Com toda a tragédia que vem provocando - recessão mundial de intensidade inédita e morte de centenas de milhares de pessoas -, a pandemia de covid-19 tem, em contrapartida, um impacto importante sobre o debate econômico, que, a depender dos desdobramentos, poderá abrir espaço para a contemplação de políticas sociais impensáveis nos parâmetros do liberalismo que tem orientado as decisões em muitos países, Brasil inclusive, escreve Oscar Pilagallo em ótima resenha do livro de Vinicius Torres Freire no Valor, publicado sexta, 9/11. Continua a seguir.
A constatação emerge como um dos pontos centrais de “Três Pragas do Vírus”, de Vinicius Torres Freire, colunista da “Folha de S.Paulo”. “A abertura dessa janela difunde a ideia de que a fronteira do inimaginável é flexível, pois pode ser redefinida em uma situação dita de emergência ou de catástrofe”, escreve.
No Brasil, a oportunidade se apresenta a partir da desmoralização das regras fiscais, cujo objetivo é conter déficits orçamentários e a dívida pública. Para evitar um mal maior e mais imediato, elas foram, ao menos temporariamente, deixadas de lado, viabilizando um benefício extraordinário que, em cinco meses, equivaleu a mais de nove vezes o gasto anual com o Bolsa Família.
Ora, se tais limites foram atravessados agora, por que não antes? A partir de qual limiar de sofrimento ou risco social se admitem remédios até então fora de cogitação? As perguntas do autor remetem a uma distinção que produz a percepção incômoda de que o país, disposto a abrir mão da ortodoxia dominante para combater a privação decorrente da calamidade, aceita a existência de uma miséria corriqueira e tida como irremediável.
Ao acentuar a pobreza e a desigualdade, entretanto, a pandemia gestou uma nova perspectiva. “Houve um aprendizado social concreto das implicações da iniquidade no trabalho, na moradia, na saúde, nas chances de sobreviver”, observa Freire.
“Os auxílios emergenciais deram ideias aos mais ou menos danados da terra. Por que inexistiam? Por que teriam de terminar?” O autor não subscreve, no entanto, em nome da maior justiça social pressuposta nessas perguntas, teses que minariam os pilares da responsabilidade fiscal. “Pensar o impensável não quer dizer que qualquer outro mundo seja possível”, diz.
“Mas algo se move, [...] algum experimentalismo pragmático deixou de ser tabu.” Ele cita, a propósito, que diante da inviabilidade, nos moldes atuais, do auxílio emergencial permanente, debate-se um programa de renda básica alternativo.
Se é verdade que não existe vontade política por parte do governo para além do interesse eleitoral - a obra não se debruça sobre o mérito da questão -, é verdade também que há margem de manobra para a obtenção de recursos necessários para uma política social mais inclusiva.
O autor defende, para tanto, um pacto nacional cujas cláusulas básicas seriam: 1) despesas orientadas para elevar o investimento e o emprego e garantir rendas mínimas; 2) redistribuição da conta, cobrando mais de quem tem mais; e 3) aumento restrito da dívida para reativar a economia.
Freire reconhece que não seria um acordo fácil. Desde os anos 1980, nunca foi feito nada parecido, ele conta, “com exceção talvez de uma versão improvisada, ineficiente, instável e insustentável nos primeiros anos do governo Lula”. Mas não é impossível sonhar com a interseção de ideias de grupos ideologicamente antagônicos, como já aconteceu no Brasil.
O autor menciona, como exemplo raro, o plano de estabilização econômica de Celso Furtado, durante o governo de João Goulart, que, embora não tenha saído do papel, era semelhante ao de Roberto Campos e Octávio de Bulhões, adotado no início da ditadura militar.
Hoje, mesmo economistas liberais advogam uma saída organizada do teto de gastos, ameaçado por imposições de uma realidade inimaginada em 2016, quando foi aprovado. Mas a distância entre fiscalistas e desenvolvimentistas continua a mesma.
Prudente, Freire não se arrisca a fazer conjecturas sobre o que está por vir. “Ainda não se sabe se movimentos políticos novos serão destampados pelo fim dos confinamentos”, diz. Para ele, a perspectiva de melhora da situação dos mais pobres não é, necessariamente, um corolário.
“A regressão é sempre uma alternativa”, afirma, lembrando que, depois da depressão dos anos 1920, “os donos do mundo optaram pela barbárie”. O livro, porém, não projeta distopias. A alusão isolada à saída totalitária é uma espécie de hedge de quem está habituado a produzir análises a quente, a partir de fatos inconclusos.
Jornalista e mestre em administração pública pela Universidade Harvard, Vinicius Torres Freire se filia, com “Três Pragas do Vírus”, à melhor tradição ensaística anglo-saxônica, caracterizada por mergulhos na história e na cultura e pela prevalência dos argumentos sobre os números. Para ficar com sua expressão, trata-se de uma obra que chega para “mapear o desconcerto”.
“Três Pragas do Vírus - Política Internacional, Dívida e Desemprego na Pandemia”. Vinicius Torres Freire. Todavia, 96 págs; R$ 30 /
Oscar Pilagallo, jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista”.
A constatação emerge como um dos pontos centrais de “Três Pragas do Vírus”, de Vinicius Torres Freire, colunista da “Folha de S.Paulo”. “A abertura dessa janela difunde a ideia de que a fronteira do inimaginável é flexível, pois pode ser redefinida em uma situação dita de emergência ou de catástrofe”, escreve.
No Brasil, a oportunidade se apresenta a partir da desmoralização das regras fiscais, cujo objetivo é conter déficits orçamentários e a dívida pública. Para evitar um mal maior e mais imediato, elas foram, ao menos temporariamente, deixadas de lado, viabilizando um benefício extraordinário que, em cinco meses, equivaleu a mais de nove vezes o gasto anual com o Bolsa Família.
Ora, se tais limites foram atravessados agora, por que não antes? A partir de qual limiar de sofrimento ou risco social se admitem remédios até então fora de cogitação? As perguntas do autor remetem a uma distinção que produz a percepção incômoda de que o país, disposto a abrir mão da ortodoxia dominante para combater a privação decorrente da calamidade, aceita a existência de uma miséria corriqueira e tida como irremediável.
Ao acentuar a pobreza e a desigualdade, entretanto, a pandemia gestou uma nova perspectiva. “Houve um aprendizado social concreto das implicações da iniquidade no trabalho, na moradia, na saúde, nas chances de sobreviver”, observa Freire.
“Os auxílios emergenciais deram ideias aos mais ou menos danados da terra. Por que inexistiam? Por que teriam de terminar?” O autor não subscreve, no entanto, em nome da maior justiça social pressuposta nessas perguntas, teses que minariam os pilares da responsabilidade fiscal. “Pensar o impensável não quer dizer que qualquer outro mundo seja possível”, diz.
“Mas algo se move, [...] algum experimentalismo pragmático deixou de ser tabu.” Ele cita, a propósito, que diante da inviabilidade, nos moldes atuais, do auxílio emergencial permanente, debate-se um programa de renda básica alternativo.
Se é verdade que não existe vontade política por parte do governo para além do interesse eleitoral - a obra não se debruça sobre o mérito da questão -, é verdade também que há margem de manobra para a obtenção de recursos necessários para uma política social mais inclusiva.
O autor defende, para tanto, um pacto nacional cujas cláusulas básicas seriam: 1) despesas orientadas para elevar o investimento e o emprego e garantir rendas mínimas; 2) redistribuição da conta, cobrando mais de quem tem mais; e 3) aumento restrito da dívida para reativar a economia.
Freire reconhece que não seria um acordo fácil. Desde os anos 1980, nunca foi feito nada parecido, ele conta, “com exceção talvez de uma versão improvisada, ineficiente, instável e insustentável nos primeiros anos do governo Lula”. Mas não é impossível sonhar com a interseção de ideias de grupos ideologicamente antagônicos, como já aconteceu no Brasil.
O autor menciona, como exemplo raro, o plano de estabilização econômica de Celso Furtado, durante o governo de João Goulart, que, embora não tenha saído do papel, era semelhante ao de Roberto Campos e Octávio de Bulhões, adotado no início da ditadura militar.
Hoje, mesmo economistas liberais advogam uma saída organizada do teto de gastos, ameaçado por imposições de uma realidade inimaginada em 2016, quando foi aprovado. Mas a distância entre fiscalistas e desenvolvimentistas continua a mesma.
Prudente, Freire não se arrisca a fazer conjecturas sobre o que está por vir. “Ainda não se sabe se movimentos políticos novos serão destampados pelo fim dos confinamentos”, diz. Para ele, a perspectiva de melhora da situação dos mais pobres não é, necessariamente, um corolário.
“A regressão é sempre uma alternativa”, afirma, lembrando que, depois da depressão dos anos 1920, “os donos do mundo optaram pela barbárie”. O livro, porém, não projeta distopias. A alusão isolada à saída totalitária é uma espécie de hedge de quem está habituado a produzir análises a quente, a partir de fatos inconclusos.
Jornalista e mestre em administração pública pela Universidade Harvard, Vinicius Torres Freire se filia, com “Três Pragas do Vírus”, à melhor tradição ensaística anglo-saxônica, caracterizada por mergulhos na história e na cultura e pela prevalência dos argumentos sobre os números. Para ficar com sua expressão, trata-se de uma obra que chega para “mapear o desconcerto”.
“Três Pragas do Vírus - Política Internacional, Dívida e Desemprego na Pandemia”. Vinicius Torres Freire. Todavia, 96 págs; R$ 30 /
Oscar Pilagallo, jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista”.
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.