Cada vez mais, as mudanças no processo de produção, seja na indústria, seja na agricultura, tornam obsoleta a mão de obra nelas empregada e pedem trabalhadores com novas qualificações profissionais. Não é coisa simples. Muitos dos descartados ou substituíveis não têm a formação básica que lhes permita a reeducação profissional adequada ao reingresso na produção nas novas condições tecnológicas. Os que podem ser educados ou reeducados para a nova realidade da tecnologia da produção tendem a ser envolvidos por uma educação que os distancia da primeira socialização que lhes formou a base social da personalidade e do caráter. Essa base social de referência é decisiva para a consciência crítica e socialmente criativa em face das crescentes intervenções humanas no nosso modo de vida, escreve José de Souza Martins no Valor, em texto publicado 26/2. Continua a seguir.
Na sociedade brasileira, a socialização das novas gerações é familista e comunitária, demarcada por valores afetivos, centrada na formação do sujeito como pessoa. E não como indivíduo, o sujeito de algum modo coisificado, que é em quem se pensa quando se fala em educação profissional.
Não é incomum que os preconizadores de novas orientações educacionais até mesmo as proponham como técnica social de revogação da mentalidade dos seus destinatários porque desencontrada com os novos requisitos de ajustamento profissional dos trabalhadores ao processo de produção.
Neste caso, porque é processo dominado por uma racionalidade conflitiva em relação aos componentes afetivos próprios de personalidades de sociedades fortemente marcadas por valores da sociedade tradicional que ainda somos em boa parte.
Levemos em conta que, tradicionalmente, em sociedades como esta, a família e a comunidade são os agentes de socialização das novas gerações. A educação que os imaturos recebem na escola não conflita necessariamente, mas complementa o processo de socialização, ajustando o educando aos requisitos da sociedade que muda.
É como se fossem dois mundos que não têm como funcionar separadamente e, menos ainda, conflitivamente. A escola adestra o imaturo para determinadas funções com as quais, a partir de certo momento da sua biografia, obrigatoriamente se defrontará. Ou seja, nesse duplo processo a sociedade muda e permanece ao mesmo tempo.
Temos educação profissional no Brasil há mais de um século. Em boa parte, sua necessidade entre nós foi meio de resolver o cada vez maior descompasso entre a rapidez do desenvolvimento econômico e tecnológico, de um lado, e a relativa lentidão na adaptação dos trabalhadores aos requisitos tecnológicos do processo de produção.
O ritmo da socialização residual das novas gerações desencontrou-se com os requisitos do ritmo intenso requerido na educação e na reeducação dos trabalhadores. Têm sido várias as consequências sociais do desenvolvimento econômico e tecnológico desencontrado e desagregador.
O que caracteriza o capitalismo contemporâneo é o desenvolvimento desigual, a economia desencontrada com a sociedade, uma e outra movendo-se em ritmos cada vez mais desiguais. Esse desencontro produz uma sociedade de fachada, de aparência: parece moderna, no trabalho, mas parece retrógrada na mentalidade.
Se a mentalidade se ajusta a racionalidades cada vez mais vorazes do processo de trabalho, se desajusta em relação aos requisitos morais e comunitários do modo social de viver, da família, dos grupos afetivos de referência. Esse desencontro cria e difunde sofrimentos, disfunções, alienação, estranhamento, desajustes sociais. É a chamada anomia, a das regulações em que as normas sociais do viver em comum tornam-se subjetivamente impróprias ao modo de vida.
Além disso, a durabilidade da qualificação resultante da educação profissional, de hoje, tende a ser menor do que a durabilidade da função e do emprego que dela carecem. Diferentemente do que acontecia há três gerações, a educação profissional já não educa para uma vida. Tem limitado prazo de validade. Cria a velhice profissional precoce e a incerteza permanente quanto ao direito da pessoa a um lugar seguro na sociedade em que vive.
Paulo Nathanael Pereira de Souza, um dos últimos educadores brasileiros, em conferência no Centro de Integração Escola-Empresa, sublinhou a importância de uma característica da concepção de verdadeira educação. A que prepara quem foi nela educado para se atualizar e se reeducar em face dos requisitos e desafios das mudanças técnicas e sociais no interior do processo produtivo. Nas várias profissões.
Em observações comparativas com outras sociedades, notei que isso só é possível com o contínuo aperfeiçoamento e enriquecimento extraescolar do conhecimento de senso comum, sobretudo das classes trabalhadoras.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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