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Vacina atrasada, variante acelerada

No fim do ano passado, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de reinfecção por Sars-CoV-2 no Brasil. Uma profissional de saúde da Paraíba, de 37 anos e sem comorbidades, apresentou dois episódios clínicos de Covid-19 em um intervalo de quatro meses. No primeiro, em junho de 2020, teve sintomas leves e sem complicações. No segundo, em outubro, relatou fadiga e perda de olfato e paladar. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, analisaram as amostras coletadas na Paraíba e descobriram que a reinfecção havia sido causada por uma variante até então desconhecida do vírus – a sub-linhagem P.2, não alcançada pela ação de anticorpos de infecções anteriores. As mutações mostraram aos cientistas que a esperada imunidade coletiva – que, em tese, protegeria a população conforme mais gente fosse infectada – não era uma saída viável para a pandemia, pelo menos não a curto prazo. Por enquanto, a vacinação é a única solução à vista – mas ela precisa ser rápida. Especialistas alertam que a demora na campanha de imunização, potencializada pela inépcia do governo, pode ser mais uma uma brecha para o surgimento de novas variantes do Sars-CoV-2, escreve Camille Lichotti no site da revista Piauí, em texto publicado dia 20/2. Continua a seguir. 


Até agora, o Ministério da Saúde só repassou 7 doses para cada grupo de 100 mil habitantes, e apenas 57% delas foram aplicadas, segundo dados compilados pela Fiocruz. Todas as vacinas aprovadas e em uso no Brasil são seguras e altamente eficazes em prevenir quadros graves de Covid-19. A vacina da AstraZeneca, por exemplo, tem 100% de eficácia contra quadros mais perigosos da doença. A CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, tem 78% de eficácia para casos leves e 100% para casos moderados e graves. Mas ainda não se sabe ao certo se as vacinas são capazes de bloquear a transmissão do vírus. Na semana passada, o governo de São Paulo começou uma operação de vacinação em massa na cidade de Serrana para medir a redução do contágio e o impacto epidemiológico da CoronaVac, que tem eficácia global de 50,4%. A divulgação dos resultados está prevista para a segunda quinzena de maio.

“Apesar de evitar casos graves, uma vacina menos eficaz tem que ser administrada numa parcela muito grande da população quando o objetivo é controlar a disseminação viral”, explica o virologista Anderson Brito, especialista em evolução e dispersão viral na Universidade de Yale. Até a última quinta-feira (25), menos de 4% da população brasileira havia sido vacinada. “Com esse ritmo lento, o vírus terá mais chances de se diversificar, e eventualmente sofrer mudanças genéticas que favoreçam sua disseminação”, diz Brito. 

Mutações são características naturais dos vírus. Durante uma infecção, eles entram em nossas células e geram milhões de novas partículas virais. Nesse processo, milhões de cópias do material genético têm que ser produzidas, mas nem sempre são idênticas. Algumas dessas falhas, contudo, podem tornar o vírus mais potente e favorecer sua transmissão. “Linhagens do coronavírus Sars-CoV-2 acumulam de duas a três mutações por mês”, explica Brito. Na África do Sul, a variante batizada de B.1.351 preocupou a comunidade científica por ser mais contagiosa. Lá, a vacinação chegou a ser suspensa porque a vacina da AstraZeneca se mostrou menos eficaz para a nova variante. No Reino Unido, pesquisadores também identificaram uma variante nova em circulação no país. Assim como a P.2 encontrada no Rio de Janeiro, ela apresenta mutações que fazem o vírus ser resistente a anticorpos anteriores. 

Em janeiro deste ano, a P.2 foi identificada em metade das amostras realizadas pela Fiocruz no Brasil – em outubro de 2020, correspondia a 26%. Na região Sul, onde os sistemas de saúde do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina estão em colapso, a variante P.2 foi identificada em 73% das análises. O recrudescimento da epidemia não é por acaso. “Os novos surtos em estados brasileiros podem, em parte, ser resultados de novas variantes identificadas”, explica Brito. No começo deste ano, outra variante ainda mais perigosa foi identificada em solo brasileiro. Assim como as encontradas no Reino Unido e na África do Sul, a sub-linhagem P.1, identificada em Manaus, já acendeu um alerta na Organização Mundial da Saúde (OMS). 

O virologista Felipe Naveca trabalha com sequenciamento genético há mais de quinze anos. Em janeiro deste ano, seu grupo de pesquisa na Fiocruz Amazônia encontrou a variante P.1 em um caso de reinfecção. A nova cepa havia sido descrita por pesquisadores japoneses, que identificaram mutações do coronavírus em passageiros vindos do Amazonas. “Conseguimos mostrar que essa evolução surgiu no Amazonas e era independente das variantes descritas no Reino Unido e na África do Sul”, explica Naveca. A amostra mais antiga da P.1 foi coletada no dia 4 de dezembro de 2020. Hoje, essa cepa já domina os casos no estado – além de Manaus, a variante já foi encontrada em outras nove cidades. No mês passado, 91% das análises genômicas no Amazonas correspondiam à P.1. “Além de ter mutações relacionadas à evasão de anticorpos, o aumento rápido de circulação também indica que essa variante é mais transmissível”, diz Naveca. 

As consequências da circulação desta nova cepa já são visíveis. Apenas nos dois primeiros meses deste ano, o número de mortes registradas por Covid-19 no Amazonas já superou o total de 2020. Até a última quinta-feira (25), foram registradas 10.728 mortes no estado.“É preciso lembrar que, em 2020, o Amazonas entrou em colapso primeiro e depois seguiu para o resto do país. Não seria nada surpreendente se isso se repetisse”, afirma Naveca. Na última quinta-feira, o Brasil bateu recorde de mortes diárias por Covid-19 desde o começo da pandemia. 

O estado é o mais adiantado do Brasil na cobertura vacinal da população. Ainda assim, no ritmo atual, o Amazonas vai precisar esperar mais de um ano até que toda a população seja vacinada – tempo insuficiente para conter a proliferação de mortes e de novas variantes. A preocupação dos virologistas é que as variantes se tornem mais poderosas e as vacinas percam eficácia, como aconteceu na África do Sul. “Os estudos com a P.1 ainda estão em andamento, mas a gente imagina que também vá ocorrer uma queda de eficácia porque as mutações dela são parecidas com as da África do Sul”, explica Naveca. A OMS orienta que as campanhas de vacinação não sejam interrompidas, mesmo que haja queda de eficácia.

“Precisamos manter um ritmo alto de vacinação e continuar com o distanciamento social”, explica Naveca. Para ele, além da lentidão da campanha de vacinação, o relaxamento das medidas de prevenção também pode contribuir para o surgimento de novas variantes. “É preocupante que as pessoas baixem a guarda depois que a vacinação começa. Mas não é bem assim”, diz. No Reino Unido, a nova variante surgiu depois do relaxamento das medidas de prevenção e o aumento do número de casos, mesmo depois do início da vacinação, levou o país a um novo lockdown. “Tudo vai depender do quanto a gente vai andar com as vacinas e com o distanciamento social em cada região”, conclui.

O grupo de pesquisa de Naveca desenvolveu uma forma rápida e barata para melhorar a vigilância genômica no Amazonas. Na investigação genômica, todos os insumos são importados e, portanto, comprados em dólar. Naveca relata que perdeu 40% do poder de compra desses materiais em 2020, e a demanda no mundo inteiro é cada vez maior. Junto com outros pesquisadores, ele elaborou um método que usa técnicas adaptadas do RT-PCR para identificar se a amostra analisada corresponde a uma das três variantes mais preocupantes: a P.1, que se espalha pelo Amazonas, a identificada no Reino Unido e a identificada na África do Sul. “Se o teste dá positivo para uma das três na triagem, a gente encaminha para o sequenciamento genético, que é mais demorado e caro.”

Entender como as variantes estão circulando e como elas podem evoluir é essencial para o combate à pandemia. “A gente sempre falou da importância da vigilância genômica, mas é uma área vista como desnecessária no Brasil”, desabafa. “Hoje todo mundo está vendo que não é”. Ele lembra que o primeiro Sars-CoV surgiu em 2002. O Mers-CoV, um outro tipo de coronavírus, foi identificado em 2012. “Em menos de vinte anos nós tivemos três emergências importantes de coronavírus”, diz. “E eu tenho certeza que outras virão. Nós só precisamos estar preparados para identificá-los.”

CAMILLE LICHOTTI (siga @camillelichotti no Twitter) é estagiária de jornalismo na piauí



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