado para representar seu grupo étnico ou sua orientação sexual. Lucas tentou se firmar como um militante primeiro da luta negra, e depois, quase de saída, da causa gay. Ele até ensaiou uma tentativa de dividir a casa em linhas raciais. Eis como Lucas explicou sua postura no programa Encontro com Fátima Bernardes, na terça-feira 9: “Não vou ir contra os meus”.
Na primeira semana do BBB, o rapper Projota puxou o jovem — que era seu fã — para uma conversa. Lembrou que era filho de branca, casado com branca, com filha branca, e que em seu rap jamais pregara o tipo de divisão racial que Lucas estaria buscando na casa. Nessa época, Projota ainda podia bancar a figura paterna. Adiante, estaria ao lado de Karol Conká e Nego Di na turma que queria a todo custo ver Lucas fora da casa. Na entrevista para Fátima, Lucas disse torcer hoje pelo time oposto, que congrega Gil, a consultora de marketing Sarah Andrade e Juliette Freire. Do trio, somente Gil é — contra o que diz Nego Di — negro.
Fechados desde 25 de janeiro na casa, o elenco do BBB está todo esse tempo privado de qualquer fonte noticiosa. Eles não sabem, por exemplo, que Arthur Lira foi eleito, com as bênçãos de Bolsonaro, presidente da Câmara de Deputados, ou que a operação Lava Jato chegou a seu fim oficial. Desconhecem a progressão do coronavírus no país e o lento avanço da vacinação. Os assuntos mais candentes da política brasileira ficam, assim, ausentes da casa.
Os temas que parecem caros a alguns participantes do BBB acabaram se desqualificando no meio de disputas miúdas, às vezes mesquinhas. Não quer dizer que eles não sejam importantes: o racismo brasileiro é um problema sério, ainda que o vice-presidente Hamilton Mourão tenha negado sua existência quando um homem negro foi espancado e morto em um supermercado Carrefour em Porto Alegre; a homofobia também existe e serviu como uma lamentável plataforma para a ascensão de um deputado do mais desqualificado baixo clero à Presidência da República.
Da maneira como foram desfraldadas na casa, porém, as bandeiras da igualdade racial e dos direitos LGBT só reforçaram a intolerância insular da esquerda identitária. A beleza do primeiro beijo gay entre homens no BBB, celebrada nas redes sociais pela cantora e produtora Preta Gil, saiu conspurcada pelo chilique desorientado de Lumena. E o debate sobre o matiz da pele de Gil chegou aos limites da antropologia praticada por teóricos do racismo pseudocientífico no século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
Mais do que as discussões carregadas de clichês progressistas, foi o drama de Lucas que mobilizou o público. Sim, o rapaz mostrou-se muitas vezes chato e inconveniente (especialmente quando bebia nas festas). Mas foi punido por isso com severidade desproporcional, isolado e hostilizado por boa parte de seus colegas na casa. Na noite do domingo 7, Tiago Leifert, apresentador do programa, disse aos participantes que ficaram na casa que havia faltado fair play no modo como eles conduziram o jogo com Lucas. Lumena chorou ao ouvir essas considerações.
A discussão sobre a autenticidade dos sentimentos de Lucas por Gil é ociosa. Relevante mesmo foi seu choro convulso nos momentos em que ele se preparava para deixar a casa. Quem viu a cena não duvida da sinceridade daquele sofrimento.
Seguiu-se uma onda nacional de solidariedade a Lucas. Celebridades como Taís Araújo e Elza Soares apoiaram o rapaz no Twitter. Sua vizinhança em São Paulo recebeu-o de volta com celebração e roda de samba. Ainda assim, permanece o fato de que ele passou por dias de dor psicológica intensa e que essa dor serviu para comover ou distrair milhões de espectadores. Abre-se aqui um abismo entre o reality show e o filme, a série ou a novela: os personagens do BBB não são atores profissionais simulando dor ou angústia. São pessoas de carne e osso sofrendo dor e angústia, e tudo porque as situações artificialmente criadas pela produção do programa as conduziram a esses sentimentos.
Sim, já aconteceu de diretores submeterem atores e atrizes a situações dolorosas ou humilhantes para conferir mais intensidade a alguma cena fundamental. Um dos exemplos mais delicados é o abuso sexual que a atriz Maria Schneider dizia ter sofrido na famosa “cena da manteiga” do filme O último tango em Paris, de Bernardo Bertolucci. Casos como esse suscitam delicados debates éticos. O fundamento do cinema, porém, é sempre a interpretação. Truques para assustar ou constranger atores são acessórios dispensáveis. No reality show, eles são obrigatórios. É claro que os participantes do BBB são todos legalmente adultos que em tese sabem no que estão se envolvendo. A margem de imprevisibilidade, no entanto, é larga, como fica provado pelo sofrimento de Lucas.
Há um mal-estar persistente no fundo do sucesso do BBB.
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