Pular para o conteúdo principal

Dica da Semana: O Dilema das Redes, documentário, Netflix

Polêmico e reducionista, filme vale por levantar questões complexas

Não deixa de ser irônico que a Netflix esteja exibindo um documentário, muito bom, por sinal, vale ressaltar, que trata de comportamentos no mínimo eticamente questionáveis, senão criminosos, de marcas como Google, Facebook, Instagram, Twitter e outros gigantes digitais, mas que poupa ela própria, a Netflix, de críticas que seriam facilmente aplicáveis também ao canal de streaming líder do mercado. Afinal, a denúncia básica do documentário gira em torno do uso de algoritmos para viciar os usuários das redes sociais e buscadores de internet, mas a própria Netflix também usa este recurso para nos oferecer filmes baseados na nossa experiência, portanto nos dados que fornecemos ao canal, mas é poupada, assim como a Amazon e outros sites de compras online.

O grande vilão do documentário dirigido por Jeff Orlowski e escrito por Orlowski, Davis Coombe e Vickie Curtis é o conjunto de redes sociais existentes, em especial Facebook. O filme foi lançado pela Netflix em 9 de setembro de 2020 e seu foco é explicitar a manipulação sofrida pelos usuários das redes sociais com o objetivo de propiciar ganhos financeiros às empresas. “Se você não paga por um produto, você é o produto” é a frase emblemática (e um chavão) do documentário. De fato, é verdade, o usuário é o produto, mas o que não aparece no filme é que para ser o produto, as pessoas precisam em primeiro lugar quererem estar nas redes e, em segundo concordar com os termos de cada uma delas. Se ninguém lê os termos de consentimento, não é problema do Mark Zuckerberg e sim de quem não lê.

O documentário, como tudo que Netflix produz, é bem interessante, tem ritmo de filme de ação, apresenta algumas novidades (poucas, para quem espera uma denúncia bombástica), como os elementos do design das redes usados para nutrir o vício do usuário ou influenciar a política e o impacto na saúde mental – há inclusive uma insinuação de que o aumento das taxas de suicídio entre adolescentes se deva ao uso das redes, o que não dá para ser cientificamente provado neste momento, porque outros fatores podem estar em jogo e não são colocados na discussão, consumo de drogas aí incluso.

Basicamente, as fontes das entrevistas e revelações são ex-funcionários das principais redes sociais e professores acadêmicos. Há desde gente graúda que esteve no Google até o suposto criador do botão like do Facebook, passando pelo ex-presidente do Pinterest Tim Kendall; uma diretora de pesquisa de políticas da AI Now, outra do programa de bolsa de estudos da Universidade de Stanford e o pioneiro da realidade virtual Jaron Lanier. As entrevistas são ilustradas por dramatizações protagonizadas por Skyler Gisondo, Kara Hayward e Vincent Kartheiser, que contam a história do vício de um adolescente nas redes sociais.

O documentário passa rapidamente pelos benefícios das redes, lembrando que muita gente se encontrou por meio delas, outras tantas conseguiram obter benefícios relevantes, como encontrar um doador compatível para órgãos do corpo, mas é apenas uma menção pontual. Na essência, o Dilema das Redes é uma peça de acusação que inclusive deve assustar muita gente e levar uns poucos a apagar correndo seus perfis. O que o documentário não faz é colocar na balança o tipo de uso que pode ser feito das redes. Em excesso, dizem os médicos, até água faz mal, ou seja, o problema não é o que se consome, mas como as maneiras consomem. Dizer que adolescentes se matam porque a imagem que observam no Instagram não é a que gostaria de ver é de um reducionismo até tosco, que não leva em conta o modo de vida de toda uma geração nascida após o surgimento dos smartphones e das próprias redes.

Sempre que alguém apresentar uma solução simples para um problema complexo, é melhor desconfiar. Normalmente, questões complexas não são resolvidas com ações simples como o documentário da Netflix parece indicar. Censura? Fim do Facebook e demais redes? No fundo, é o que está nas entrelinhas do filme, uma sugestão para que pais conscientes “proíbam” o uso de celulares a seus filhos, como se isto, a esta altura do campeonato, fosse possível em uma sociedade hiper conectada, global, em que podemos estar em contato com gente de qualquer lugar, a qualquer tempo. É óbvio que há efeitos colaterais, mas onde não há efeitos colaterais?

Apesar de todos os problemas e da falta de profundidade, vale a pena assistir o documentário pelas questões levantadas, que são contemporâneas e dizem respeito a todos nós, usuários ou não das redes, porque somos afetados diretamente por elas cotidianamente, inclusive na política. O filme poderia ter focado mais neste aspecto, por sinal. Mas #ficaadica (por Luiz Antonio Magalhães em 19/09/2020) 


Adicionar legenda

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...