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Um pouco de sociologia de botequim

O Brasil sempre vive um período de comoção geral durante as Copas do Mundo, mas a sensação que se tem neste ano é que não há outro assunto que não as partidas do escrete canarinho. Como diria o presidente Lula, “nunca antes neste país” se discutiu tanto futebol quanto agora.

É evidente que a mídia tem um papel importante para criar este clima e a cobertura da Copa na TV, rádio, internet e jornais é a mais intensa que já se viu. Ironicamente, só a Rede Globo detém os direitos de transmissão do evento, mas isto não tem impedido que as outras emissoras aproveitem o assunto em mesas-redondas, debates e nos programas noticiosos. Para não falar da hiper-exposição da Copa nos intervalos comerciais, onde praticamente só se assiste a peças de propaganda com algum “gancho” futebolístico.

A cobertura intensa da mídia (e dos patrocinadores), no entanto, não explica totalmente o clima de comoção criado neste ano. Pode parecer sociologia de botequim, e deve ser mesmo, mas a verdade é que esta seleção – os 22 jogadores, mais treinador e comissão técnica – conseguiu uma empatia enorme com os brasileiros, talvez ainda maior do que a dos escretes de 1970 e 1982, que marcaram época. Em tese, isto não deveria acontecer, uma vez que os 11 titulares jogam fora do Brasil, distantes, portanto, do dia a dia dos torneios que os brasileiros acompanham de perto (é bom lembrar que só os assinantes de TV paga conseguem assistir aos jogos dos campeonatos italiano e espanhol, onde desfilam a maior parte dos craques da seleção), mas o efeito disto parece ter sido inverso: aumentou a empatia do povão com os jogadores.

O técnico Carlos Alberto Parreira também foge totalmente do figurino clássico latino-americano: é um teórico do futebol, tem diploma universitário, fala línguas estrangeiras e jamais foi jogador profissional. O oposto, por exemplo, do carismático Luiz Felipe Scolari, que trouxe o caneco para o Brasil em 2002 e agora luta para levar o selecionado português adiante na competição. Parreira, aliás, já foi uma unanimidade às avessas quando conquistou, em 1994, a Copa do Mundo comandando uma equipe que jogava feio e que acabou vencendo o torneio na disputa de pênalties. De lá para cá, Parreira passou até pelo Corinthians e, pasmem, foi bem recebido pelos fanáticos da Gaviões da Fiel. Hoje, se não é propriamente uma unanimidade nacional, já não conta com a má vontade dos torcedores do passado.

Por que, então, tamanha empatia com um selecionado formado por gringos e treinado por um burocrata da bola? Uma hipótese a se considerar é que a explicação esteja no momento pelo qual passa o País, em que os valores reconhecidos como positivos pela maioria do povo estão ligados ao sucesso pessoal, às conquistas individuais. Assim, os 11 “gringos” que jogam no selecionado nacional são a cara de um Brasil que “dá certo”, tão certo que faz sucesso lá fora. Alguns com talento, outros com perseverança. Todos, porém, provaram que é possível ir além mesmo com todas as dificuldades de formação que o Brasil proporciona. Isto vale para um fora-de-série como Ronaldinho Gaúcho ou um esforçado como o lateral Gilberto, autor de um dos gols contra o Japão. Vale também fora dos gramados, para o presidente Lula, cuja trajetória de vida é hoje ainda mais admirada pelo povão do que no tempo em que ele era o eterno candidato à presidência. Uma vez presidente, Lula se transformou em mais um símbolo do brasileiro que não desiste nunca, que vai até o fim, aos trancos e barrancos, mas que chega lá.

Se o Brasil ganhar a Copa e Lula for reeleito, é provável que este momento do País se estenda por mais tempo. Aliás, é interessante notar que o tucano Geraldo Alckmin tenta passar para o público a idéia de que é também ele um “self-made-man”, de origem pobre e do interior. Até agora, a lorota não colou (de humilde, Alckmin não tem nada: sua família já forneceu vários quadros para o alto escalão do judiciário brasileiro), mas o tucano vai insistir, a julgar por suas últimas inserções publicitárias na televisão. De toda maneira, é bastante provável que as utopias coletivas continuem nos próximos anos em segundo plano e que a crença no sucesso individual siga norteando a vida nacional.

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