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A Lava Jato, o Supremo e um beco sem saída

A Operação Lava Jato foi o principal evento político do Brasil na década de 2010. Sem dúvida essa é uma afirmação polêmica, em virtude da magnitude das crises e mudanças ocorridas ao longo dos últimos dez anos. Contudo, todas essas crises e mudanças estiveram conectadas, ou foram diretamente causadas, pela Lava Jato. De um lado, as manifestações de 2013 criaram o ambiente perfeito para a deflagração da operação; de outro, é impossível compreender o processo de impeachment de Dilma Rousseff, a instabilidade do governo Temer e a eleição de Bolsonaro sem situá-los no rastro deixado pela Lava Jato. O Brasil de hoje foi em grande parte moldado por uma operação criminal deflagrada em Curitiba em 2014, cujo principal líder foi o então juiz Sergio Moro. A notícia de dissolução da força-tarefa da Lava Jato no Paraná chegou apenas nesta quarta-feira (3), mas a operação já estava em crise pelo menos desde 2019. Curiosamente, uma crise deflagrada pelo próprio Moro, quando aceitou ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro, meses depois de condenar Lula em um processo judicial que impediu o petista de concorrer à Presidência em 2018. A transformação do juiz em ministro da Justiça abalou a fé de alguns adeptos do lavajatismo, que viram nesse ato uma confirmação das denúncias de parcialidade que pesavam contra a operação. Para outra parcela dos lavajatistas, o movimento se justificava em nome de benefícios maiores, como alçar Moro ao Supremo Tribunal Federal ou torná-lo candidato à Presidência. No entanto, a aura de tecnicidade heroica estava conspurcada aos olhos de todos, mesmo para seus maiores seguidores, escreve Rubens Glezer na Piauí, em artigo publicado dia 4/1 no site da revista. Continua a seguir.


Após essa transição, as trajetórias de Moro e da Lava Jato entraram em declínio. Sem Moro e sem Lula (já inviabilizado politicamente), a operação deixou de ser uma constante no debate público. Seria possível objetar que ainda há muitas forças-tarefa espalhadas pelo país, com aparições ocasionais na mídia e que, por esse motivo, a Lava Jato está viva e bem. Porém, a Lava Jato que morreu é aquela que se notabilizou por estabelecer um clima de frenesi incessante: a qualquer dia ou hora, alguém importante poderia sofrer uma busca e apreensão ou ser preso preventivamente. Esse foi o método – conscientemente escolhido –  pelo qual a operação conquistou o imaginário social: o senso de impunidade das pessoas mais poderosas foi profundamente abalado. A força da Lava Jato se intensificou na esperança de que os detentores de amplo poder político ou financeiro não estivessem mais acima da lei; uma façanha que só poderia ser realizada por um grupo de pessoas sem vínculos com esses poderosos. É por isso que a transformação de Moro em ministro é tão simbólica e traumática para a operação: o bastião da lei teria cedido aos encantos do poder. Outras derrotas não foram apenas simbólicas.

A partir de 2019, a Lava Jato sofreu uma série de reveses. A força-tarefa de Curitiba teve de compartilhar todos os seus dados de investigação com a Procuradoria-Geral da República, e passou a ter cada vez menos respaldo logístico dentro da instituição. As investigações e ações envolvendo crimes eleitorais passaram a ser julgadas, nos termos do Código de Processo Penal, pela Justiça Eleitoral. Isso fez com que todas as investigações envolvendo doações de campanha saíssem das mãos da Justiça Federal e, portanto, da Lava Jato. Foram anuladas algumas das condenações nas quais Moro não havia reconhecido a garantia adequada de ampla defesa a réus delatados. O Supremo chegou a reconhecer a parcialidade de Moro ao juntar a delação de Palocci ao processo de Lula às vésperas das eleições de 2018. Além disso, Bolsonaro transferiu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Banco Central, afetando a burocracia do órgão de suporte à investigação da Lava Jato.

O ministro Moro também passava por dificuldades. Pagou pedágios por fazer parte do mundo político: teve que silenciar ou mesmo defender publicamente colegas investigados ou condenados por caixa dois, além de pedir investigação contra críticos do presidente. Mesmo assim, sua autoridade foi constantemente contestada e mitigada tanto pelo presidente da Câmara dos Deputados quanto pelo presidente da República. Seu “pacote anticrime” foi amplamente modificado pelo Congresso. Suas indicações para o Conselho da República foram vetadas por Bolsonaro. Ele também perdeu o braço de ferro em torno da redação final da Lei de Abuso de Autoridade. 

No entanto, o golpe mais pesado contra a Lava Jato foi desferido por seus próprios membros. Em junho de 2019, o site The Intercept Brasil passou a divulgar mensagens privadas trocadas por membros da força-tarefa de Curitiba, com especial destaque para diálogos entre Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol. Em alguns desses diálogos, agentes da acusação acertavam detalhes para deflagrar atos de investigação. Em outros momentos, Moro dava diretrizes diretas à equipe ou reclamava de decisões tomadas pelos procuradores (como recorrer em determinadas ações). A sequência de mensagens foi chamada de “Vaza Jato”. A repercussão foi intensa e perene. Comprovada a veracidade do conteúdo, seria quase impossível defender, na esfera pública, o desinteresse, a imparcialidade e a tecnicidade de Moro à frente da operação. A defesa da conduta do ex-juiz precisou se arvorar na ideia de que os fins justificam os meios, ou que a excepcionalidade dos crimes e dos réus demandava a flexibilização das exigências legais de imparcialidade. As mensagens foram reunidas pela Polícia Federal durante a Operação Spoofing, cujo objetivo era descobrir os responsáveis por obter ilegalmente as mensagens veiculadas (legalmente) pelo Intercept. 

O desgaste da imagem de Moro corroeu, desde então, parte de sua popularidade e sua aura de intangibilidade. Os conflitos com Bolsonaro se acentuaram e culminaram no pedido de demissão do ministro durante uma coletiva, em abril do ano passado, quando Moro declarou que sua saída era uma forma de protesto em relação aos desejos do presidente da República de interferir na autonomia da PF. Nesse momento o lavajatismo rompeu com o bolsonarismo, jogando na incerteza o futuro da operação e do próprio Moro. A partir daí a Lava Jato passou a receber cada vez menos estrutura e suporte logístico, enquanto Moro, aos poucos, deixou de ocupar o espaço público.

Em 2021, parece não haver qualquer espaço para duvidar da morte da Lava Jato. Ao mesmo tempo em que se anuncia a dissolução da força-tarefa de Curitiba, aumenta a perspectiva de que o STF coloque em julgamento o habeas corpus de Lula pedindo que sua condenação seja anulada, em razão da parcialidade com que foi julgado. Nesse mesmo contexto, a defesa de Lula obteve judicialmente, no Supremo, o acesso às mensagens obtidas pela Operação Spoofing, com ampla capacidade de publicização do conteúdo.

Não será uma decisão fácil para o STF – ironicamente, em razão das medidas que o próprio Supremo tomou em prol da Lava Jato e no espírito do lavajatismo. Hoje é fácil esquecer que o Supremo já foi grande aliado da operação, especialmente entre 2015 e 2017. Na época, em diversas ocasiões, os ministros se afastaram de regras e princípios jurídicos para atender à demanda difusa pelo fim da impunidade. Como narro no livro Catimba Constitucional, essas decisões heterodoxas, difíceis de justificar do ponto de vista estritamente jurídico, transmitiram a percepção de que o tribunal era profundamente politizado e poderia abrir mão das regras e procedimentos quando achasse cabível. Esse processo acabou por mitigar sua capacidade de tomar decisões hostis a outros poderes e à parcela relevante da opinião pública. Com isso, o Supremo passou a ser persistentemente acusado de ser politizado e seletivo. Isso significa que é difícil para o STF justificar um revés à Lava Jato como um simples cumprimento das regras processuais, que tantas vezes já foram flexibilizadas. 

É por esses motivos que a decisão do STF sobre a suspeição de Sergio Moro no julgamento de Lula é quase tão importante quanto a operação Lava Jato em si. Em ambos os casos, a relevância transcende os agentes envolvidos e dizem respeito ao que queremos como país. A Lava Jato defrontou o Brasil com a desigualdade na aplicação da lei, colocando pessoas que antes estavam acima da Justiça na mesma situação dos invisíveis e demonizados que se viam abaixo dela. A operação nos apresentou a promessa de cumprir a lei punindo poderosos, mesmo que, para isso, tenha violado garantias de investigados e réus ao longo do caminho. Nisso, a Lava Jato e o STF foram parceiros: fizeram sua parte para que o devido processo legal fosse tratado no debate público como um detalhe, e não como um pilar do Estado Democrático de Direito.

Há portanto algo de profundamente ambíguo nesse julgamento que se avizinha sobre a suspeição de Moro. Em parte é uma oportunidade de reafirmar a relevância do devido processo legal e reafirmar que o combate à corrupção, quando feito com justiçamento, traz mais malefícios do que benefícios a longo prazo (pude falar detalhadamente sobre isso em artigo publicado na piauí_162). É uma oportunidade para reafirmar o pacto civilizatório segundo o qual o modo pelo qual a punição é alcançada importa tanto quanto o resultado. É uma oportunidade de declarar a relevância de não sacrificarmos a aplicação das regras da nossa comunidade política em nome de alguma necessidade conjuntural qualquer. Porém, supor que esse será um grande momento de virada soa ingênuo. Possivelmente será apenas um momento de derrota para a Lava Jato e para Moro. Um retorno ao, digamos, velho normal. Seja qual for o resultado, não parece haver vitória fácil para o Estado Democrático de Direito.

RUBENS GLEZER (siga @reglezer no Twitter) é doutor em filosofia e teoria do direito (USP), professor e coordenador do Supremo em Pauta da FGV Direito SP.



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