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Vencedor do Booker Prize, ‘Shuggie Bain’ retrata sofrimento na era Thatcher

Um romance cujo protagonista é gay, extremamente pobre, sofre perseguição por ser diferente dos outros garotos e cuida da mãe alcoólatra, não atrai o grande público. Mas “Shuggie Bain” (ainda sem edição brasileira), do escocês Douglas Stuart, vencedor do Booker Prize de 2020, o prêmio mais prestigiado da literatura em idioma inglês, foi best-seller na Escócia e em três dias teve esgotada sua edição de 50 mil exemplares nos EUA. Um crítico americano reclamou do titulo “invendável” e ainda assim, confessou, devorou suas 448 páginas “com sabor de Charles Dickens”. O título, “Shuggie Bain”, é o nome do personagem principal dessa história semiautobiográfica. Os seis finalistas do Booker Prize escreveram sobre indivíduos pelejando para conservar sua própria humanidade em circunstâncias terríveis. “Shuggie Bain” se destacou por oferecer algo profundamente pessoal, repleto de emoções viscerais, escreve Por Sonia Nolasco para o Valor, de Nova York, em resenha publicada dia 12/1 no jornal. Continua a seguir.

 

Margaret Busby, presidente do júri que selecionou o vencedor, saudou o livro como “destinado a ser um clássico”. E declarou: embora seja uma leitura sombria e brutal, há uma compaixão e um humor subjacentes que a tornam enriquecedora.

O romance se passa nos anos 1980, quando a política econômica da primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013) empobreceu o Reino Unido. O garoto Shuggie e sua família moram num conjunto de habitação popular desmantelado e sujo de fuligem em Pithead, área miserável de Glasgow onde existira antes uma mina de carvão.

A mãe, Agnes, é a criação mais atraente de Stuart: bonita como a atriz Elizabeth Taylor (1932-2011), lhe dizem. Carismática, glamourosa, autodestrutiva, caótica e constantemente bêbada, ela depende de Shuggie até para tomar banho e para acreditar que um dia tudo vai mudar.

Shuggie cresceu naquele ambiente desolado, numa família disfuncional. Seu pai, motorista de táxi e mulherengo, deixou Agnes e os três filhos, Leek, Catherine e Shuggie, nas mãos do governo, como indigentes. Agnes esbanja a mesada em vodca e catálogos de compras. Quando falta comida, rouba o distribuidor de moedas do aquecedor de água.

Catherine, que casa bem jovem e sai do país, e Leek arranjam meios de escapar. Shuggie, criança, fica para cuidar de Agnes. Enfrenta sozinho sua impossibilidade de ser como os outros meninos. Chega à adolescência sem ninguém para ajudá-lo a entender sua identidade sexual.

O romance é tanto sobre Shuggie quanto sobre Agnes. Ele cativa o leitor como o menino efeminado num bairro de machões; menino sensível que não gosta de futebol, prefere vestir bonecas e sonha em ser cabeleireiro. Entretanto, Agnes domina o enredo.

Ao mesmo tempo desesperada e arrogante, humilde e egoísta, ela se revela meiga na intensa ligação com Shuggie. Por isso sua desintegração se torna dolorosa de acompanhar. Em vinhetas inesquecíveis, Stuart descreve com profunda piedade o que acontece em 11 anos da vida da família Bain.

“Shuggie Bain” é também um romance de fundo político. Evoca o impacto intenso do “thatcherismo” na Escócia pós-industrial, a vida opressiva do país e a resiliência das mulheres da classe operária, tendo que trabalhar dentro e fora de casa porque os homens sofreram desemprego em massa.

Pithead virou uma comunidade matriarcal. Os homens são emasculados pela falta de trabalho e por dependerem de benefícios do governo. Shuggie é o único com esperanças no futuro. Apesar das decepções e traumas, ele ainda tem habilidade para amar.

De modo geral, os outros personagens do romance são egoístas e implacáveis. Há momentos de ternura, especialmente entre Shuggie e Agnes, e cenas alegres na família, mas não no mundo exterior, que é pintado como cruel e onde não se confia em ninguém.

Stuart também documenta a solidariedade e a resistência da classe operária em Glasgow por meio de relatos da união de comunidades, incluindo a revolução de 1989 contra o imposto comunitário (“poll tax”), que desencadeou o declínio de Thatcher.

Stuart cresceu em habitações públicas de um bairro pobre de Glasgow e aborda com muita compaixão os problemas sociais de seus personagens. Sob vários aspectos, seu romance é desolador, um retrato daquela década. Há miséria e degradação. Linguagem chula, violência sexual. O que suaviza o enredo e o torna admirável é o amor de Shuggie pela mãe. Stuart não sentimentaliza a relação dos dois e não esconde a depredação do alcoolismo.

A inocência angelical de Shuggie faz o leitor desejar-lhe futuro melhor. Aconteceu na vida de Stuart, de 44 anos: teve infância e adolescência desajustadas e aos 16 anos viu a mãe morrer de alcoolismo, mas fez carreira como estilista de moda e produziu um livro magistral.

“Shuggie Bain” Douglas Stuart Editora Grove Press 448 págs., R$ 96,95 (importado) / AAA

AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco



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