Quem acompanha essas Entrelinhas sabe o que pensa o autor do blog sobre o diploma de jornalismo. Ainda mais brilhante do que um inteligente comentário de Carlinhos Brickman, reproduzido aqui, sobre o fim da exigência do canudo para o exercício da profissão é o texto do experiente jornalista Paulo Sotero, publicado sábado no Estadão e reproduzido abaixo, na íntegra. Aliás, o pessoal da Fenaj devia olhar em volta e tentar achar algum grande jornalista que defenda o deproma ubrigatório. Do jeito que as coisas andam, vai ser difícil...
Pelo bom senso e a democracia
Paulo Sotero
Equivocam-se os sindicatos e associações de jornalistas em sua campanha para reverter a decisão preliminar do Supremo Tribunal Federal que declarou inconstitucional a exigência do diploma de curso superior de jornalismo para o exercício da profissão. As transformações que as inovações tecnológicas produzem nos meios de comunicação e o interesse inerente dessas organizações no aprimoramento da imprensa e na preservação e ampliação da liberdade de expressão deveriam conduzi-las à conclusão oposta. Arquivar a legislação que regulamentou a atividade jornalística no Brasil é, em primeiro lugar, imposição do bom senso. O advento da internet e a explosão dos meios eletrônicos habilita hoje qualquer cidadão ou cidadã com acesso a um computador ligado à rede a produzir e divulgar notícias e opiniões. E não há nada que se possa ou se deva fazer para limitar ou disciplinar a explosão de informação.
No caso brasileiro, impugnar a que lei criou o ‘brevê’ de jornalista é também tarefa democrática. Gestada no apagão cívico do regime militar, a regulamentação da profissão nasceu com o mesmo ranço da outorga de privilégios que uma outra ditadura, a de Getúlio Vargas, concedera à imprensa um quarto de século antes, com o claro objetivo de amansar os jornalistas. No caso de Getúlio, a generosidade foi mais óbvia e incluiu a isenção do Imposto de Renda e a meia passagem aérea para os profissionais da imprensa. Por sua origem, a lei que deu ao governo o poder de estabelecer regras para o exercício do jornalismo deveria ter sido repudiada tão logo os militares retornaram aos quartéis, em 1985. Democracias avançadas como os Estados Unidos e a França não exigem diploma para o exercício do jornalismo.
Passados 21 anos, não tem nenhum cabimento continuar a condicionar o acesso a uma atividade central à vida democrática ao cumprimento de um requisito legal que nasceu podre, foi mantido apenas por força de interesses corporativos e, como se poderia prever, nada de bom produziu.
Pode-se mesmo argumentar o contrário. A lei que tornou obrigatório o diploma de jornalista foi um presente de grego. Por um lado, ela banalizou a profissão ao equiparar as atividades típicas do jornalista às de assessoria de imprensa. Nada contra os assessores de imprensa, entre os quais tenho vários amigos. Mas é preciso ter claro que, em sua missão de massagear a notícia, os assessores de imprensa cumprem função essencialmente oposta à dos jornalistas, cujo dever é apurar e apresentar uma versão da realidade que mais se aproxime dos fatos.
Outro efeito nocivo da obrigatoriedade do diploma foi ter privado as redações de gerações de jovens talentosos com formação em variadas disciplinas e vocação de jornalista, mas nenhum apetite para investir quatro anos em cursos de jornalismo de qualidade geralmente sofrível. Nesse sentido, a exigência do diploma empobreceu o jornalismo brasileiro e piorou a imprensa. A necessidade dos grandes órgãos da nossa imprensa de criar seus próprios cursos de jornalismo para preparar os estudantes mais aplicados das faculdades de comunicação para a vida profissional atesta a insuficiência dessas escolas e seu descolamento da realidade do mercado de trabalho a que, supostamente, deveriam servir.
Esse distanciamento é ilustrado também pela proliferação dos cursos superiores de jornalismo que a exigência do canudo estimulou. Eles são cerca de 120 e produzem, a cada ano, nada menos que 5 mil diplomados teoricamente qualificados a receber o carimbo oficial na Carteira de Trabalho que os habilita a trabalhar como jornalistas. Onde essa legião de jovens formados encontra trabalho de jornalista é um mistério que está há tempos a merecer uma boa reportagem.
Uma das conseqüências prováveis do arquivamento definitivo da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para os novos jornalistas será o fechamento de dezenas de faculdades de comunicação. As boas escolas sobreviverão e continuarão a formar profissionais habilitados ao exercício da profissão. O fim da reserva de mercado para os diplomados será, para essas escolas, incentivo adicional para oferecer cursos e programas que realmente os preparem para o mercado de trabalho, seja na imprensa tradicional, seja na vida acadêmica, seja nos novos meios eletrônicos que estão transformando a produção, a distribuição e o consumo de informação e opinião.
Um dos argumentos invocados em favor da exigência do diploma é a necessidade de educar os aspirantes a jornalista sobre a teoria e as técnicas de comunicação. As técnicas de comunicação não são física quântica e podem perfeitamente continuar a ser ensinadas e aprendidas nas redações, que é onde 99,9% dos jornalistas realmente as aprendem, independentemente do treinamento formal que possam ter recebido nas escolas de jornalismo.
Falo por experiência. Comecei na imprensa em 1968 como revisor de provas da revista Veja, atividade para a qual fui preparado pelos excelentes professores de Português que tive na escola secundária. Estudei História e, já cinquentão, fiz um mestrado em Jornalismo e Políticas Públicas. Nada tenho contra o ensino de jornalismo e de teoria da comunicação, que é matéria importante das ciências políticas e sociais e da filosofia. Mas, como todo repórter, redator e editor sabe, na hora da definição da pauta, da apuração dos fatos e da redação do texto, a teoria da comunicação de pouco vale na ausência do hábito da boa leitura, do preparo adequado em literatura e línguas, a começar por aquela em que se escreve, e de conhecimentos básicos de História, Geografia, Ciências e das demais disciplinas que ajudam a desenvolver os atributos essenciais do bom jornalista: a capacidade de entender o mundo em sua complexidade e a disposição de tratar os fatos com espírito público.
*Paulo Sotero, jornalista, é diretor do Brazil Institute, Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington
Pelo bom senso e a democracia
Paulo Sotero
Equivocam-se os sindicatos e associações de jornalistas em sua campanha para reverter a decisão preliminar do Supremo Tribunal Federal que declarou inconstitucional a exigência do diploma de curso superior de jornalismo para o exercício da profissão. As transformações que as inovações tecnológicas produzem nos meios de comunicação e o interesse inerente dessas organizações no aprimoramento da imprensa e na preservação e ampliação da liberdade de expressão deveriam conduzi-las à conclusão oposta. Arquivar a legislação que regulamentou a atividade jornalística no Brasil é, em primeiro lugar, imposição do bom senso. O advento da internet e a explosão dos meios eletrônicos habilita hoje qualquer cidadão ou cidadã com acesso a um computador ligado à rede a produzir e divulgar notícias e opiniões. E não há nada que se possa ou se deva fazer para limitar ou disciplinar a explosão de informação.
No caso brasileiro, impugnar a que lei criou o ‘brevê’ de jornalista é também tarefa democrática. Gestada no apagão cívico do regime militar, a regulamentação da profissão nasceu com o mesmo ranço da outorga de privilégios que uma outra ditadura, a de Getúlio Vargas, concedera à imprensa um quarto de século antes, com o claro objetivo de amansar os jornalistas. No caso de Getúlio, a generosidade foi mais óbvia e incluiu a isenção do Imposto de Renda e a meia passagem aérea para os profissionais da imprensa. Por sua origem, a lei que deu ao governo o poder de estabelecer regras para o exercício do jornalismo deveria ter sido repudiada tão logo os militares retornaram aos quartéis, em 1985. Democracias avançadas como os Estados Unidos e a França não exigem diploma para o exercício do jornalismo.
Passados 21 anos, não tem nenhum cabimento continuar a condicionar o acesso a uma atividade central à vida democrática ao cumprimento de um requisito legal que nasceu podre, foi mantido apenas por força de interesses corporativos e, como se poderia prever, nada de bom produziu.
Pode-se mesmo argumentar o contrário. A lei que tornou obrigatório o diploma de jornalista foi um presente de grego. Por um lado, ela banalizou a profissão ao equiparar as atividades típicas do jornalista às de assessoria de imprensa. Nada contra os assessores de imprensa, entre os quais tenho vários amigos. Mas é preciso ter claro que, em sua missão de massagear a notícia, os assessores de imprensa cumprem função essencialmente oposta à dos jornalistas, cujo dever é apurar e apresentar uma versão da realidade que mais se aproxime dos fatos.
Outro efeito nocivo da obrigatoriedade do diploma foi ter privado as redações de gerações de jovens talentosos com formação em variadas disciplinas e vocação de jornalista, mas nenhum apetite para investir quatro anos em cursos de jornalismo de qualidade geralmente sofrível. Nesse sentido, a exigência do diploma empobreceu o jornalismo brasileiro e piorou a imprensa. A necessidade dos grandes órgãos da nossa imprensa de criar seus próprios cursos de jornalismo para preparar os estudantes mais aplicados das faculdades de comunicação para a vida profissional atesta a insuficiência dessas escolas e seu descolamento da realidade do mercado de trabalho a que, supostamente, deveriam servir.
Esse distanciamento é ilustrado também pela proliferação dos cursos superiores de jornalismo que a exigência do canudo estimulou. Eles são cerca de 120 e produzem, a cada ano, nada menos que 5 mil diplomados teoricamente qualificados a receber o carimbo oficial na Carteira de Trabalho que os habilita a trabalhar como jornalistas. Onde essa legião de jovens formados encontra trabalho de jornalista é um mistério que está há tempos a merecer uma boa reportagem.
Uma das conseqüências prováveis do arquivamento definitivo da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para os novos jornalistas será o fechamento de dezenas de faculdades de comunicação. As boas escolas sobreviverão e continuarão a formar profissionais habilitados ao exercício da profissão. O fim da reserva de mercado para os diplomados será, para essas escolas, incentivo adicional para oferecer cursos e programas que realmente os preparem para o mercado de trabalho, seja na imprensa tradicional, seja na vida acadêmica, seja nos novos meios eletrônicos que estão transformando a produção, a distribuição e o consumo de informação e opinião.
Um dos argumentos invocados em favor da exigência do diploma é a necessidade de educar os aspirantes a jornalista sobre a teoria e as técnicas de comunicação. As técnicas de comunicação não são física quântica e podem perfeitamente continuar a ser ensinadas e aprendidas nas redações, que é onde 99,9% dos jornalistas realmente as aprendem, independentemente do treinamento formal que possam ter recebido nas escolas de jornalismo.
Falo por experiência. Comecei na imprensa em 1968 como revisor de provas da revista Veja, atividade para a qual fui preparado pelos excelentes professores de Português que tive na escola secundária. Estudei História e, já cinquentão, fiz um mestrado em Jornalismo e Políticas Públicas. Nada tenho contra o ensino de jornalismo e de teoria da comunicação, que é matéria importante das ciências políticas e sociais e da filosofia. Mas, como todo repórter, redator e editor sabe, na hora da definição da pauta, da apuração dos fatos e da redação do texto, a teoria da comunicação de pouco vale na ausência do hábito da boa leitura, do preparo adequado em literatura e línguas, a começar por aquela em que se escreve, e de conhecimentos básicos de História, Geografia, Ciências e das demais disciplinas que ajudam a desenvolver os atributos essenciais do bom jornalista: a capacidade de entender o mundo em sua complexidade e a disposição de tratar os fatos com espírito público.
*Paulo Sotero, jornalista, é diretor do Brazil Institute, Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington
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