Pular para o conteúdo principal

Cony e Nassif propõem reflexão sobre Lula

Dois colunistas renomados – Luís Nassif e Carlos Heitor Cony – publicaram artigos sobre o mesmo tema no último domingo. Os dois analisam, cada qual à sua maneira, a resistência do presidente Lula às críticas que vem recebendo na imprensa já há um ano. As reflexões abaixo, copiadas da Folha de S. Paulo, foram publicadas também nos diversos jornais que reproduzem as colunas dos jornalistas. Nassif e Cony estão longe de ser petistas, o que torna os artigos ainda mais instigantes.

Carlos Heitor Cony - A mídia derrotada

"A pesquisa mais recente, divulgada na última semana, tem sido interpretada de diversos modos e intenções. O crescimento da popularidade de Lula e da aceitação de seu governo não deixa de provocar um exame de consciência nos profissionais da mídia, alguns deles acreditando que a imprensa, em geral, é o quarto poder.

Um poder que nada pode além de fazer muita marola, que nem sempre chega a molhar os rochedos da corrupção e da bagunça administrativa a que infelizmente estamos habituados. Por meses -quase um ano, não tenho certeza-, a mídia escancarou as mazelas do governo em diferentes setores, todos elas revelando que, de alguma forma ou de todas as formas, o presidente sabia dos esquemas em que seus auxiliares e amigos mais chegados chafurdavam.

E dele não partiu outra atitude se não a de aceitar a carta de demissão que os envolvidos lhe mandavam e que tinham como resposta uma declaração de afeto e confiança. Um deles, depois de tudo o que houve, foi chamado de irmão.

Na realidade, Lula deitou e rolou para as CPIs que foram instauradas e em que foi acusado de cumplicidade com a corrupção. Na hora H, seu nome foi poupado dos relatórios finais, mas não da cobertura que a mídia lhe dedicou. E, se não deu bola para CPIs, muito menos bola deu para editoriais, articulistas, cronistas, colunistas e todos os que ocuparam os vários veículos de comunicação do país e do exterior.

Seria o caso, repito, de um exame de consciência, de uma reavaliação dos meios e da própria função do tal quarto poder, poder que não atinge o povo. A alegação de que o povo não lê jornais nem revistas não procede. O povão vê televisão, ouve rádio. E continua acreditando em Lula e abençoando-o com seu voto."

Luís Nassif - A mídia e o fator Lula

"NO INÍCIO dos anos 90, a inacreditável entrevista de Pedro Collor para a revista 'Veja' inaugurou a era de maior poder da mídia, desde o início dos anos 50. Descobriu-se a notícia-espetáculo, os fatos inverossímeis baseados em fontes suspeitas, mas que atendiam à sede de show.

Denúncias graves não foram apuradas, denúncias vazias viraram manchete, forçou-se a barra, mas o presidente caiu. Ainda que à custa de um pequeno Fiat Elba.

Seguiu-se um longo período de denúncias inverossímeis, ou interessadas. Criou-se até essa obra-prima do jornalismo ficcional, o 'roteiro Frankestein', que consiste em juntar pedaços de notícias verdadeiras, porém irrelevantes, e compor um roteiro com denúncias graves, porém falsas.

Ao longo dos anos 90, esse tipo de jornalismo gerou peças de ficção famosas, como a capa de 'Veja' sobre Chico Lopes -segundo a qual o lobista amigo de Lopes, ele e o banco que pagava as informações se comunicavam por meio de três celulares, e o banqueiro Salvatore Cacciolla obtinha as informações por meio do 'grampo' dos aparelhos; no dia da mudança de câmbio, o 'grampo' falhou, por isso Cacciolla quebrou.

Agora, está-se em plena era da globalização e da internet, com dois fenômenos concomitantes, com implicações relevantes para o futuro das democracias. O primeiro, os amplos fluxos migratórios para os países centrais, gerando um novo tipo de cidadão-eleitor, as minorias étnicas, cada vez mais atuantes.

O segundo, a internet trazendo, em um primeiro momento, enorme balbúrdia de informações e, principalmente, de opiniões, catarses, espetáculo. Agora, quando esse tipo de recurso freqüenta intermitentemente a internet, as caixas de e-mails, os blogs, os comentários nos blogs, quando o exercício vazio da indignação pode se expressar de várias maneiras, o papel fundamental da grande mídia é o de estabelecer parâmetros.

É esse o diferencial: o aval à informação. Muito mais do que em qualquer outra época, há a necessidade do rigor da apuração, justamente porque existe uma overdose de notícias, boatos e opiniões exigindo o avalista.

Pergunto: estamos preparados para isso? A cobertura dos escândalos do mensalão e pós-mensalão deixa uma enorme dúvida no ar. Havia uma betoneira de denúncias a serem apuradas. Em vez disso, quando esgotou a fase inicial das denúncias, recorreu-se a uma overdose de denúncias sem comprovação, somada a uma incapacidade ampla de ir atrás de pistas consistentes, de entender a complexidade dos grandes golpes, de separar o escândalo de episódios triviais. Em alguns órgãos, juntou-se uma dose de agressividade, desrespeito e preconceito sem paralelo até na campanha do impeachment.

Chega-se ao final de um ciclo, que começou com a campanha do impeachment, que derrubou um presidente, e termina com a do mensalão, que não foi capaz de abalar a popularidade de outro presidente.

O exercício do jornalismo precisa ser urgentemente repensado. E não se trata de um problema de forma. É de fundo, de conteúdo."

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe