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Época: a subida de preço dos alimentos e os desafios para baixá-lo

É preciso ter certa coragem para manter o discurso de ortodoxia econômica quando o preço de um alimento vital como o arroz dispara nas gôndolas. Nem sempre os presidentes brasileiros costumam tê-la, não importa o matiz ideológico. Mário Henrique Simonsen, ministro da Fazenda do general Ernesto Geisel, ameaçou “dar um jeito nos hortifrutigranjeiros” para derrubar o preço do chuchu nos idos de 1970. José Sarney, durante o Plano Cruzado, mandou confiscar bois no pasto para tentar aumentar a oferta de carne. Dilma Rousseff ampliou o crédito agrícola a produtores e encomendou ao Ministério da Agricultura um plano para controlar o preço do tomate no início de seu governo. Jair Bolsonaro, que se autointitula liberal, zerou o imposto de importação do arroz e notificou varejistas a explicar por que os produtos da cesta básica subiram tanto. E disse a seus apoiadores, sem combinar com os donos de supermercados, que eles estavam empenhados em reduzir o preço da cesta, emulando uma retórica célebre do peronismo, de que os supermercados são bons, mas controlados são melhores, escreve Cássia Almeida na edição desta semana da revista Época. Continua a seguir.

A alta que se observa hoje está mais ligada a leis universais do que à suposta má-fé de agricultores e empresários. A da oferta e procura é uma delas. O auxílio emergencial de R$ 600 injetou recursos na economia direcionados, em parte, à compra de alimentos. O clima, com seca na Região Sul e chuva excessiva no Nordeste, afetou as safras de arroz e de feijão, e houve até especulação financeira com os preços internacionais de grãos como soja, milho e trigo no mercado futuro. Os governos injetaram recursos nas economias globais para conter o coronavírus, o que fez aumentar o dinheiro em circulação. Essa liquidez acabou indo para mercados futuros de commodities agrícolas, impedindo a queda esperada dos preços de soja, milho, açúcar e café na pandemia.
Outro grande responsável é a alta do dólar. A moeda americana já subiu mais de 30% em 12 meses, e soja, milho, trigo e carnes têm preços cotados internacionalmente, ou seja, em dólar. Se a cotação sobe, esses produtos ficam mais caros. “No processo de formação de preço internacional, há tanto o peso dos fundamentos quanto dos especulativos”, disse Fabio Silveira, sócio diretor da Macrosector Consultores, especialista em preços agrícolas. O Brasil, disse ele, apesar de ser um país fechado para o comércio internacional, tem um “grau de inserção na economia agrícola muito grande”, o que aumenta a influência do dólar nos preços internos. Os consumidores brasileiros, portanto, competem com os consumidores globais. “Não é o patriotismo que vai segurar a alta do custo dos alimentos, que já estão subindo em reais por causa do dólar”, afirmou o economista.
O arroz é um bom exemplo desse impacto da moeda americana. Há casos de o pacote de 5 quilos custar até R$ 40. Com o produto mais competitivo no mercado exterior, parte da produção foi para fora do país. Trata-se de um grão que não tem qualquer tradição na pauta exportadora brasileira — por isso a escassez quando a produção nacional é vendida lá fora. Segundo José Augusto de Castro, presidente executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil, a exportação de arroz subiu 37,5% em relação a 2019. Foram 666 mil toneladas para o exterior neste ano, ante 484 mil toneladas em 2019. Um volume bem pequeno se comparado aos 80 milhões de toneladas de soja exportados, 6 milhões a mais que em 2019. “Só falta vender 4 milhões de toneladas da soja brasileira neste ano. Acabou a safra brasileira, agora é a vez da safra americana, que vai exportar para a China, e o preço deverá subir aqui”, disse Castro.
O arroz não é uma commodity, um grão negociado internacionalmente que tem seu preço cotado em dólar, mas a valorização da moeda americana deixou o produto, que mal atende o mercado interno, bem competitivo lá fora em relação a outros produtores. A soja é diferente. O Brasil lidera a produção ao lado dos Estados Unidos. Quando a China, a Índia e outros países asiáticos começaram a reforçar seus estoques, o Brasil foi o primeiro a ser procurado, como o maior fornecedor mundial. “Houve uma corrida dos países mais populosos por formação de estoque. China e Índia foram em busca de alimentos em escala global. O Brasil estava colhendo boa safra de soja. Era estratégico para a Ásia, em particular para a China. A formação de estoque especulativo faz parte desse roteiro de coisas que ocorrem num período de muita tensão global”, afirmou Silveira, da MacroSector.
Apesar da disparada dos preços, a inflação se mantém num patamar baixo, cenário diferente do que ocorria nos tempos do “chuchu” de Simonsen ou do “tomate” de Dilma, considerados os “vilões”. Especialista no comportamento dos preços, o economista decano da PUC-Rio, Luiz Roberto Cunha, notou que a pandemia deixou a inflação “estranha”, com uma dispersão muito grande entre os grupos de produtos e serviços. “Essa diferença muito acentuada entre os grupos não é muito comum historicamente. É uma combinação de IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, medido pelo IBGE) muito diferente do padrão normal”, observou. Enquanto a inflação média acumula alta de 0,70% no ano, a alimentação em casa já subiu 6,10%, pesando mais no orçamento das famílias. Já a educação foi pelo caminho oposto. Ficou 3,47% mais barata. Uma mudança e tanto num serviço que sempre conseguiu impor aumentos maiores que a inflação média.
No varejo, a batata ficou 12,4% mais barata, as hortaliças 4,77%, o feijão-carioca 5,85%, o alho 14,16%. Mas não se espera alívio na soja, no milho. O churrasco também vai continuar uma refeição cara. As carnes subiram 7,13% em apenas dois meses (julho e agosto). Não há indicação de que os preços vão cair, mas há um alento. Os aumentos no atacado estão diminuindo. A carne bovina subiu 4% em agosto, a metade do mês anterior, de acordo com o Índice de Preços do Atacado (IPA), do Índice Geral de Preços (IGP), da Fundação Getulio Vargas (FGV). Vizinhos argentinos têm vivido as dores do encarecimento da carne — e, como resultado, ainda que haja controle de preços no país, o consumo do alimento por habitante foi o menor em 100 anos em 2020. Diante da debacle do churrasco, o presidente Alberto Fernández determinou neste ano que o preço de mais cortes de carne bovina fosse tabelado pelo governo.
Com todos os esforços de seu governo direcionados para a reeleição, Jair Bolsonaro vê na disparada dos preços um obstáculo à manutenção de sua popularidade — em franca ascensão desde o início do auxílio de R$ 600. Por isso, além de desonerar o arroz, ordenou à Secretaria Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça, que notificasse cooperativas e redes de supermercados para que explicassem o aumento de preços. O objetivo, segundo o governo, é investigar se houve aumento abusivo, num comportamento que lembrou os tempos mais difíceis da economia brasileira, nos anos 1970, 1980 e início dos anos 1990, quando a inflação estava fora de controle e a saída pelo congelamento de preços era comum. Todas as investidas de controle, sem exceção, deram errado, até que se chegou à fórmula certa para vencer a hiperinflação: o Plano Real, que contempla ferramentas de política fiscal e monetária, entre as quais o congelamento de preços não se inclui. No governo Dilma, a tentativa de controlar o preço do tomate, que chegou a subir 100%, não prosperou. Mas a presidente conseguiu estabelecer limites para o preço da gasolina e da energia elétrica, num processo que a desgastou e provocou desequilíbrios regulatórios que persistem até hoje.
No teatral episódio do “chuchu” de Simonsen, o então ministro da ditadura e respeitado economista proferiu a seguinte pérola: “E o diabo é que não se trata de inflação de demanda ou de custo. É inflação de chuchu mesmo”. Cunha, da PUC, lembra bem daquela época. Por duas vezes, o economista participou dos planos de controle de preços promovidos pelo governo: na segunda metade dos anos 1970 e durante o Plano Cruzado, quando o congelamento trouxe uma estabilidade momentânea, mas que “capotou de maneira estrondosa”, como lembrou a economista Maria da Conceição Tavares, em 2015. Ela era uma defensora ardorosa do plano. Foi a época das fiscais do Sarney (José Sarney, primeiro presidente civil depois da ditadura militar, eleito indiretamente, governou entre 1985 e 1990), quando a população foi convocada pelo governo a “fiscalizar” se os estabelecimentos estavam cumprindo o tabelamento de preços. “Não funcionou em momento algum. E chegava-se a cortar o crédito das empresas”, recordou Cunha.
Há um ponto pacífico entre os economistas ouvidos pela reportagem: que, a despeito da vontade de Bolsonaro, serão as forças do mercado que vão agir para acomodar os preços, ajustando a oferta à demanda — o que, aliás, não deve acontecer neste ano. Especialistas esperam pressões pelo menos até o fim de 2020. Júlia Passabom, economista do Itaú Unibanco, prevê alta dos alimentos consumidos em casa de 14% em 12 meses já em outubro, terminando o ano em 10%. Ela acredita que só no ano que vem a situação voltará a se normalizar. “(O auxílio) ajudou a manter a demanda sustentada. Estimamos alta de inflação um pouco acima de 2% neste ano e metade disso será por causa da alimentação”, disse. Esse grupo de produtos pesa em média 20% no orçamento das famílias.
Maria Andréia Parente, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), afirmou que os itens que estão subindo são muito difíceis de substituir, o que também facilita repasses aos preços ao consumidor. Mas André Braz, economista da FGV, já começa a ver alguma luz no fim do ano, pelo menos para o preço do pãozinho francês. A cotação do trigo, que atingiu recorde, começa a arrefecer.


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